23.12.08

ANO NOVO, VIDA NOVA? - MAIS PRA BELCHIOR, QUE PRA CAZUZA

Pr. Natanael Gabriel da Silva
Pastor da Igreja Batista Central em Sorocaba

Tenho aprendido que a vida nova não vem com o tempo, não tem data marcada e não pode ser prevista em calendário, apesar do nosso desejo. O tempo são os trilhos, não os vagões. Desliza-se por eles, mas estes não têm a capacidade de mudar qualquer coisa. É a gente que se muda com o tempo, e não o tempo que muda a gente, ou como diria Einstein, não é o tempo que passa pela gente, mas nós é que passamos pelo tempo. Pode parecer meio confuso, mas a força da vida não está no tempo, mas nas pessoas. O movimento está nas pessoas e não no tempo. Quando então se diz que o tempo dará jeito nisso ou naquilo, é apenas uma metáfora. O tempo não resolve nada, mas é como se a gente quisesse dizer: hoje a minha imaturidade, frente a isso, me impede de tentar resolver tal problema, preciso aprender outras coisas, ter uma consciência mais adequada do significado da vida, para que a minha visão sobre tal coisa seja diferente, e possa vislumbrar novas possibilidades. O ano novo não traz vida nova. Seria mais fácil se fosse assim.

Creio que isso também faz parte da nossa condição passiva em querer entender que as coisas sempre serão mudadas por um artifício. Quero explicar melhor isso. Condição passiva é a nossa espera para que alguém faça alguma coisa que mude toda e qualquer situação desfavorável. Trata-se da loteria, do emprego que "cai do céu", ou qualquer coisa que possa mudar o rumo de tudo sem qualquer esforço. Já soube de alguém que desejou a morte da esposa (o contrário, também é verdadeiro), pela conveniência e facilidade diante de um processo de separação, sem esforço, mudança ou qualquer aborrecimento. Sem divisão de bens, e o que é melhor, com toda a liberdade e ausência de culpa que se poderia imaginar.

A ausência de esforço passa também pelo discurso neopentecostal, quando se diz que o mal que uma pessoa tem pode imediatamente, mas imediatamente mesmo, ser resolvido e exorcizado de uma pessoa. Nesse discurso, todos são irremediavelmente bons e que qualquer maldade que alguém faça se refere sempre a uma força exterior incontrolável, e que está presente nele, contra a vontade e recebe o nome genérico de demônio. É o poder irresistível, princípio básico do Direito, como algo que alguém faz, mas que era inevitável, demonstrando que o réu não deve ser punido, porque evitar estaria completamente fora das suas possibilidades. É uma forma de fuga, uma maneira de se esperar e aguardar que alguma coisa mude, sem que se faça qualquer esforço para a mudança.

Cazuza estava certo disso quando disse que o tempo não pára. Fez uma música com muita raiva da vida, ameaçando você, e eu, com o mesmo destino e torcendo para que isso acontecesse. Torcia pelo mal inevitável, pois se o tempo não pára, e você não tem como parar o tempo, então é só aguardar que vai chegar a sua vez de sofrer, e sofrer muito! Cazuza sofria do cúmulo da passividade, da impotência e do medo de provocar a mudança necessária. Sentia pena de si mesmo, como uma vítima da vida, mas não desejava mudar nada. Mudar dói, mas aguardar o tempo é pior, porque há a possibilidade de se morrer à espera de um trem, numa estação onde não existem trilhos. Só que esse tipo de morte não dá pra perceber, pois a esperança faz o foco se dispersar, e a pessoa fica esperando enquanto morre, e morre enquanto espera. Está na estação errada, mas a esperança não o permite ver isso. O tempo anestesiou, apenas isso, e não mais que isso. Na frase, John, o tempo andou mexendo com a gente, num comentário a respeito da morte de John Lennon, numa das músicas de Belchior, há uma metáfora de retorno ao velho oeste. Lennon, para Belchior, é o símbolo de tudo o que poderia ser de mais positivo na luta pela vida, em favor da paz em tempo de guerra e acabou, ironicamente, vitimado por uma morte como no tempo das diligências. Depois de tudo o que se pregou e se buscou na temática da paz, voltamos ao tempo das mortes primitivas nos duelos em Laredo ou Kansas City. Belchior diz que a felicidade é uma arma quente, diz e canta em ritmo lembrando o velho oeste, como se estivesse num saloon. É como se, para ele, o tempo tivesse parado: ainda somos tão primitivos quanto os colonizadores da América do Norte e fazemos as mesmas barbáries como no tempo das tribos. O tempo parou, porque o ser humano é o mesmo, e com todo o nosso esforço ainda somos primitivamente iguais: resolvemos as coisas com a lei do menor esforço, à bala.

Desculpe, Cazuza, mas o tempo pára. As decisões são fotografias da vida. Congelam o momento, quando nunca mais poderá ser mudado. Torna-se monolítico, enrijecido e inalterável. A existência não é a condução automática para o futuro, como se pudesse embarcar no rabo de um cometa e ficar sonhando com a vida nas estrelas, ou tentando encontrar o planeta onde, por acaso, se possa viver a vida perfeita, como se tudo fosse um movimento do tempo. Não somos pequenos príncipes viajando pelo rumo que o destino nos leva. Ao contrário disso, também não quer dizer que haja um fatalismo tipo programado da vida como se fosse possível calcular exatamente como isso se dará. Na vida a gente programa uma coisa, e muitas vezes, ou quase sempre, chega-se num ponto bem abaixo da margem, por conta da correnteza. Eu sei que você precisa crer no ano novo, porque é uma oportunidade de se voltar à estaca zero. É uma espécie de ciclo do sagrado, você retorna para o lugar onde tudo começou e tem a oportunidade de escrever tudo de forma bastante diferente. Você e eu precisamos disso. Uma nova oportunidade, sempre é bem vinda. Todavia, há uma necessidade de participação mínima, em que você de forma consciente de deliberada, provoca aquelas mudanças que são essenciais para que a história seja outra. Caso contrário, viveremos um eterno velho oeste, ou numa tribo para ser mais brasileiro: mudam-se as roupas, a fala e o conforto, mas no demais tudo continua como dantes, na terra de Abrantes. Não adianta ficar torcendo para que o tempo também atropele o outro, para que ele seja tão infeliz quanto você. Não se trata de uma condição egoísta, mas apenas movimento. Interfira positivamente na sua vida, e tome as decisões que você já sabe que devem ser tomadas. Como não poderia ser diferente, feliz ano novo!

12.12.08

A BÍBLIA NA VIDA E A VIDA NA BÍBLIA

Não adianta, o texto bíblico terá sempre sua centralidade no protestantismo. Enquanto os católicos têm sua autoridade na Tradição, na infalibilidade do Papa e no Magistério, o protestantismo se constrói no texto. O que restou foi o texto e sem o texto não têm protestantismo. Com isso a infinita discussão sobre a validade, a dimensão e o significado do texto para a Igreja.

Com a Reforma Protestante e sua centralização no texto bíblico, os teólogos se voltam para a Bíblia – o que é isto? É revelação de Deus? É Palavra de Deus? Em que sentido? Como interpretá-la? Como aplicá-la? As teorias surgem, as idéias borbulham em cima do texto.

Não quero aqui entrar em pormenores se a Bíblia é, contém ou torna-se Palavra de Deus. Quero ir por outro caminho e torcer para que você me compreenda. São esboços de algumas leituras que eu as chamo aqui de hermenêutica da vida, ou seja, alguns teólogos/teologias que procuraram fazer uma leitura da Bíblia a partir da perspectiva da vida, procurando no texto aquela cola que grude gente-texto, passado-presente.

Começo com Karl Barth. Quando assumiu o pastorado em 1911, Barth teve uma experiência marcante: o conflito entre a academia e o trabalho pastoral. Percebeu que havia discrepâncias entre os estudos teológicos e a real necessidade do povo que precisava ouvir a Palavra de Deus. Barth entende que a revelação se dá em três vertentes: Cristo, como automanifestação de Deus (sem o texto), o texto como registro desta revelação e a pregação que atualiza a revelação. A Bíblia em suas mãos se torna um instrumento no qual a Igreja recorda a revelação de Deus, e a pregação como atualização da revelação. Seus sermões tinham objetivos muito claros, dar ao seu povo a condição de refrigério, serenidade, coragem, descanso e fé num Deus amoroso, sempre se apercebendo do contexto imediato. Suas reflexões passavam pela epístola de Romanos procurando sempre uma abertura para os problemas do homem.

Rudolf Bultmann deixa sua contribuição com a sua demitologização. É uma maneira de ver Deus no texto bíblico, mas não ficar espantado com o vocabulário mitológico e pré-científico. Como alguém que bebe na filosofia existencialista, Bultmann compreende o texto como um encontro existencial texto-eu. O texto, fundamentalmente, é algo pessoal. A mensagem provoca, interpela e instiga a existência a fazer uma decisão por Cristo. Com Bultmann, e sua hermenêutica da vida, a realização do ser só é possível através do encontro com a Palavra. A inquietude humana só poderá ser sarada com este encontro.

Dentro da perspectiva latino-americana, a Bíblia é um poço de onde se tira água fresca e saudável; é uma fonte que não secou e nunca irá secar. Ela continua sendo atual para as situações históricas da América Latina quando relata a opressão do pobre, o suborno nos julgamentos, a violação dos direitos humanos, a banalidade da vida. A hermenêutica se dá em uma profunda dialética entre Palavra de Deus e contexto histórico e o fator determinante dessa hermenêutica é Jesus Cristo e sua prática libertadora que desconcertava os fariseus e escribas. A Bíblia ganha concretude quando solidifica no meio do povo a solidariedade, o amor ao outro, o perdão, a partilha, a vida.

Em nossos cultos o texto tem peso. O momento do sermão é o ápice do culto; as orações ao decorrer do culto são, inevitavelmente, dirigidas ao pregador para que ele fale o que vem “de Deus” e não dele mesmo. Parece que o pregador quando sobe ao púlpito e abre a Bíblia ele é tomado naquele momento pelo Espírito Santo e a partir disso ele fala “as palavras de Deus”. É em cima desse pressuposto que muitos subjugam igrejas usando seus sermões para legitimar certas posturas autoritárias.

Nesta relação culto-texto, os sermões devem ter na sua maioria a temática do pecado e a salvação do pecador, daí a expressão “culto evangelístico”. A conversão é o termômetro do fracasso ou sucesso do pregador com o seu sermão.

Mensagens autoritárias e esmagadoras não levam o povo a pensar em suas vidas e a ver o texto como fonte de espiritualidade a partir da identificação com situações bíblicas. Essa postura maniqueísta de usar o texto para proibir ou liberar não contribui em nada com a formação da vida cristã. O comportamento como evidência da salvação e a leitura bíblica como penitência não irão possibilitar uma hermenêutica para a vida. O texto continuará sendo um amuleto obsoleto de sorte e proteção residencial.

Não somente os cristãos querem respostas para os problemas da vida. As pessoas querem entender o que está acontecendo com este mundo que vê a violência como algo normal; querem refletir sobre o sofrimento humano; querem entender o que Deus tem a haver com suas vidas.

É urgente o resgatar a Bíblia na vida das pessoas e procurar mostrar que a vida delas também esta na Bíblia, basta querer fazer uma hermenêutica que contemple a vida.

6.12.08

O QUE NÃO SE APRENDE NA ESCOLA

Uma homenagem aos formandos do 3º Ano/2008 da
Escola Estadual Nascimento Sátiro da Silva – Iporanga/SP

Eles estão felizes. Em fim saíram da escola. A frase mais ouvida é: “não via a hora de deixar esta escola; até que fim acabou”. Devem estar contente mesmo, quase doze anos estudando em uma instituição que tem a função de democratizar o ensino e a cultura adquirida pela humanidade ao longo dos anos. Eles não agüentavam mais mesmo!

Fica uma pergunta: o que de fato aprenderam na escola? As fórmulas, a língua, a história, a pensar? Eles viram todas as disciplinas possíveis para se tornarem o que a sociedade vigente deseja – cidadãos preparados para o mercado de trabalho. Foi o tempo, e muito tempo mesmo, em que o ensino era a lição de vida e as experiências adquiridas pela família. A escola não existiu sempre. Vale lembrar que antigamente o meio social em que a pessoa estava inserida era o contexto educativo. Foi a partir da Idade Média que a educação tornou-se produto da escola. É aqui que surgem as pessoas especializadas para transmitir o saber em espaços definidos e específicos. Com a industrialização, a educação ganhou outro status: preparar o indivíduo para o trabalho. É este modelo que temos até hoje. Exigem-se cada vez mais pessoas com mão-de-obra especializada. A técnica alienou o processo educativo, estipulando um único fim: o sucesso financeiro. Para isso o aluno é enclausurado em um prédio com o pretexto de prepará-lo para a vida pública, e quanto mais ele se destacar neste casulo mais tem sucesso lá fora. É por isso que a teoria pedagógica acentua que o aproveitamento do aluno é definido pelas notas, sendo estas o resultado do esforço ou o fracasso dele, e no caso de fracasso o sucesso na sociedade está comprometido.

A escola ficou com a responsabilidade que muitos educadores não gostariam de ter: educar os filhos dos outros para a vida. Antes os papéis eram mais definidos – a escola preparava o indivíduo para a vida pública e a família ficava com a formação moral da criança. Isso não é mais possível. Hoje a escola ocupa os espaços e as lacunas deixadas pela família. Daí a sua influência na formação profissional, na orientação sexual, nos valores para a vida, nos ideais de cidadania. O agravante é que a escola ainda custa a acreditar que ela, querendo ou não, esta com a responsabilidade de vincular todos esses temas. Mas isto não consta no currículo escolar. As disciplinas devem ser propedêuticas, alegam. Afinal de contas o que interessa mesmo são os números, e por isso o pragmatismo metódico e os prazos para cumprir propostas e alcançar metas, pois o produto final são as planilhas e as tabelas de aprovação, e neste emaranhado de burocracia inútil o aluno é apenas mais um número no sistema.

O que não se aprende na escola? Não existe uma disciplina que ensine ao aluno a ter consciência política de que o poder público não esta acima dele, mas abaixo, como quem ganha para servir; não se aprende que o indivíduo é responsável pelo outro, mas exagera-se na idéia de que o outro deve ser eliminado; não se aprende a ser crítico frente a cultura vinculada na mídia; não se aprende a se engajar em movimentos sociais que valorizem a coletividade; não se aprende que o futuro não cai do céu e que as pessoas são responsáveis por suas histórias de vida.

Paulo Freire combateu este sistema educacional que privilegia o individualismo em detrimento do companheirismo. A educação para ele passava pela ética e virtudes como solidariedade, amorosidade, tolerância, respeito ao outro e suas diferenças, convivência e persistência. Seu lema era: “outro mundo é possível”.

Eles podem até estarem alegres porque finalmente saíram da escola, mas a escola nunca sairá deles. Lá na frente eles irão perceber que a escola foi a coisa mais importante de suas vidas, e com certeza, terão saudades. O que consola o professor(a) é a sensação de que alguma coisa que não estava no currículo escolar ficou em suas vidas.

A vida irá ensiná-los. Como diz a expressão popular: “quanto mais se vive, mais se aprende”.

“Ninguém nasce feito: é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos”.
Paulo Freire

Pr. Alonso Gonçalves

NATAL: O SALVADOR ENTRA NA HISTÓRIA

De fato é uma festa, uma celebração. O Sagrado é materializado na carne quente e mortal de Jesus de Nazaré. Seu começo deveria ter um início, e a Comunidade Primitiva não deixou de refletir e fazer teologia em cima disso. É claro que o tema da “encarnação” não é o ponto de partida, mas de chegada, pois as comunidades refletiram o processo cristológico até chegar ao berço.

É claro que o espírito natalino que invade as lojas, o comércio, não tem nada a ver com o espírito apresentado pelos evangelhos de Mateus e Lucas. O que conta nesses dias de “festa” é o mercado de consumo e a preocupação se as vendas serão ou não prejudicadas pela crise financeira global.

A estória do Natal narrada nos evangelhos quer nos assegurar que Deus habitou entre nós; se tornou como nós, gente simples e ignorante. Ele não veio como um césar, mas como um camponês; seu anúncio não se deu no templo de Jerusalém, mas junto aos pastores de Belém; não nasceu em um hotel luxuoso, mas numa estrebaria; não estava cercado de autoridades, mas de animais. Tudo isso para ficar mais próximo de todos.

As duas narrativas natalinas, Mateus e Lucas, são diferentes. Não queremos levantar historicidade de fatos, se foi ou não em Belém, se Herodes matou ou não as crianças, nada disso. Se não for assim teremos dificuldades com um Paulo que nada diz sobre o assunto; Marcos que começa no batismo, e não conhece nenhuma estória de nascimento virginal e coisa e tal; João que se remete a criação fazendo uma dialética com o Logos grego. Depois a fé cristã tem sua raiz no acontecimento da cruz-ressurreição de Jesus e não na estória do nascimento – embora os Concílios (Nicéia, 325; Éfeso, 431; Calcedônia, 451) na história da Igreja sempre penderam para uma cristologia encarnacionista.

É interessante comparar as duas narrativas. Mt se interessa por José, Lc por Maria; em Mt José e Maria moram em Belém, para Lc José foi para Belém por causa de um recenseamento; Mt faz Jesus ir para o Egito, em Lc Jesus volta para Nazaré; Mt coloca os “magos” como coadjuvantes, em Lc são os pastores. Isso mostra a particularidade de cada autor/comunidade e seu objetivo com a narrativa, cada um tentando buscar seu referencial teológico e comunitário – Mt quer apresentar Jesus como o novo Moisés, e por isso ele vai para o Egito, assim como Moisés, e Herodes manda matar criancinhas recém-nascidas assim como o Faraó; Lc quer mostrar a entrada da salvação na história – “Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor”. Lc não está preocupado em verificar fatos históricos e exatos. É mais um estilo literário, uma linguagem artística, uma narração livre com o fim de edificar e iluminar as vidas de seus leitores/ouvintes.

Com sua narrativa, Lc quer dizer para todos que o Salvador entrou na história da humanidade. Este tema é tão forte no texto, que as palavras “Salvador, salvação, salvar” aparecem 17x. Para Lc o Salvador é o portador de libertação no sentido universal. Jesus é um hóspede pelo qual Deus visita os homens.

O tema da salvação é muito presente na narrativa lucana, por isso sua preocupação constante em ajudar o pobre, o pecador. Não poderia ter magos presenteando o menino com especiarias finas; é os pastores, em geral pobres, renegados, considerados sujos e ignorantes, gente que não tinha reputação nenhuma. A estes Jesus veio salvar. Em Lc os perdidos se salvam e os “salvos” se perdem em seu orgulho, preconceito e discriminação.

O Natal é gratuidade de Deus, doação de amor, singeleza de perdão, convivência com o irmão. Tudo isso é Jesus. Entrou em nossas vidas para nunca mais sair.

27.11.08

A IGREJA DA ESPERANÇA

Em sua principal obra Teologia da Esperança: estudos sobre os fundamentos e as conseqüências de uma escatologia cristã. São Paulo: Teológica, 2003, Jürgem Moltmann desenha uma Igreja que procura cumprir, verbalizar e transformar, a realidade social por meio de suas funções e vida. Partindo da ressurreição de Jesus Cristo, que se inicia a promessa e a abertura para o futuro, Moltmann entende que o futuro não se esgota com a ressurreição, mas antes confirma, antecipadamente, a promessa da glória e do senhorio do futuro Reino de Deus.

A igreja, portanto, é chamada para mediar a presença de Cristo, que por sua vez media o futuro de Deus. Cabe à igreja ser construtora da realidade futura, e não apenas intérprete da história (como é visto nas concepções milenaristas). À igreja é lhe dada a tarefa de esforça-se para trazer o futuro para o presente. Esta Igreja não pode estar à margem do cenário político-social-religioso. A igreja é a mediadora do Reino de Deus, o futuro de Deus. E como tal precisa estar aberta para o diálogo com o homem de hoje. A Igreja do futuro é uma “igreja de Cristo, missionária, ecumênica e política.” Para ela ser isso, fermento de vida, ela deve assimilar conscientemente de que é a antecipação, o sinal do Reino de Deus. Jesus, com sua missão e ressurreição, trouxe o Reino de Deus para a história, a igreja é a sua antecipação; portanto, é o povo do Reino de Deus. A esperança do futuro Reino de Deus é tarefa da igreja quando assume concretamente a sociedade em que esta inserida dando um horizonte de esperança, justiça, vida e humanidade.

Gostaria de apontar algumas implicações da eclesiologia de J. Moltmann para a Igreja Brasileira que anda capengando em suas funções e com uma profunda crise de identidade.

Em um país subjugado pelo capitalismo selvagem condenado a ser sempre especulativo, mas de terras belas e gente mestiça, a igreja tem a oportunidade de ser mais relevante nas questões sociais. Para um povo em que a “esperança é a última que morre”, a igreja necessita vivenciar a antecipação do Reino de Deus com uma postura que venha sempre favorecer a condição humana. Isso será possível com uma maior participação no processo político do país, onde, de fato, a igreja possa transmitir os fundamentos do Reino de Deus: justiça para todos, amor como base dos relacionamentos, fraternidade para com o desvalido e compaixão com quem sofre para comer o fruto da terra. A este povo festeiro que consegue passar do soluço à gargalhada em minutos, a igreja da esperança traz uma mensagem de que um país melhor é possível. Onde a violência possa perder seu espaço para a solidariedade; onde a discriminação e o preconceito para com o índio e o negro possam dar lugar ao acolhimento e a igualdade.
A grande contribuição que a igreja pode dar à sociedade brasileira é a proclamação de que o futuro ainda esta por vim. Um futuro que coadune desenvolvimento econômico com questões sociais; um futuro que inclua no desenvolvimento sustentável a responsabilidade para com o meio ambiente e suas formas de vida; um futuro que coloque Deus como promotor desta esperança e a espiritualidade, com sua diversidade de manifestações, como construtora desta realidade.

Com a proliferação de denominações tidas como evangélicas, a igreja se transformou em um grande supermercado religioso. Neste cenário, dominado pelos neopentecostais, as práticas e as prédicas são marcadas pela freqüente mercantilização do Sagrado e o uso de elementos mágicos com um fim bem claro de manipulação subjetiva e compensação imediata de desejos; o uso da comunicação de massa como ferramenta para construir impérios religiosos; o exclusivismo desavergonhado, reivindicando a verdade do discurso religioso e a atuação do poder de Deus em local e horário definido.
O desafio é urgente. Levar a igreja a ter uma consciência ética e responsável pelo seu contexto social; contar com o comprometimento de todos na missão ao mundo, tornando patente o seu plano de amor pelo mundo; incentivar o uso das vocações para a transformação da sociedade por meio dos valores do Reino de Deus; procurar ser a sinalização da graça de Deus, pois ela é a consciência mais profunda do manifestar de Deus; tornar realidade, nela mesma, a presença amorosa de Deus por meio do cuidado fraterno; alimentar a fé de um mundo melhor por meio da esperança; celebrar a chave do futuro, a ressurreição de Cristo; ser uma igreja que consiga fazer uma leitura do seu contexto com o coração aberto.

Para Moltmann, a igreja é chamada a participar do futuro e não esperá-lo como povo que observa passivamente os acontecimentos históricos, pelo contrário, a igreja tem a chave da história porque a ela lhe foi mostrada o que será o futuro a partir da ressurreição de Jesus e suas promessas.

6.11.08

"EU TENHO UM SONHO"

O mundo parou para ver a eleição norte-americana. Os jornais noticiam a vitória do democrata Barack Obama sobre o republicano John McCain. O mundo festeja a conquista de um negro filho de imigrante na chamada “terra das oportunidades”. A nação comparece em peso às urnas num país em que o voto não é obrigatório. Sentiram a urgência do momento e a possibilidade de fazer história.

Obama tem pela frente um Estados Unidos que colecionou inúmeros inimigos ao longo dos anos com sua política externa e sua pretensão de ser a “polícia do mundo”. Conta, ainda, com o desafio de enfrentar uma guerra causada por um único homem, o desastroso Bush; uma crise financeira que supera a de 1929; além, é claro, de ser estigmatizado pela sua cor.

Obama no seu discurso da vitória em Chicago, Estado de Illinois, agradeceu à sua família, em especial a esposa, aos voluntários de sua campanha, e, principalmente, a todos os norte-americanos que acreditaram que seria possível aquele dia. Lamentou a ausência de sua avó materna que gostaria de ver o neto presidente. Durante toda a sua campanha, Obama procurou a integração do país afirmando que não havia brancos, negros, mas os Estados Unidos. Passou uma mensagem de esperança e alimentou o sonho de muita gente que enxergou nele um messias.

Barack Obama é o resultado do empenho, esforço e paixão de um homem que um dia disse “eu tenho um sonho”. Martin Luther King Jr: nascido no dia 15 de janeiro de 1929 em Atlanta, Geórgia; ordenado pastor batista no dia 25 de janeiro de 1948. Sua trajetória é marcada pela luta contra a segregação racial e defesa da dignidade humana.

Na América de Luther King Jr, a segregação racial era legitimada por leis abusivas. Negros eram segregados em ônibus, lojas, restaurantes, parques, banheiros etc. É contra isso que Luther King Jr luta no caso da senhora Rosa Parks que é presa porque recusa a dar seu lugar no ônibus a um jovem branco na cidade de Montgomery. Líder natural dentro da comunidade, Luther King liderou o boicote aos ônibus da cidade.

A marcha pela liberdade culmina na “marcha dos negros” no dia 28 de agosto de 1963. Fazem exatamente 45 anos do seu discurso no Capitólio em Washington diante daquela multidão. Na capital daquele país ecoa o famoso “I have a dream (eu tenho um sonho)”. O sonho de Luther King Jr era ver “uma sociedade em que as pessoas não são avaliadas pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter”. Alguém que vivenciou a violência de radicais racistas da Ku Klux Klan; cresceu e estudou no sul do país, região escravagista.

Obama agora é ícone de esperança e depositário de sonhos de seu povo. Se hoje ele pode dizer que é possível mudar, é porque Luther King Jr ousou dizer: “eu tenho um sonho”. Em abril de 1968 é assassinado por querer tornar este sonho realidade. Depois de 40 anos ele é concretizado na pele escura de Barack Obama.

1.11.08

A CRISE ECONÔMICA

Não sou economista. Na verdade estas linhas é um atrevimento de alguém que ouve nos jornais o que está acontecendo no universo econômico, à chamada crise financeira, e que gostaria de dar um pitaco.

Os historiadores costumam dizer que a história sempre se repete. Com esta crise parece que eles têm razão. Refiro-me a Crise de 1929. Ao final da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos se estabelece como potência econômica e militar no mundo, fruto do seu messianismo para com os países europeus, que saíram arrasados da guerra. Responsável por quase 50% da produção mundial, os EUA assume a dianteira da economia mundial. O progresso tecnológico e o clima eufórico de consumo criaram o conhecido “estilo de vida americano”. A escalada de produção não acompanhou o consumo ocorrendo a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 que abala o mundo inteiro, inclusive o Brasil e seus produtores de café.

É preciso voltar um pouco para entender como chegamos até aqui.

Com o Iluminismo a razão ficou sendo o instrumento de ordenação do mundo. Agora o homem domina a natureza e faz dela sua matéria-prima para produzir mercadoria. O Iluminismo terá como um de seus filhos a Revolução Industrial na Inglaterra no século XVIII. Desde o século XIV, com a expansão comercial, o dinheiro e o lucro se tornaram mediador das relações humanas. O novo sistema econômico tem em Adam Smith o seu teórico mais expressivo com seu liberalismo econômico. Smith entendeu o capitalismo como uma força autônoma, defendendo a não intervenção do Estado no plano econômico e a livre concorrência. Na contramão Karl Marx. Alguém que denuncia o sistema capitalista como desumano e cruel. Não quero entrar na sua teoria econômica, mas apenas salientar a sua preocupação com a transformação do homem em mercadoria. Ele diz: “a produção capitalista produz o homem não só como mercadoria, a mercadoria humana, o homem com caráter de mercadoria, mas o produz, de acordo com esse caráter, como um ser desumano quer espiritual, quer fisicamente.”

Seria Marx um profeta? Estaria ele com razão quando no Capital acredita que a produção capitalista acabaria destruindo o ser humano e a natureza?

José Saramago, escritor português que faz uma leitura dos dilemas humanos como a dominação política, as barreiras que se opõem aos sentimentos mais profundos do ser humano como o amor e a solidariedade, deu uma entrevista na semana passada, e como de costume poucos jornais deram esta notícia. O assunto era a crise financeira e as medidas milionárias que os governos de diversos países estavam tomando para salvar o sistema financeiro global. Na entrevista ele pergunta: “onde está este dinheiro para salvar os africanos da fome e da miséria?” É Saramago o sistema econômico sempre foi mais importante que as pessoas. Friedrich Engels tem razão quando coloca o Estado como o primeiro poder ideológico no sentido de garantir o bom funcionamento da economia e a defesa da propriedade privada.

A crise demonstra a relação dependente das pessoas com o dinheiro. As pessoas coisificam as relações pessoais e personalizam as coisas. O dinheiro é transformado em fetiche quando o ter é confundido com o ser. É muito comum ver alguém comprando algo não porque precisa de fato, mas porque deseja. O produto é mais um combustível de vaidade pessoal.

A crise financeira revela uma crise humana. Quando as pessoas colocam o dinheiro como centro de suas vidas, as relações ficam deterioradas. Isso não começou no setor imobiliário norte-americano que deflagrou a crise. Isso é conseqüência da relação depredatória que a humanidade vem construindo com o planeta desde a Revolução Industrial; o autoritarismo econômico dos países chamados ricos sobre os países emergentes; o lucro como fator preponderante nas relações diplomáticas.

Quando as relações entre nações forem pautadas pela ética e a solidariedade e não somente pelo fator econômico, seria possível ver um mundo melhor onde os milhões seriam destinados a pessoas e não a bancos.

17.10.08

A MARCA DO DISCIPULADO: O AMOR

Ando decepcionado com o atual cenário evangélico. Não gostaria de ser pessimista, mas não consigo. Essa geração esta marcando o seu tempo com um grau de mediocridade que chega doer os olhos. Modismos são inaugurados a todo o momento, parece mais loja de saldão em que o cliente fica na expectativa da próxima promoção.

Não há mais pastores, e sim apóstolos. Não ocorre mais culto, mas show da fé. A música esta cada vez mais comercial. Existem até mesmo olheiros para descobri novos talentos. As mensagens são de baixo conteúdo e os pregadores televisivos estão preocupados com a prosperidade. O comércio do Sagrado já não é nenhuma novidade. A busca incessante de alguns líderes por promoção pessoal em detrimento da glória de Deus já não assusta mais. Surge cada dia mais pessoas neuróticas vitimadas pela fé. Com isso estamos perdendo o referencial de quem é quem e de qual cristianismo pertencemos.

Olhamos o cenário da Igreja Evangélica e nos deparamos com as múltiplas facetas de um cristianismo que tem em Jesus Cristo seu baluarte. O referencial de ser cristão é variado. Para alguns os usos e costumes diz quem é ou não um cristão de verdade. A fé é medida pelo tamanho da saia e a abstinência de cosméticos; outros têm como referencial de cristianismo o pregador X, que arrasta multidões aonde vai com sua mensagem “poderosa”; ainda há o legalismo farisaico que toma como base o dever como postura cristã.

Quando tento definir o cristianismo simplesmente não posso eximir a figura surpreendente de Jesus. Aquilo que definiu a sua vida inteira é a essência do cristianismo: o amor. Muitos acham que ser discípulo de Jesus é conhecer doutrinas bíblicas, decorar versículos, ler a Bíblia mais de uma vez inteira. Esquecem que a marca inegociável do discipulado é o amor. Os discípulos dos escribas para serem bons, deveriam saber e repetir palavra por palavra do seu mestre. Já o discipulado com Jesus não tinha ascensão, era discípulo a vida inteira. A exigência para o discipulado não era intelectual e muito menos moral – haja vista os relacionamentos de Jesus com publicanos e prostitutas.

Ser cristão não é sinônimo de “entrar no céu”, “ser salvo”. Não quero aqui entrar em soteriologia, mas a salvação é um estado de relacionamento com Deus e seu alvo não é o depósito da alma no céu. Lembremos de Romanos 8, 29: “pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho”. O alvo da salvação antes de qualquer coisa é a semelhança com Jesus e o seu maior legado: o amor. Aliás a identificação dos discípulos de Jesus é esta: “com isto todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (Jo 13,35).

Ser cristão passa por dois eixos: Jesus e o próximo. Não há como ter relacionamento com Deus sem o outro. Todo mundo gosta de João 3,16, mas poucos conhecem 1João 3,16: “nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos”.

O amor deixou de ser a marca prioritária do cristianismo moderno. As bases são outras. Esta cada vez mais raro vermos comunidades onde impera o amor fraterno. Há sim as reuniões para a cura, o milagre financeiro.

Anelamos por um cristianismo que priorize gestos de bondade e amor e deixe a figura inconfundível de Jesus brilhar.

7.10.08

DEUS NÃO TEM TÍTULO DE ELEITOR

Quando chega esta época é a mesma coisa. Os políticos fazem suas alianças, combinam suas barganhas, prometem o impossível e compram alguns votos. No cenário evangélico chega a ser até mesmo bizarro algumas coisas. Os pretensos “eleitos do Senhor” usam o púlpito, transformando-o em palanque e com a conivência do líder, despeja um punhado de asneiras para convencer o povo de Deus de que ele e não outro é o “escolhido de Deus” para o cargo. Já vi este filme: sacos de cimento são “doados” tijolos comprados e latas de tinta adquiridas tudo em nome da “providência divina” que ouviu as orações da igreja.

O discurso é o mesmo: “irmão vota em irmão”; “Deus não nos colocou para sermos calda, mas cabeça”. Em alguns lugares há até mesmo “revelação” de Deus confirmando o candidato X. Em algumas igrejas o candidato leva a igreja de “porteira fechada” e aí daquele que não cumprir com os “propósitos de Deus”. Cidadania, direito de votar em quem quiser não existe.

Nas eleições municipais do Rio de Janeiro o Tribunal Regional Eleitoral recolheu exemplares do jornal Folha Universal (IURD) no dia das eleições (05/10) porque estava beneficiando o candidato a prefeito o senador Marcelo Crivella. Aliás, o senador visitou vários pontos da cidade do Rio de Janeiro fazendo boca de urna porque pretendia ir para o segundo turno de qualquer jeito. A Igreja Universal do Reino de Deus fez a sua parte, investiu pesado na divulgação do candidato além, é claro, de pedir votos abertamente em suas reuniões. Uma cidade nas mãos deles é o maior sonho de consumo.

Essa tendência de teocratizar o Estado não é de hoje. Calvino, por exemplo, pretendia estabelecer em Genebra um sistema totalitário onde pudesse controlar a vida dos cidadãos usando como pressuposto a Bíblia. Ele queria na verdade uma aristocracia dos eleitos, para isso queimou pessoas contrarias as suas pretensões. A perseguição religiosa promovida pela monarquia inglesa foi legitimada pela Igreja Anglicana, surgindo daí grupos contrários à união Igreja-Estado, dentre eles os batistas levantando a bandeira da separação entre Igreja e Estado no século XVII. Parece que em época de eleições o povo evangélico respira ares teocráticos. O candidato tem como legitimação a “vontade de Deus” e sendo assim Deus irá fazê-lo ganhar. Não é democracia onde o povo elege seus representantes pelo seu plano de governo e biografia pública, mas é teocracia, Deus movendo os eleitores para eleger o irmão que é “servo do Senhor”.

Conversando com um colega sobre isso, ele dizia que Deus não tem título de eleitor e muito menos preferência partidária. É preciso entender que a história é conduzida pelo Homem e suas decisões têm conseqüências. Não foi Deus quem colocou Hitler no poder que por sua vez dizimou milhares de judeus; não é Deus o responsável pela gestão desastrosa do Bush; não foi Deus quem elegeu Collor que por sua vez surrupiou a poupança dos brasileiros.

Ser evangélico não credencia ninguém a cargo político. Ser cidadão comprometido com a justiça e o bem comum do povo sim.

1.10.08

O JUGO DE JESUS

A observação da Lei no tempo de Jesus pelos fariseus era absoluta. Havia, até mesmo, em alguns círculos teológicos, a compreensão de que o próprio Deus nos céus se ocupava por algumas horas por dia no estudo da Lei. Essa obsessão pelo cumprimento da Lei levava os fariseus a fiscalizar e oprimir as pessoas com suas diversas prescrições legais.

O autor do Evangelho de Mateus irá ser taxativo em denunciar a postura dos fariseus. No capítulo 23, o mais denso contra os fariseus, o autor descreve a dimensão do jugo sobre os outros: “amarram fardos pesados e põem nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos” (Mt 23,4 NTLH).

Os embates de Jesus com os fariseus serão em torno da interpretação da Lei. A postura hermenêutica de Jesus contrariava padrões e desconsidera tradições. O homem não era para o sábado, mas o sábado para o homem; a impureza não estava em lavar ou não as mãos para comer, mas dentro do homem, de onde brota toda a maldade; não é a Lei que salva, mas é o amor. Com essas interpretações “heréticas”, Jesus é acusado de blasfemo. Era um novo jugo que Jesus convidava a carregar. Não aquele da opressão, mas da leveza.

“Venham a mim, todos vocês que estão cansados de carregar as suas pesadas cargas, e eu lhes darei descanso. Sejam meus seguidores e aprendam de mim porque sou bondoso e tenho um coração humilde; e vocês encontrarão descanso. Os deveres que exijo de vocês são fáceis, e a carga que ponho sobre vocês é leve” (Mt 11,28-30 NTLH). Com este texto, que só se encontra em Mateus, o autor esta dizendo que sua comunidade, que também era judaica, é um lugar de descanso, suavidade e conforto.

É interessante observar que este texto é usado para “evangelizar”. Quando alguém se “converte” a uma igreja é logo lhe colocado um jugo. Tira o “jugo do pecado” e coloca-se outro. Em alguns lugares o jugo é: não poder ver televisão; mulheres não cortam o cabelo, não usa cosmético, não veste calça; crente não joga futebol; não vai à praia. A vida cristã é mais legalidades que espiritualidade.

Confundi-se Evangelho com Cultura. Só para constar: os missionários do Norte chegaram aqui e não viam problema nenhum no tabagismo, aliás, a obra missionária era sustentada com a indústria do tabaco. Para acentuar a ética do diferente, marcada pelo anticatolicismo, estabeleceu-se a regra de que crente não bebe e não fuma. O que dizer dos cristãos na Itália que bebem seu vinho no almoço e na janta? E os alemães com sua cerveja? Os africanos e suas danças? Alguns ainda irão dizer que isso é totalmente errado e “pecado”.

O jugo não deixa ver o Evangelho, apenas as regras. É sempre mais fácil estipular regras e proibições porque a liberdade de consciência assusta. Além do mais o legalismo dá um ar de santidade e do viver correto e funciona como termômetro da “verdadeira espiritualidade”.

O jugo de Jesus é o amor, o perdão e o abraço de irmão. Para alguns esse jugo é mais pesado que dos fariseus. Foi o que Paulo tratou em Gálatas e o caso com os judaizantes. O único jugo de toda a Lei é o amor (5,13) e o único jugo de Jesus é o amor.

21.9.08

POR UM NOVO ETHOS DE COMUNIDADE BATISTA

Sou cristão, e amo ser batista.

Como pastor batista, admiro as bases que direcionaram nossa história. São marcas que formaram nossa identidade e princípios que contribuíram para um mundo melhor. A ênfase no indivíduo, a liberdade de consciência e religiosa, a democracia como sistema de governo, são o contributo dos batistas à era moderna.

Os batistas no Brasil do século 19 souberam ler muito bem os tempos. Eles viram na sociedade brasileira o anseio por modernidade, e com um discurso liberal, apresentaram a autonomia do indivíduo e a separação igreja-estado como chaves para um país retrógrado, com certo messianismo, é claro. No campo religioso a campanha era salvacionista, conversionista mesmo.

Os tempos mudaram. Hoje falamos em pós-modernidade. Mesmo com a dificuldade que muitos têm em definir o momento (as disputas entre os teóricos de que se estamos ou não na pós-modernidade ou se ainda não saímos da modernidade), o fato é que as coisas mudaram.

Com a pós-modernidade a secularização tornou a religião intimizada e menos sagrada, além de colocar o dogmatismo religioso em xeque. Por outro lado a angústia existencial deu lugar a um misticismo religioso sincrético incrível. Em plena era tecnológica acredita-se em gurus, cristais, pirâmides, numerologia etc. As pessoas clamam por sentido em suas vidas. Não é por acaso que aumenta a cada dia os depressivos, os usuários de drogas e o consumo de álcool. Fazendo esta leitura me pergunto: como podemos ser relevantes neste cenário?

A mensagem precisa ser contextualizada sem perder a coerência. Se antes a mensagem sobre céu-inferno funcionava, agora não funciona mais. As pessoas estão preocupadas com suas vidas aqui e agora. Basta olhar para os grupos neopentecostais e verificar que eles souberam trabalhar muito bem com a expectativa das pessoas, usando recursos que discordamos como a mercantilização do Sagrado, mas alcançando pessoas em seus anseios. E nós os batistas?

Em nosso meio ainda reina discussões medievais como a ordenação de mulheres ao ministério pastoral; o uso da bateria nos cultos; a ceia restrita ou não. Parece que não estamos sabendo ler os novos tempos! Pregadores gastam tempo pregando sobre pré-milenismo, dicotomia ou tricotomia etc. A mensagem não está sendo contextualizada. Alguns estão se esquecendo de que hoje, inevitavelmente, as pessoas escolhem uma comunidade de fé não pelo seu corpo doutrinário, mas pela comunidade em si com sua linguagem e jeito de ser.

A racionalidade preconizada e valorizada demasiadamente anteriormente e a preocupação com o ensino doutrinário puro e simples em detrimento da emoção não tem mais espaço em um novo ethos de comunidade: não é tanto o logos e sim o pathos. A preocupação das pessoas é como lidar com o sofrimento humano; com as mazelas diárias; com as vicissitudes da vida. O novo ethos da comunidade precisa levar em conta esses anseios e debilidades e apresentar Jesus Cristo como plenitude de vida. As marcas de uma comunidade relevante na pós-modernidade será aquela que prioriza a relação fraterna, o apoio mútuo, a vivência do amor, a existência do perdão, o abraço do irmão.

Neste novo ethos a comunidade viabiliza a experiência com Deus de maneira intensa através do louvor e da adoração possibilitando uma espiritualidade abrangente que permita as pessoas experimentar a presença do Sagrado como mistério, tremendo e fascinante (Rudolf Otto). O culto não seria meramente compreensão de algo, mas relacionamento com Deus e com a comunidade de fé, onde o amor e a comunhão são à base do compartilhamento dos problemas e o compromisso de todos seria com todos e mesmo que não consiga tirar a dor do outro ao menos tira a solidão da dor. Oração é simplesmente oração, momento de lançar diante de Deus os anseios, não para esperar uma resposta, mas por orar mesmo. Neste novo ethos a ceia não tem cara de sexta-feira, mas de domingo, celebrando a presença do Ressuscitado no meio da Igreja.

Penso que a maior preocupação da comunidade que queira viver um novo ethos em tempos pós-modernos é a de separar o essencial daquilo que foi acrescentado ao longo dos anos além de proclamar uma mensagem que compartilhe mais a experiência com Deus do que as explicações sobre ele.

19.9.08

INTOLERÂNCIA

Os batistas ao longo de sua história sempre defenderam a liberdade de consciência e religiosa. Somos marcados não por questões doutrinárias, mas por princípios dentre eles a competência do homem diante de Deus e a separação igreja-estado.

Notadamente os batistas se mostram intolerantes com os que não comungam das mesmas idéias. É claro que isso não é de hoje, tem raízes norte-americanas, que sempre nutriram disputas internas e externas marcadas pelo exclusivismo e intolerância religiosa, diferente dos batistas ingleses que toleram opiniões e buscaram convergências nas divergências. Não foi por acaso que os batistas particulares (tendência calvinista) e os gerais (tendência arminiana) se fundiram por lá. O mesmo não ocorreu entre os batistas dos Estados Unidos do norte-sul quanto à questão escravagista, dividiram-se. E não causa surpresa nenhuma a Convenção Batista do Sul não participar do Conselho Mundial de Igrejas enquanto a Aliança Batista Mundial, da qual a CBB é filiada, integra o CMI.

Nossa eclesiologia, marcada pela autonomia, dificulta o relacionamento com outras tendências do cristianismo, mas isso não tem impedido líderes batistas selarem profícuas relações com outras denominações, inclusive Igreja Católica. Mas basta ler alguns textos de pastores e líderes proeminentes da denominação para ver a clara indisposição ao diálogo e o trato pejorativo com quem ousa na possibilidade de convergência, tolerância e respeito – são tratados como trânsfuga do autêntico evangelho e até mesmo, em alguns casos, é colocada em dúvida a autenticidade da experiência com Cristo.

Essa intolerância tem suas raízes, e uma delas indubitavelmente é o fundamentalismo herdado dos missionários norte-americanos que aqui chegaram. Os fundamentalistas surgem como apologistas da verdadeira fé em contraste com a teologia liberal européia. Não entrando em detalhes históricos quanto ao surgimento do termo, ligado aos presbiterianos e sua assembléia que definiu os cinco fundamentos da fé, ou aos professores de Princenton e sua pureza doutrinária ou ao batista Curtis Lee Laws e o periódico batista que vinculava o fundamentalismo da Convenção Batista do Sul, os fundamentalistas preconizam a inerrância da Bíblia e têm uma postura hermenêutica literalista do texto. Deste fundamentalismo os seminários beberam. Tanto que não temos uma reflexão teológica batista brasileira, mas repetição do que já foi produzido na sua maioria por estrangeiros. Em concílios examinatórios para candidatos ao Ministério Pastoral prevalecem a Teologia Sistemática de A. B. Langston. A ênfase esta na evangelização. Pastores são treinados para evangelizar e não para refletir com labor sobre teologia. Certa vez estava em um retiro espiritual da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil Seção São Paulo. Havia diversos livros, inclusive de teólogos como Karl Barth, Bultmann e Tillich dentre outros. Títulos de uma editora considerada não-convencional pelos pastores. Confesso que fiquei até surpreso. No outro ano estávamos de volta ao retiro e dessa vez só havia livros de editoras consideradas ortodoxicamente corretas. Perguntei ao irmão a ausência de tais livros, ele me respondeu: “ah pastor pegou muito mal, tivemos várias reclamações”. O fundamentalismo bíblico dos batistas é uma das raízes de intolerância religiosa, visto que a produção teológica se deu basicamente em cima de truculências com outras denominações históricas e contra o catolicismo. A postura que foi assumida de serem os únicos intérpretes do texto sagrado e a prerrogativa da verdade tem dificultado ao nosso povo ver em outros grupos cristãos a irmandade.

Outra base da intolerância é o landmarquismo, movimento surgido nos Estados Unidos e popularizado por James Robinson Graves e J. M. Carroll com seu livro O Rastro de Sangue em que ele ensina a sucessão apostólica dos batistas. De acordo com os landmarquistas a única igreja neotestamentária de fato era a igreja batista, enquanto que as outras eram consideradas sociedades religiosas e seus líderes-ministros destituídos de qualquer autoridade espiritual. No Brasil o landmarquismo se cristalizou também, não de forma autêntica como nos Estados Unidos, mas perceptível. É dessa concepção a ceia restrita entre os batistas brasileiros, alvo de inúteis discussões; a supremacia e centralidade da Igreja Local, embora herança louvável; a reivindicação de alguns de que os batistas são, até mesmo, anteriores a Jesus, lá com João Batista, por isso é a igreja mais bíblica de todas. Essa pretensão colheu problemas e o impedimento para um diálogo ecumênico, uma vez que a identidade denominacional é baseada em disputas e não mais em princípios, aqueles que foram balizados no século XVII.

Outro pilar dessa intolerância religiosa é o anticatolicismo. Como nos Estados Unidos a luta era entre protestantismo versus protestantismo, daí o landmarquismo batista, no Brasil o inimigo foi somente um: os católicos. Os missionários norte-americanos, imbuídos pelos ideais do liberalismo, viram no catolicismo o atraso do país, o impedimento à democracia e a impossibilidade da separação igreja-estado. Daí o sentimento de messianismo que norteou a conduta missionária e a teologia nascente. Não estou colocando em demérito as conquistas ideológicas do protestantismo de missão, que teve muitos méritos na república que viria nascer, estou apenas constatando que o espírito do anticatolicismo petrificou no protestantismo, em particular nos batistas, ao ponto dos católicos serem odiados. A intolerância se mostrou nos periódicos da denominação, nos púlpitos e na literatura teológica de tendência apologética. Com isso cresceu a ótica de não considerar o catolicismo cristianismo. Isso é patente nas campanhas missionárias que tem como slogan “a pátria para Cristo”, desconsiderando a tradição cultural-religiosa do povo brasileiro e as constantes mudanças do catolicismo e seu trabalho político-espiritual realizado. Com isso não esta se negando a necessidade de levar às pessoas a mensagem de fé que os batistas professam e a espiritualidade que vivenciam, mas dentro da democratização religiosa que é salutar. Agora colocar os batistas como paladinos da verdadeira fé e negar a competência espiritual de outros segmentos religiosos é uma barreira para entender a pós-modernidade que clama por diálogo em todas as esferas, principalmente religiosa. Os batistas possuem bases para uma tolerância e convergência cristã porque preconizam a liberdade de consciência e a liberdade religiosa como princípios inegociáveis. Não há mais espaço para paradoxos.

Pr. Alonso Gonçalves

10.9.08

"O BRASIL TEM SEDE DE DEUS"

Este é o tema da campanha de missões nacionais deste ano. O tema renasce em cima de velhos postulados: “milhões de pessoas estão em trevas”. Mais uma vez a velha e conhecida dicotomia da cristandade brasileira, protestantismo-catolicismo, é colocada como base de evangelização. Isso não é por acaso, é claro. O protestantismo de missão (presbiterianos, metodistas e batistas, para citar alguns) veio para este país a fim de resolver um problema, o catolicismo. O objetivo era converter católicos. Reconheço a dificuldade que muitos missionários batistas passaram para levar adiante a sua missão missionária de apresentar outro caminho para um povo que tinha no catolicismo a religião oficial. Mas o resultado desta dicotomia religiosa fez com que o catolicismo fosse visto como um inimigo a ser vencido, a qualquer custo. Junto a isso o discurso exclusivista do protestantismo e a postura apologética de possuir nada mais que a verdade pura e santa. A identidade protestante, e a base missiológica, emergem da oposição aos católicos.

O conflito metafísico de trevas e luz, salvação e perdição, verdade e falsidade, alimentaram e continua alimentando o discurso anticatólico. Anos atrás diversos autores que saíram da Igreja Católica, ou que tiveram alguma relação com ela, eram tratados como protagonistas em nossa denominação. O último, Aníbal Pereira dos Reis, que até mesmo lançou uma editora para divulgar seus textos, fez muito sucesso com sua mensagem anti-Roma, mas no final de sua vida perdeu fôlego. Agora esta velha temática surge na campanha de missões nacionais da Junta de Missões Nacionais da CBB. Na revista da campanha, lá pela página 21, o missionário julga surpreso com a cidade de Cachoeira Paulista/SP que tem 27 mil habitantes e abriga um templo católico para 110 mil pessoas, um dos maiores da América Latina. Isso é um sinal de que os batistas não estão fazendo missões. E toda aquela gente está em trevas, esperando a água viva que nossos missionários têm. Não importa o que eles estão fazendo com os jovens, tirando-os das drogas e cuidando de gente com obras sociais, dando atenção aos casais, levando cada vez mais jovens e adolescentes a ter um compromisso com Jesus Cristo. Eles estão em trevas.

A relação com os católicos sempre foi uma dificuldade entre nós: eles não são considerados cristãos. Recentemente uma cantora batista cedeu uma de suas músicas a um padre e foi duramente criticada por isso. Em nossas igrejas chamar os católicos de “irmãos” é pecado. Até mesmo eu, um pastor batista, escrever isso posso ser considerado um herege subversivo e adepto do ecumenismo. Os nossos princípios defendidos com sangue por muitos batistas no passado não conta. Os batistas ingleses marcaram sua época pela defesa da liberdade religiosa e espírito modernista, e não é por acaso que são as mentes mais ecumênicas dos batistas. Mas nós não recebemos missionários da Inglaterra, mas sim dos Estados Unidos. Lá surge o fundamentalismo teológico e sua importação para seminários e livrarias daqui. O diálogo ecumênico não é possível. Aliás, é inadmissível cogitar abrir conversas com “eles”. Líderes denominacionais expressam terminantemente contra o diálogo, mas eles não são a voz de todos, graças a Deus, e nem a Declaração Doutrinária da CBB é algo normativo, mas indicativo, embora alguns a consideram o Magistério da denominação, e até mesmo ela no item Igreja coloca a questão assim: “o relacionamento com outras entidades, quer sejam de natureza eclesiástica ou outra, não deve envolver a violação da consciência ou o comprometimento da lealdade a Cristo e sua Palavra”.

Confesso que apreciei mais o tema da campanha de missões nacionais do ano passado: Celebrando a Jesus Proclamando Vida. Falar da vida, do amor, da bondade, do perdão, de Jesus é sempre melhor. Apresentar outro caminho para se relacionar com Deus por meio de Jesus é sempre bom. Dentro da democratização religiosa é sempre salutar levar outra forma de experimentar a espiritualidade. Agora reivindicar uma postura de donos da verdade e salvos eternamente amém e não considerar outras vias religiosas como manifestação humana ao Transcendente é desconsiderar as bandeiras levantadas pelos batistas no decorrer de sua história de liberdade religiosa e consciência: “que haja, pois, heréticos, turcos ou judeus ou outros mais”, dizia Thomas Helwys. Ainda bem que sou livre para divergir (Robert Torbert).

Pr. Alonso Gonçalves

6.9.08

"ESTE" BRASIL, NUNCA MAIS

O nosso passado não é tão lindo. O Brasil surgiu de um empreendimento colonial que tinha como objetivo tão somente explorar as riquezas do país. Primeiro o pau-brasil, o açúcar, o café e depois o ouro. Um processo exploratório que apenas se serviu da terra. Para alcançar os objetivos de produção, mataram índios e escravizaram negros. Os portugueses não vieram acompanhados de suas famílias, pois não tinham a intenção de fixar-se na terra. Daí as uniões ilícitas e o mestiçado de nossa gente: o branco, o índio e o negro.

A nossa independência (07.09.1822), que completa este ano 186 anos, foi mais uma independência econômica do que política e não teve a participação popular em nenhum momento. Nossa república ocorreu entre as elites da época, liderada por um militar (Deodoro da Fonseca) que não sabia se era monarquista ou republicano, mais uma vez a participação popular foi nula.

De lá para cá a política brasileira é comparada com uma gangorra, com seus altos e baixos: democracia ou ditadura, quando conveniente.

A história política brasileira conheceu o voto secreto em 1932 com Getúlio Vargas criando a Justiça Eleitoral. Foi bom? Sim foi. Com isso acabaram os desmandos dos coronéis no interior do país. Mas o criador se volta contra a criatura. Vargas influenciado pelo Totalitarismo europeu destitui a Justiça Eleitoral (1937 a 1945) e se firma no poder como um ditador populista, coisa típica da América Latina.

O golpe mesmo veio com o Golpe de 1964. Extinção de partidos, cassação de políticos, suspensão das eleições livres. Os anos de 1964 a 1985 o povo deste país não tiveram oportunidade de expressar a sua vontade nas urnas: quase trinta anos sem eleições diretas, sem o direito de exercer a cidadania.

A redemocratização veio com muito custo. Um Congresso Nacional que não aprova o clamor popular pelas “Diretas Já” com um Paulo Maluf querendo ser eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, um Tancredo morrendo nas vésperas da sua posse e um Sarney assumindo com a responsabilidade de conduzir um país mergulhado em uma dívida impagável. O ano de 1989 chegou e com ele as “Diretas Já” que foram garantidas pela Constituição de 1988. Vinte e dois candidatos concorrendo à presidência da República. Era novamente o direito de exercer a cidadania, votando, se fazendo representar nas diversas esferas do poder: legislativo e executivo. No Brasil de D. Pedro I com sua primeira Constituição (1824) mulheres, escravos e pobres não votavam. No Brasil cantado por Geraldo Vandré – vem, vamos embora que esperar não é saber quem sabe faz a hora, não espera acontecer – o direito de ser cidadão foi estabelecido ao custo de muitas vidas no exílio político, dos corpos não encontrados, dos assassinatos nunca esclarecidos, dos porões de tortura e medo. Eles não esperaram acontecer, fizeram. Não queriam este Brasil nunca mais, lembrando as palavras de Dom Paulo Evaristo Arns e seu livro Brasil: nunca mais – um relato para a história.

Em um país com cerca de 8,5 milhões de km² e uma extensa costa litorânea, de belas praias, de belos cartões postais, de belas cidades, mas de um povo que demonstra que não conhece seu passado ou não se lembra dele. É um povo que sofre de amnésia cívica. Não tem consciência de quanto custou a muitos brasileiros o direito ao voto. Ainda há muitos que o vendem por nada, outros o usam como barganha para conseguir outra coisa e não o fortalecimento da democracia. E não é por outro motivo que temos políticos corruptos que solapam o patrimônio público e desonram a dignidade brasileira.

Há tanto por fazer em um país que ainda detém um percentual considerável de analfabetos; um país que possui mais bares que bibliotecas; um país onde a novela, o futebol e o carnaval funcionam como analgésico popular. A transformação se faz pela conscientização cívica de sermos cidadãos e construtores de uma sociedade mais justa e igualitária. Isso só é possível por meio do voto, a voz das urnas.

“Aqueles que não aprendem com sua história arriscam a repeti-la”.

Pr. Alonso Gonçalves
Iporanga/SP

1.9.08

CORAÇÃO DE PASTOR

Homenagem ao Pr. Natanael Gabriel da Silva pela posse na Igreja Batista Central em Sorocaba, 23.08.2008.

Quem é pastor não consegue ficar longe de gente, de igreja. É algo inseparável: igreja-pastor.

Em algum momento da vida decidiu por uma vocação que não veio por meio dos cursos de bacharel, pós-graduação, mestrado e doutorado. Ela surgiu de uma experiência viva com Deus; um sentimento que invade a alma e impulsiona para ir além e servir aos propósitos do Reino de Deus cuidando de pessoas.

A vocação para ser pastor acontece em um momento que nem mesmo dimensionamos o que seja propriamente, apenas vivenciamos aquilo e acreditamos que é o correto a fazer. Não tem explicação; não tem teorias; não tem tratados teológicos; apenas tem sentimento e desejo de ser chamado por alguém que procura gente como a gente para cuidar de gente. É mais pathos que logos. Schleiermacher tinha razão: a essência dessas coisas não esta num como fazer ou num como pensar, mas no simplesmente sentir. Este sentir não tem um porquê, apenas é. Os profetas do Antigo Testamento experimentaram este sentir, relutando em não aceitar, um alegou que não sabia falar (Moisés) outro colocou a incapacidade na juventude (Jeremias), mas ambos foram compelidos por Deus para aceitar cuidar de gente.

Ser pastor é se entregar, doar-se. É se lançar para algo inesperado, que não se pode controlar e planejar. É estar aberto para sentimentos contraditórios. É agir como o profeta Jeremias (20,7) muitas vezes: “fui enganado? Era para ser assim?” Briga, fica zangado com Deus, mas também o ama, o louva e o adora. Quem vai entender? Pode querer largar tudo e seguir outro rumo, mas a chama que consome seu coração não o deixa pensar em outra coisa senão ser pastor (Jr 20,9). O estar com as pessoas, falar e ouvir, ensinar e ser ensinado enche o pastor de regozijo.

Pastor tem problema de coração. Ele não propriamente escolheu, mas é pastor. Corre um sério risco de ficar solitário mesmo cercado de pessoas, mas é pastor; pode viver a alegria de um casamento e a tristeza de um culto fúnebre em minutos, por isso ele é pastor; acordar de madrugada para atender ao telefone e do outro lado esta alguém chorando e desesperado pedindo socorro, quando não chega à sua porta, isso o torna pastor. Ele é pastor, se pensar bem até não queria ser, mas é. E tem um orgulho danado de ser e se pudesse não seria outra coisa senão pastor.

Coração de pastor é muito grande. Sempre cabe mais um para dar carinho, atenção, chamar atenção. É coração de mãe e pai, como diria Paulo (1Ts 2,7-12). Coração de pastor é assim: consola; exorta; alegra-se com as conquistas; chora com as derrotas que a vida reserva; ri das bobagens faladas na roda de amigos/ovelhas; dá uma palavra de conforto e otimismo; ora junto; lê a Bíblia junto; come junto; vive junto.

O Pr. Natanael tem um coração de pastor. É alguém que prefere servir a ser servido, amar a ser amado, dar a receber, perdoar a ser perdoado. É alguém que valoriza mais as pessoas que os programas e estratégias; é alguém que olha mais para o ser humano do que para as regras. É um pastor que só pode ter problema de coração, porque ama muito, muito mesmo.

“Amar sempre significa ser vulnerável. Ame algo, e seu coração com certeza se contorcerá e se quebrantará” C. S. Lewis.

Parabéns pelo seu novo ministério,

Pr. Alonso Gonçalves, Igreja Batista Memorial em Iporanga/SP

29.8.08

EXPERIMENTAR DEUS

Ele está lá. Experimentando a dor, o desespero e o medo.
Para alguém que viveu a sua vida para amar e amou os seus até o fim, encontra-se agora pendurado num pedaço de madeira. Não queria, mas está; tentou evitar, mas não teve jeito. Vitimado por sua própria mensagem, o Reino de Deus.

Ele só queria que Deus fosse mais acessível e presente para o seu povo que aprendeu que a realidade divina é transcendente. Por causa desta postura, foi chamado de blasfemo, de louco, herege e beberrão.

Deus para ele não era um conceito, uma doutrina. Viveu a profundidade da relação com Deus ao ponto de chamá-lo de Abbá, paizinho. Para quem ouvia isso era um absurdo – “onde já se viu referir-se a Deus desse jeito?” Inconcebível. Imperdoável.

Ele queria colocar vida naquele sistema religioso que oprimia o pobre e acentuava a condição social de “favorecidos de Deus” de quem detinha o poder religioso. Era uma nova postura, uma nova maneira de ver Deus e experimentá-lo no cotidiano.

Agora ele esta lá. Gemendo de dor e agonia. Vivenciando a solidão de Deus: “Deus meu Deus meu, por que me desamparastes?” Ele grita. Grita porque os seus amigos o abandonaram; ele grita porque aquele povo que ele teve tanta compaixão e foi como pastor preferiu Barrabás.

Não tem um porquê. Não tem explicação. Ele não procura saber a causa do sofrimento humano, apenas participa; ele não procura entender a morte, apenas chora pelo amigo que se foi; ele não faz nenhum tratado sobre o mal, apenas certifica-se de que ele está aí.

A sua experiência com Deus não pode ser medida por aquele momento de desespero e dor. O resultado de sua vida não foi a cruz, mas foi a sua espiritualidade com Deus.

O ódio não está na cruz; a falta de amor não está na cruz; a falta de perdão não está na cruz. Está na cruz a compaixão, o amor, o perdão aos assassinos. Está na cruz um homem que viveu para a sua mensagem, o Reino de Deus, e morreu por ela. Está na cruz alguém que foi um filho melhor, um amigo melhor, um irmão melhor, um cidadão melhor porque experimentou Deus de maneira intensa e profunda.

Pr. Alonso Gonçalves
Iporanga/SP

25.8.08

O TEMPO E A VIDA

Homenagem a irmã Domingas Tavares pelos seus oitenta anos de idade

Não sei se você tem esta impressão, mas o tempo assusta. A nossa vida é tão efêmera que pensar no próximo ano chega a dar até mesmo desespero. O tempo é está dimensão que nos cerca do qual nós dividimos entre passado, presente e futuro. E mesmo assim não podemos vivenciar os três: o que passou não volta mais e o futuro ainda não chegou, resta mesmo viver o presente, pois é com ele que construímos o futuro.

Nesta pastoral não quero pensar no que faria com os meus oitenta anos, se é que chegarei lá, até porque só tenho vinte e seis anos de idade. Dedico a uma vida que já viveu muitos anos e tem muita história para contar. Quero pensar no tempo e na vida, e desde já irmã Domingas minhas desculpas por filosofar um pouco, é o hábito.

Nós, os ocidentais, temos uma maneira de demarcar o tempo, apenas isso. O tempo mesmo, alvo de discussões entre os filósofos, não conseguimos parar. É por isso que dizem que não é o tempo que passa, mas nós que passamos por ele. Essa idéia de marcar dias e anos surgiu, aproximadamente, há 3000 anos antes de Cristo lá com os chineses, egípcios ou sumérios, com base na observação do Sol e da Lua. Nosso calendário é tipicamente romano, a julgar pela palavra – calendarium (é latim) – que era um livro de contas para marcar os juros daqueles que pegavam dinheiro emprestado. O tempo mesmo não pede licença para ser o que é. Nós apenas o percebemos com os nossos corpos e as coisas que vão mudando, para melhor ou pior, nos últimos anos para pior.

O tempo só é tempo porque surgiu a vida. A vida é e sempre foi dádiva de Deus. Pensar que há cerca de 3,8 bilhões de anos, nos oceanos, sob a combinação de 20 aminoácidos, irrompeu a primeira célula viva, e contando com um processo evolutivo, que não poderia deixar de ter um Ser grandioso como organizador, a vida se transforma neste emaranhado ser complexo dotado de consciência e necessidades. É a partir daqui que contamos o tempo e seus desdobramentos na vida.

Contar o tempo é medir anos e dias, e eles vêm, querendo ou não. Para alguns ele não passa dos 20, 18 ou até mesmo 15, vitimados pela violência urbana das grandes cidades deste país; outros, como a irmã Domingas, ele chega até os oitenta. Não sei se Moisés (possível autor do Salmo 90) tinha razão quando diz que “os dias da nossa vida sobem a setenta anos, ou, em havendo vigor, a oitenta: neste caso o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos”. Não sei se Moisés tinha este vigor, mas a irmã Domingas posso garantir, têm! Acorda cedo, faz café; costura como ninguém; vai ao templo nos dias de culto e nos dias que não tem culto; visita a cozinha sempre e esperava ver a mesma pronta para encher o coração de alegria; visita os irmãos e irmãs; ora muito, muito mesmo; participa das atividades da igreja com zelo e dedicação. Não sei se o nome para isso é vigor, mas se for à irmã Domingas têm. Apesar das fragilidades do corpo que demanda cuidados com o passar dos anos, mas mesmo assim vigorosa. Quanto ao corpo, ele apenas denuncia a passagem que fazemos pelo tempo. Ele é a comunicação do que fazemos nesta vida – os amores vividos, os ódios sofridos, as dores padecidas, a história percorrida, a cultura adquirida, os hábitos, as manias, as alegrias...

Hoje se fala muito em felicidade na vida. Pessoas correm atrás da tal felicidade. O que a maioria das pessoas desconhece, é que a felicidade não é um lugar aonde se chega, mas um jeito como se vai. Alguns a encontram no dinheiro, nas compras, nas drogas como álcool e entorpecentes. Mas há quem a encontra no doador da Vida, a base da nossa existência; naquele de quem nunca saímos porque “nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At. 17,28). A felicidade seria aquele momento de completude: um sentimento que invade a vida e enche ela de significado e alegria, mesmo que as circunstâncias não sejam para tanto, e de paz, mesmo que haja guerras.

Olho para pessoas como a irmã Domingas, e vejo a felicidade. Não esta de ter dinheiro e sucesso na vida. Aliás, sucesso é algo tão relativo. Felicidade aqui, pela perspectiva da dona dos oitenta, é poder estar no templo com os irmãos e sentir o abraço, o sorriso, o carinho, o amor fraterno. É estar pronta para servir os irmãos que vêm trabalhar na construção; é poder ajudar a fazer aquela comida gostosa nos “Junta Panela” que a igreja promove para aproximar mais os irmãos uns dos outros; é cuidar da hortinha no fundo do salão social. A felicidade, com certeza, esta nas pequenas coisas da vida: no neto que nasce; na filha que casa; no conselho que é dado; na oração que é feita; na história que é contada; nas belezas que são vistas.

A vida e o tempo é assim, um depende do outro para ser o que é. Contamos o tempo com a vida, e vivemos a vida com o tempo. O que conta mesmo é o que fazemos com a vida que passa pelo tempo. O resultado pode ser a felicidade ou a infelicidade de não ter vivido a vida.

Quanto a Moisés, bem. Se o Salmo 90 é mesmo dele, ele passou dos oitenta, chegando a cento e vinte anos (Dt. 34,7).

Quanto a irmã Domingas, esperamos que esteja conosco até o tempo deixar.

Parabéns pelos seus oitenta anos, que Deus continue abençoando a sua vida.

Pr. Alonso Gonçalves

16.8.08

ELES ESTÃO DE VOLTA

Eles voltaram. Seus nomes estão nos muros da cidade, nos carros de som, nas camisetas, nos “santinhos”. É impossível ficar despercebidos com a presença deles. Você pode até os encontrar pessoalmente nas esquinas das ruas, geralmente discutindo sobre as melhorias que a cidade precisa. Eles são assim, desprendidos: pegam nas mãos de todos que chegam perto; acena para quem olha; distribuem sorrisos; sobem morro; caminham nas ruas lamacentas; acolhem abraços de desconhecidos; conversam com quem não conhecem. Estão à caça de votos. É gente sedenta de trabalho comunitário, e que não vê o momento em que poderá, finalmente, ajudar o povo em suas mazelas diárias; gente preocupada com o bem estar da população; cheias de boas intenções e nenhum interesse pessoal. O que os move para essa tão árdua e sacrificante vida pública é o desejo ardente de servir o povo. É uma gente que procura estar bem com sua consciência ao deitar no travesseiro e ter a certeza do dever cívico cumprido.

Eles não estão nem um pouco preocupados com os salários e os benefícios que irão receber custeados pelo povo que paga seus impostos para sustentar a vida dura que eles, como representantes do povo, levam. Eles fazem questão de se desdobrarem em cima de discussões profícuas nem que para isso tenham que convocar assembléias extraordinárias mais de uma vez por mês. Mas não pense que é pelos honorários que eles têm direito quando isso acontece, de jeito nenhum. É porque eles querem aprovar leis que melhorem a vida da população o mais rápido possível. E quando eles dificultam para o poder executivo em algumas questões não é porque não gostam de quem estar no cargo, é porque estão avaliando melhor as condições do município.

Como nós não os compreendemos. Eles não dão a mínima para as bajulações que recebem, aliás, eles reprovam isso com veemência; não estão atrás dos aplausos; não estão preocupados com o reconhecimento que alguns desavisados e desenformados dos seus deveres como políticos fazem ao colocar seus nomes em faixas de agradecimento por alguma benfeitoria realizada na cidade. Isso não é necessário, pois estas coisas não são nenhum status pessoal para eles, pelo contrário, eles entendem como obrigação!

Nós não damos o devido valor a eles por se colocarem de coração aberto e dispostos a serviço do povo. Precisamos valorizar a decência deles em não fazer conchavos para garantir prestigio; precisamos valorizar a capacidade que eles têm de não transformar a política do bem comum para todos em barganhas para obter apoio com gente que não detém nenhum espírito público. É incrível como nós não valorizamos a honestidade que eles têm em não aceitar ofertas escusas que venha aumentar seu patrimônio ou beneficiar interesses de terceiros.

Precisamos elogiar a intelectualidade deles porque conhecem a base filosófica da política na sociedade ocidental. Eles sabem que a raiz do nosso conceito político veio da Grécia Antiga, e que foi os gregos que inventaram este sistema de representatividade, tirando das mãos dos tiranos e déspotas da época o domínio sobre o povo, há mais de 2.500 anos antes de Cristo. É claro que eles sabem que o berço da democracia, que quer dizer governo do povo, se deu na Grécia. Eles até já leram Aristóteles, o filósofo que teorizou a política pública grega, e sabem muito bem que os ideais de sua filosofia política visam exclusivamente o bem estar da população e a preocupação em melhorar as condições dos cidadãos buscando sempre o interesse da coletividade. Dominam e muito a capacidade de formular leis e projetos.

Quem disse que eles fazem politicagem, aquela maneira suja e nojenta de privilegiar os interesses próprios em vez do povo. De jeito nenhum, isso não existe. Depois de eleitos pelo voto da maioria eles governam e legislam para todos, independentemente de quem tenha votado.

Eles estão de volta, e precisam do reconhecimento da população de que são homens e mulheres que se colocam com um propósito bem especifico e definido: servir aos interesses da população. O que eles mais querem é aquilo que muitos antes de nós lutaram e deram o sangue para conseguir – o voto.

Pr. Alonso Gonçalves
Iporanga/SP

1.8.08

COMO ERA BOM...

(Publicado no Boletim Dominical da Igreja Batista Memorial em Iporanga, em homenagem ao Dia dos Pais - 03.08.2008)

Era fim de tarde, ele estava para chegar. Sabia que aquele dia ele trabalhara muito dirigindo um caminhão cheio de concreto pelo trânsito frenético e caótico da cidade de São Paulo. Ao entardecer esperava ele apontar no começo da avenida do bairro, cheio de expectativas. Não sei porque fazia isso, talvez fosse só aquele momento em querer ver aquele que na minha cabecinha era o portador de segurança, amor, provisão... Este era meu pai. Alguém que viveu a vida para trabalhar. Saia às 5 horas da manhã e retornava as 18 e até as 21 horas. Lembro-me que quando ele chegava uma das coisas que fazia era pegar o violão; em minha família sempre teve músicos, e alguns muito bons mesmo, e por isso meu pai insistia, logo cedo, para que eu e meu irmão aprendêssemos um instrumento, foi assim que ganhei meu primeiro contrabaixo. Ele não sabia muita coisa no violão, mas cantava algumas músicas da igreja e nós ouvimos; e hoje me pego cantando essas músicas tomando banho e orando, e é por isso que conheço boa parte dos corinhos que as irmãs de nossa igreja conhece. Nessa época a televisão não era a coisa mais importante de uma família, isso só foi possível porque meu pai não deixou que ela fosse.

Era bom... Bom acordar no domingo de manhã e correr para o banheiro porque a Escola Bíblica Dominical era cedo e o pai não gostava de chegar atrasado. Aliás, uma das coisas que ele sempre ensinou - "igreja é lugar para ficar comportado". Criança, ah! Você já viu. Ouvia mas não guardava. E quando fugia da sua vista, fazia uma baguncinha - ninguém é de ferro. Mas teve um dia que me dei mal. Terminei de tocar e logo fui para fora do templo. E lá fora muita risada, falar das meninas, das músicas... o papo era bom. Meu pai ouvia aquela bagunça e algazarra de dentro do templo. No caminho ele diz: "quando chegar em casa nós vamos conversar". Naquele dia tive medo. O suor ficou frio, a barriga teve calafrio, o batimento cardíaco aumentou e desci a avenida do bairro pensando na desculpa que falaria para ele - até então nunca tinha levado uma surra. Chegamos em casa e o medo não deixava entrar na porta. Ele diz: "senta aqui. A Bíblia diz isso sobre os filhos, e você vai levar uma surra para aprender a se comportar na igreja". Foram somente quatro cintadas que valia por quinze da minha mãe, mas aprendi. Não sei se este é o melhor método, mas funcionou comigo.

A verdade é que só vim perceber a importância do meu pai na minha vida depois que a vida me deu oportunidades para decidir. Foi aí que pesou o caráter daquele homem que falava pouco, mas dizia tudo com a sua vida. Percebi que a vida é feita de pequenos momentos e que as pessoas, assim como o meu pai, marcam nossas vidas de uma maneira imensurável, tanto que hoje sou pastor e boa parcela disso o pai tem culpa, portanto se o irmão quiser reclamar fale com ele.

Pai é para toda a vida, não escolhemos, temos.

A CRISE DO PAI

(Palestra apresentada no Encontro de Casais na Igreja Batista Memorial em Iporanga)

Pr. Alonso Gonçalves

Em uma sociedade que prioriza o ter em lugar do ser, as relações sociais estão cada vez mais subordinadas as circunstâncias do dia-a-dia. Os modelos de família passam por transformações que qualquer despercebido consegue ver algumas posturas inovadoras que são fruto do sistema cultural que os estudiosos em sociologia chamam de pós-modernidade. Dentro deste momento cultural de viver as realidades familiares, vemos que a identidade do pai esta confusa na sociedade pós-moderna. Os papeis não são definidos. A diversidade de uniões dificulta ainda mais a identificação de quem é quem na sociedade. Este quadro tem trazido problemas familiares e sociais. O fato é que nem todos têm consciência de que a figura do pai esta ficando desbotada.

Antes de analisar o desaparecimento da figura paterna, vejamos os modelos de família que foram surgindo em nossa sociedade. Houve um tempo em que o centro familiar era o pai. Essa estrutura de família é conhecida como patriarcal. Ainda é assim em regiões rurais. O pai tem a palavra final e é respeitado como homem da casa e dos negócios, onde, naturalmente, os valores familiares são estabelecidos por ele.

O êxodo rural-urbano das décadas de 50 e 60 forçou o surgimento de outro modelo de família, conhecida como participativa. Marido e mulher assumem todas as tarefas domésticas: educação dos filhos, trabalho etc., sempre num sentido cooperativo.

A sociedade pós-moderna instituiu o modelo familiar conhecido como nuclear. Por causa da urbanização acelerada dos grandes centros e a crescente necessidade de trabalho, pai e mãe trabalham fora. Ocorre a terceirização das funções familiares que antes eram próprias da família (aliás, as funções familiares estão cada vez mais restritas nesta sociedade). Na terceirização das funções da família o cuidado do bebê é feito pela babá; os pais não têm tempo para ficar com a criança, pois ambos trabalham para sustentar o status quo, portanto a saída é colocar a criança numa creche; e quando se tem um dos dois em casa, ainda na sua maioria a mulher, que regula a educação da criança é a TV, um meio utilizado para distrair a criança enquanto a mãe faz as tarefas domésticas, a criança fica a mercê de todo o tipo de conteúdo sem qualquer restrição.

A crise do pai tem raízes que aqui não teria espaço e muito menos competência para analisar. Mas sucintamente podemos apontar pelo menos três eixos norteadores: (1) o trabalho – o regime de trabalho industrial ocupa o pai de forma muito intensa, restando pouco tempo para os filhos. Geralmente saem cedo e chagam tarde. A esse papel de trabalhador foi acrescido a figura do pai provedor. Aquele que traz o sustento da família, que paga as contas; (2) o machismo – criticou-se tanto o homem por ser machista. O papel do pai foi demolido porque tudo que ele poderia opinar era visto como machismo. A sua autoridade não dizia respeito às ações dos filhos/as, isso era coisa para a mãe; (3) o movimento feminista – as mulheres reivindicam a igualdade entre os sexos, em certos aspectos certíssimos. Surge com o slogan “o mundo é nosso”. A partir daí a figura de uma mulher independente aparece: o mercado de trabalho torna-se uma realidade, as opções tornam iguais para homem e mulher. Este momento é bem evidenciado em alguns comerciais de TV, por exemplo, cito apenas dois: o comercial do café “Pilão” em que aparece uma mulher fazendo o tal café e experimentado, faz uma expressão de felicidade e sua última frase é “se o marido não gostar, troca de marido”. O outro comercial é do arroz “Pileco”. Ela esta fazendo o arroz e comendo e sua última frase é “depois você chama o marido, para lavar a louça”. Esta não é nenhuma observação de um machista, pelo contrário, as mulheres merecem todo o crédito pelo que conquistaram ao longo da história deste país, inclusive o direito ao voto, ao mercado de trabalho e a participação política, e não se surpreendam em ver daqui alguns anos uma mulher governando este país, e com muita competência e sensibilidade. O ponto aqui, é que o movimento feminista exagera quando coloca a mulher com o papel central na família.

Quando se colocou as coisas num nível de competição e superação, a figura paterna ficou relegada.

Contando ainda a tendência para a omissão de certos pais na condução da casa, onde tudo ele empurra para a esposa resolver, vemos um imenso buraco na formação da criança.

Não é preciso ser psicólogo para entender que a formação de uma criança passa pela via da mãe-pai. A psicologia educacional trata bem isso quando aponta os papeis definidos do pai e da mãe na formação dos filhos. A mãe representa o aconchego, a satisfação dos desejos, a intimidade. O pai, por outro lado, é lhe dado a responsabilidade de introduzir na criança os conceitos de ordem, disciplina, do correto, do dever. É por isso que em muitos casos quando o pai trabalha e mãe é dona de casa e o filho apronta algumas ela logo diz: “quando o seu pai chegar ele vai ter uma conversa contigo”. A ele é dado o reconhecimento da autoridade. Tanto pai e mãe são responsáveis por inculcar valores femininos e masculinos na criança, e na ausência de um dos dois a formação dos filhos fica comprometida.

O desaparecimento da figura do pai tem conseqüências desastrosas. Em um livro escrito por Leonardo Boff, São José: a personificação do Pai, ele relata uma pesquisa feita nos Estados Unidos com jovens que apresentavam desvios de comportamento: 90% dos filhos que fugiam de casa não tinham o pai; 70% dos jovens que se envolviam com crimes o pai era ausente; 85% dos jovens na prisão não tinham a presença do pai; 63% dos jovens suicidas não tinham o pai. Não precisa estar nos Estados Unidos para saber que isto se estende também aqui no Brasil.

Neste dia dos pais vai o nosso apelo: seja pai. Aquela figura que inspira amor e respeito, carinho e firmeza, doçura e integridade. Educar não é nenhuma tarefa fácil, mas quando se tem amor tudo fica mais fácil.

Feliz dia dos pais.

OS ENCONTROS DE JESUS NO EVANGELHO JOÃO

Pr. Alonso Gonçalves
Igreja Batista Memorial em Iporanga/SP

O evangelho de João reúne três diálogos interessantes: com o fariseu Nicodemos (cap. 3), com a imoral samaritana (cap. 4) e a mulher adultera (cap. 8). Na verdade este modelo de dialogo se transforma em monologo, onde personagens surgem apenas para ajudar a desenvolver um tema peculiar. Por isso a mudança do singular para o plural.

O evangelho joanino não esta preocupado em situar Jesus em certas circunstâncias, como nos Sinóticos, ele quer fazer teologia. Os diálogos são discursos com este fim.

Quem tem um encontro com Jesus, alguma coisa acontece. O autor de João gosta muito de usar o termo krisis para julgamento. A presença de Jesus provoca uma crise existencial e força a uma resposta: sim ou não.

Quem se deixa envolver com Jesus há transformação. Há um novo sentido na vida. Há uma nova compreensão das coisas.

Em um tempo em que os tidos “encontros” com Jesus tem sido, na sua maioria, superficiais, o exemplo desses três personagens tem a nos ensinar algumas coisas.

Nicodemos: não era um homem ruim. Suas qualidades são ressaltadas no texto. Era fariseu, ou seja, conhecia a Lei de Israel; um dos principais dos judeus, provavelmente membro do Sinédrio judaico, posto de honra e poder. O Sinédrio controlava a vida política, econômica e religiosa do povo judeu.

Ele nutre simpatia por Jesus, por isso o encontrar com Jesus. Nicodemos é como aquelas pessoas que freqüentam o templo, gostam da música, ouvem até de bom grado a mensagem, conversa com os irmãos, mas não gostaria de ser reconhecido como mais um. Estes não gostam de ser vistos de dia, apenas de noite. Assim como Nicodemos, não quer se comprometer.

Para ele o Jesus joanino diz: “nascer de novo”. Entra aqui o esquema dualista da teologia joanina: luz/trevas, verdade/mentira, carne/espírito. O espírito infundido por Deus é que dar capacidade para amar e ver as coisas de Deus, ele é livre como o vento. Atua independente da capacidade humana. Não quero aqui entrar nos significados exegéticos da água e do espírito, se é a palavra ou o batismo: o fato é que não basta ter simpatia por Jesus, conhecer a Lei, ser importante, é preciso nascer de novo. É preciso se comprometer com Deus e seu Reino.

A mulher samaritana: é uma dessas pessoas que muitos de nós não gostaríamos de encontrar na rua. São pessoas que estão à margem do ideal moral que muitos de nós, com hipocrisia, nutrimos. Ainda bem que Jesus não se parece nem um pouco com a nossa tendência arrogante de ver as pessoas de baixo pra cima.

O texto diz que os judeus não se davam bem com os samaritanos. Estava ali um judeu, homem, falando em plena luz do dia com uma mulher e ainda samaritana. Para completar o quadro, ela não tinha uma vida muito correta: já havia tido diversos maridos.

Ela vai buscar água por volta da hora sexta, isto é, meio-dia. Um horário nada convencional para apanhar água.

É com gente assim que Jesus trata e a igreja deveria tratar também.

Ele oferece água viva. Uma mudança de vida, uma nova postura frente a realidade da vida. Ela aceita esta água.

A mulher adultera: adultério é pecado, mas para Jesus é pecado também negar o perdão e uma segunda chance para as pessoas. Ele sabe que nós sempre estamos prontos a tacar pedras nas pessoas que julgamos serem diferentes de nós. Apontamos o dedo nas feridas dos outros e julgamos estar acima do bem e do mal, e em diversas situações não reconhecemos o ser humano com suas deficiências que esta do outro lado. Jesus a viu, talvez seja por isso que este texto ficou fora por muito tempo do evangelho de João.

“Olhem para vocês!” Esta é a palavra de Jesus para aqueles que negam o perdão para fazer valer a Lei. Para Jesus o perdão não tem prazo de validade, ele é doado, independentemente de quem o recebe.

Os encontros com Jesus sempre provoca algo. O mais interessante é que a comunidade primitiva compreendia que Jesus não queria se encontrar com os santos e purificados, prepotentes e arrogantes que julgam não necessitar de mais nada. Ele quer se encontrar com um Nicodemos que tem medo de ser visto na sua companhia e não sabe ainda lidar com seus temores e com perguntas sobre a vida que realmente interessa; ele quer se encontrar com aquele/a que leva uma vida desregrada; ele quer se encontrar com aquele/a que necessita de uma segunda chance para continuar a viver e erguer a cabeça e superar os erros cometidos.

17.7.08

A TEOLOGIA DO BOTECO

Em Lucas 16: 1-9 Jesus conta a parábola do Administrador Infiel. Era um homem que roubava dos bens de seu patrão e foi descoberto. Ao ser descoberto ele chama os devedores de seu patrão e cobra destes menos do que deveria e assim ganha a simpatia deles que poderiam apoiá-lo num futuro próximo. Então no verso 8 Jesus elogia, não a desonestidade, mas a astúcia deste administrador, ressaltando que podemos aprender algo com as atitudes de incrédulos.

Veja bem, Jesus não aprova a desonestidade e esta pastoral não é uma apologia e nem julgamento a quem ingere bebidas alcoólicas (apesar de crer que Deus nos chamou à abstinência de álcool!), o objetivo dela é só traçar um curioso paralelo entre o pessoal que fica nos botecos e os que ficam na Igreja! Vamos lá:

Quando está frio o pessoal vai para o boteco “tomar uma” e esquentar, o pessoal da Igreja fica embaixo das cobertas em casa!

Quando está quente o pessoal do boteco vai “tomar uma” para refrescar, o pessoal da Igreja vai passar o fim de semana na praia!

O pessoal do boteco sempre tem um dinheiro para tomar mais uma, o pessoal da Igreja está sempre sem dinheiro para a cantina da Igreja, o dízimo, o passeio com o pessoal, etc...

O pessoal do boteco conversa bastante, o pessoal da Igreja chega atrasado e sai adiantado do Culto e nem cumprimenta ninguém!

O pessoal do boteco vai lá todo dia e quando viaja de férias acha um boteco pra ir. O pessoal da Igreja vem uma vez por semana e quando viaja foge de ir à Igreja, porque afinal está de férias!

O pessoal do boteco quando o amigo ou o parente vai visitar leva ele pro bar, o pessoal da Igreja quando tem visita falta no Culto!

O pessoal do boteco não tem pressa de ir embora, o pessoal da Igreja quer cultos mais curtos!

O pessoal do boteco trabalha durante o dia e encerra o expediente no bar, o pessoal da Igreja falta no Culto porque tem que trabalhar.

O pessoal do boteco quando tem problema em casa, no serviço, de dinheiro, de saúde ou o que for, vai pro bar para “esquecer”, o pessoal da Igreja quando tem os mesmos problemas falta nos Cultos porque tem mais o que fazer!

O namoro, os amigos, o trabalho, os estudos, o jogo de futebol, a família, ter que limpar a casa e lavar o carro, visitar os parentes, ir na festa de aniversário ou descansar não tira o pessoal do boteco, mas tira o pessoal da Igreja!

O pessoal do boteco trabalha duro a semana toda e vai pro boteco, o pessoal da Igreja trabalha duro a semana toda e falta na Igreja!

O pior de tudo: o pessoal do boteco não freqüenta a Igreja, o pessoal da Igreja freqüenta o boteco!!!

Dá para aprender algo com esta “teologia do boteco”?

Pr. Rodrigo de Frias Fontana
Igreja Batista em Sousas, Campinas (SP)

13.7.08

MAIS UM POUCO SOBRE IGREJA

Para muitas pessoas, "igreja" é um lugar aonde ir. Ou uma instituição ou uma organização. Alguém que dizia seguir a Jesus referiu-se assim à igreja: "não tenho mais nenhum interesse nesta instituição". Recebi um e-mail de um ignoto, falando mal da igreja e se despedindo, pois se afastava. Sua carta, além de inconsistente, cheirava a ódio. Respondi a quem me encaminhou o e-mail: "já vai tarde. Não fará falta alguma". Nunca entendeu o que seja igreja.

Mas também recebi bom e-mail de uma ex-ovelha de Brasília, advogada, afeiçoada à nossa família e nós à dela. Ela se lembrava de uma frase que eu disse num sermão: "se você procura uma igreja perfeita, quando a encontrar, não entre nela para não estragá-la".

As pessoas cobram da igreja o que elas não são. É um paradoxo. Igreja não é instituição nem organização, nem lugar. Segundo a Bíblia, "igreja é gente". Quem fala mal dela fala mal de si. E é arrogante, portando-se como se fosse superior aos outros. Não sou um oráculo de Iahweh, mas em 36 anos de ministério notei que os crentes que mais falam mal da igreja são problemáticos. Nunca vi um crente piedoso, engajado, equilibrado, combater a igreja. Só os insubmissos, amargos e desagregadores. Que quando saem, a igreja melhora.

Os críticos da igreja são críticos do corpo de Cristo. Há pessoas que têm uma visão de cristianismo muito pessoal, para a qual querem adesão. Não a tendo, se revoltam e acham que todos estão errados. Cobram de outros o que elas não dão: perfeição moral, vida amorosa, absoluta integridade espiritual.

A igreja é um grupo de pessoas que provou a graça de Deus em Jesus, creu nele, comprometeu-se com ele e o segue. Não é perfeita. Deus não terminou sua obra em nós. Temos falhas e somos imperfeitos. E precisamos uns dos outros. Não existe cristianismo privado. O cristianismo exige compartilhamento e mutualidade. A igreja é um grupo de pessoas com suas vidas interligadas em Cristo, procurando viver em solidariedade e apoio espiritual.

A igreja precisa de amantes, não de apedrejadores. Ame a igreja.

Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho
Pastor da Igreja Batista do Cambuí – Campinas/SP

Publicado no "O Jornal Batista" - 02/03/08

SOMOS DIFERENTES?

Conheço pessoas, e você também deve conhecer, que pratica coisas que discordamos e que achamos um absurdo. Alguém que compra algo mas não paga; alguém que sempre busca levar vantagens em tudo; discute com alguém e fala palavras horrendas para a outra pessoa; alguém que passa anos sem conversar com a outra pessoa porque em algum momento ela foi magoada e ofendida, e como não têm a prática de pedir desculpas ou perdão, fica ruminando aquilo por anos. Você deve conhecer pessoas assim. Na sua maioria são pessoas que não tiveram uma experiência com Deus por meio de Jesus Cristo, e para elas não faz a menor diferença fazer o contrário ou pensar diferente.

E nós, membros da Igreja que postulamos uma fé e afirmamos com o nosso hábito de vir ao templo de que participamos do Corpo de Cristo e que portanto temos uma "experiência" com Deus por meio de Cristo, somos realmente diferentes?

Em um dos textos do evangelho de Mateus, é nos apresentado uma ética ou um comportamento que deveria exceder ao daquelas pessoas que não têm um relacionamento com Deus. "Se vocês amam somente aqueles que os amam, por que esperam uma recompensa de Deus? (...) Se vocês falam somente com os seus amigos, o que é que fazem de mais?" (Mt. 5,43-48 - leia o texto inteiro).

Parece que não somos tão diferentes dos outros, que costumamos chamar de "incrédulos". Quando não gostamos de um irmão não falamos com ele, ainda mais se ele nos "ofendeu" de alguma maneira. Ele passa a não mais merecer a minha mão, nem mesmo os meus olhos em sua direção. E não há diálogo porque uma pessoa (irmão) assim não se pode conversar.

É sempre mais fácil conversar com quem não têm problema nenhum; amar alguém em que não há nenhum tipo de conflito. As pessoas que não postulam a mesma fé que nós fazem isso de uma maneira bem tranqüila, afinal de contas elas não têm Cristo como referencial de vida.

Estou me convencendo de que não somos diferentes. Às vezes fazemos a mesma coisa que aqueles que não conhecem a Deus, aliás se fazemos a mesma coisa, será que conhecemos este Deus apresentado por Jesus - tenho dúvidas. Acredito que seria mais sensato admitir de que não somos tão diferentes daqueles que não estão na Igreja, e que por isso não precisamos disfarçar uma "comunhão" medíocre e pecaminosa - pois é isso que é - quando participamos do Corpo de Cristo (Ceia do Senhor) e não reconhecemos aquele irmão como parte da comunhão o ignorando.

Amamos quem nos amam; falamos com quem são nossos amigos; e quem não é... dá licença! Porque por algum momento a pessoa deixou de ser digna do meu sorriso, aperto de mão e de um olhar. Se for assim não sei o que Cristo representa para nós - Cristo? Quem é este?

O que vemos são pessoas acostumadas com a Igreja e com a rotina do culto. É gente fria com Deus e imperceptíveis ao seu mover, mas se apega ao vir ao templo e isso basta. A reunião dos santos já não produz nenhum significado vivo. Senta-se no mesmo banco, pensa-se da mesma forma e age da mesma maneira sempre. Por isso a incapacidade de agir diferentemente daqueles que não conhecem a Cristo, se é que um dia o conheceram.

30.6.08

JESUS: O PREGADOR DO REINO DE DEUS

Nem sempre se soube lidar com a figura de Jesus. Para alguns no cristianismo primitivo ele tinha aparência de humano, mas não era – concepção conhecida como docetismo; outros postularam sua humanidade, mas que em algum momento ele foi adotado por Deus e elevado a condição divina – concepção conhecida como adocionismo. Sempre houve polêmica em relação a Jesus. Os debates nos Concílios sobre as duas naturezas e a luta contra o gnosticismo sempre levaram a igreja a formular doutrinas a respeito dele. Quando tornaram Jesus parte da Trindade, a teologia católica viu a necessidade em se buscar outro símbolo para ocupar o lugar daquele que deixa de ser humano para se tornar divino. O subterfúgio vem com a teologia mariana na Idade Média e o dogma da Assunção de Maria sancionado pelo Papa Pio XII em 1950. No século XIX e XX os fundamentalistas do norte acentuaram mais ainda a natureza divina de Jesus como reação e resposta a chamada teologia liberal nascida no velho continente. Esse Jesus desenhado pelos fundamentalistas estava envolto em três temas: o berço, a cruz e o túmulo. A grande preocupação era com a sua divindade e sua obra salvífica. Enquanto a teologia, ora denominada de liberal, apregoava de que era preciso resgatar os ensinos de Jesus, uma vez que a teologia ortodoxa sempre se preocupou em formular doutrinas teológicas sobre ele.

O fato é que o Jesus de Nazaré que chorou, riu, sofreu, alegrou-se e morreu, foi substituído por um Jesus transcendente e inacessível. A sua humanidade deu lugar a sua divindade utilitária apenas para fim soterilógico. Não esta se negando a divindade de Jesus, o que poderia ser abordada em outra ocasião, esta se expondo a necessidade de atentar para aquele homem que viveu e morreu em função de sua mensagem: o Reino de Deus. Hoje, a maioria de nossos irmãos desconhece o centro da mensagem de Jesus. Para muitos ele é o salvador “das nossas almas” e sua vida e ensino se resume nisso; outros ainda o confundem com um santo milagreiro; sem mencionar nos novos modismos teológicos, se é que podemos assim chamar, em que Jesus não passa de um meio para se receber bênçãos, na sua maioria de consumo. A mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus não é muito lembrada por aqueles que fazem profissão de fé em nossas igrejas; o “venha nós o teu Reino” quase ninguém entende. Não há comprometimento com o Reino de Deus pelo fato de desconhecerem as exigências da mensagem pregada por Jesus.

A grande obsessão de Jesus foi com o Reino de Deus. Sei que nem todos ficam contentes com isso, mas a verdade é que Jesus em nenhum momento quis fundar o cristianismo. Este só surgiu depois da vida, morte e ressurreição. O cristianismo é mais um resultado do que um propósito. Ele pregou o Reino de Deus e em lugar dele veio a Igreja. Jesus não fundou a Igreja, mas acabou sendo fundamento dela, como dizia Karl Rahner.

Ao iniciar sua caminhada naquelas terras áridas de um povo que não agüentava mais esperar pela intervenção de Deus; gente sofrida e calejada pela vida, mas que nutria a esperança em ver novamente seu povo livre da dominação estrangeira e a instauração do tão esperado Reino de Deus, o filho do carpinteiro, que vem de uma cidadezinha que quase ninguém conhecia direito, começa pregando o Reino de Deus.

Era esperado que aquele povo se empolgasse novamente. Seria este que assentaria no trono de Davi? Aquele que iria expulsar os impuros da terra santa? Eram tempos de expectativas (Lc. 3,15). Os discípulos de João Batista manda logo perguntar: “é você mesmo ou havemos de esperar outro?” (Lc. 7,18-22). A questão toda era a natureza deste Reino que Jesus estaria para propor. Não era um reino político, territorial ou guerreiro, mas era um Reino que exigia mudanças na maneira de agir e pensar. Este Reino não poderia ser reduzido a meras expectativas políticas e nacionalistas dos judeus, ele tem outra natureza.

Com esta mensagem Jesus decepciona a todos: discípulos, povo e autoridades judaicas. Perguntam a ele: “quando vem o reino de Deus?” Ele responde: “não poderão vê-lo ali ou acolá, pois ele esta entre vós” (Lc. 17,20-21). O Reino de Deus está aí, é preciso decidir por ele. Há uma nova ordem a ser instaurada por Deus e ela está à disposição de todos. A maior característica do Reino de Deus é a libertação do próprio eu. Era deixar-se ser guiado e tomado por Deus, ser conduzido pelos seus cuidados e estender as mãos para o outro. Este Reino só poderia ter sentido para aqueles que entrassem nele como crianças (Lc. 18,15-17). Agora para aqueles que tinham outro reino dentro de si, como o homem rico, o Reino de Deus não acharia lugar (Lc. 18,18-24).

Jesus de Nazaré. Nasceu entre animais; andou preferindo a companhia dos maus cheirosos, publicanos, zelotes e leprosos. Acabou sendo executado como herege religioso, blasfemo e político subversivo, porque, supostamente, estava tentando ser rei de um povo que o pendura na cruz. Morreu porque se comprometeu com sua mensagem até o último momento de sua vida: o Reino de Deus.

A sua mensagem em nenhum momento foi imposta, é por isso que ele ensina a orar: “venha nós o teu Reino”. Ele não queria criar um novo mundo, mas transformar este velho e conhecido mundo com os valores do Reino. Procurou ser a resposta divina para as mazelas desta vida; ensinou-nos que quando nos abrimos para receber o Reino de Deus mudanças ocorrem, como no caso do pequeno Zaqueu (Lc. 19,1-9).