31.8.15

“EXAMINE-SE”– (CEIA EM 1CO 11)

É algo recorrente. Ceia (celebração da comunhão) como um momento de segregação. Segrega-se quem pode e quem não pode participar em cima de critérios que são passíveis de serem desqualificados.

O denominacionalismo criou formas distintas de celebrar a ceia (que prefiro chamar de comunhão). Cada denominação pratica a celebração de forma diferente e com conceitos variados. Como sacramento (Santa Ceia) e como memorial (Ceia do Senhor). O denominacionalismo também restringiu a participação na mesa da comunhão como mecanismo de censura para alguns grupos ou comportamentos. A Igreja Católica, por exemplo, está discutindo a participação ou não de divorciados na Eucaristia. No caso das igrejas históricas a censura se dá pelo medo e pela culpa. No momento da celebração há um pedido para que os que forem participar fiquem de pé. Logo já se percebe quem irá participar ou não. O irmão/irmã não tem nem mesmo “chance” de se levantar com os demais, se achar que não deve participar. Além disso, é feita uma leitura do texto de 1Co 11 onde se valoriza mais ainda o versículo 28: “examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice”. Aqui é colocado um peso moralista ao ponto de constranger os participantes a não comer e beber do que propriamente como um momento de celebração. Geralmente o “examine-se” se dá em cima de pecados, erros cometidos naquele dia ou semana.

Há algum impedimento para não participar da comunhão?

Talvez o batismo, lembrará alguém. Sim, o denominacionalismo nos ensinou que só participa da Ceia do Senhor que for batizad@. Há algum texto bíblico para isso? Não. Mas também é sabido que o batismo nas primeiras comunidades era algo inerente à caminhada com Cristo. Logo, é possível que todos que participavam da comunhão eram batizados ou logo foram. Algo bem específico está na Didaqué, onde há instrução quanto aos participantes da ceia de que deveriam ser batizados (“Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: não deis as coisas santas aos cães”). Mas o contexto é de falsidade, onde havia um temor quanto aos verdadeiros membros da comunidade. No Novo Testamento (NT) não há nada em específico quanto na Didaqué (considerada a primeira formulação doutrinária dos primeiros cristãos).

Mas há algo em 1Co 11 que impede a participação na comunhão.

O que seria participar de maneira indigna? Participar de maneira descuidada, sem perceber que se trata da comunhão com Cristo e seu corpo (a igreja). O indigno é alguém que ainda não entendeu que a celebração da comunhão é participação na vida comunitária. Era o caso dos irmãos em 1Co 11. Muitos estavam comendo e bebendo (ficando bêbados mesmo, pois se tratava de vinho) sem esperar o outro, sem experimentar uma comunhão; sem perceber de que aquele momento era ajuntamento de uma gente que caminhava em comunidade.

A esses que assim faziam, o apóstolo pede para que se examine. Trata-se de ver algum pecado específico? A questão está no versículo 29: “discernir o corpo”. Para alguns se trata do corpo de Cristo mesmo, sendo possível pecar contra o seu sangue e corpo. O examine-se seria por não entender que se tratava dos símbolos da morte de Cristo. Aqui acompanho alguns comentaristas que entendem se tratar do corpo-igreja. O “examine-se” trata de uma postura quanto à participação. Não se trata de perfeição alcançada e aí sim participar da comunhão. Antes, trata-se de alguém que não entendeu o que é o ajuntamento do corpo de Cristo (a igreja, um tema desenvolvido por Paulo no capítulo 12). Daí que discernir (fazer um juízo correto sobre alguma coisa), é respeitar a comunidade reunida em torno da mesa; considerando que tal momento é propício para a celebração da comunhão com o outro. Assim, quem despreza os membros da comunidade menos favorecidos, também despreza a Cristo e ainda não entendeu a natureza de ser comunidade. Comer e beber na cultura do NT é algo bem diferente que comer e beber no contexto ocidental. Lá, não se trata de uma simples reunião entre amig@s, mas sim de relacionamentos; estreitamento de comunhão. Estar à mesa com o outro é mais que comida, é celebração de vida.

A questão do examina-se se dá quanto à compreensão do outro, não de si mesmo e as possíveis culpas geradas por um sistema religioso opressor. É celebração de vida; celebração de uma comunidade que já experimenta a realidade da ressurreição. Para isso ser possível, é preciso discernir quanto ao que se trata o ajuntamento da comunidade e isso se dá pelo exame, ou seja, perceber que a comunhão é com gente e o comer e beber é um meio para celebrar a presença de Cristo no meio da comunidade de fé.

Referências

BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008.
DIDAQUÉ: catecismo dos primeiros cristãos. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Estudos no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2006.
LOPES, Augustus Nicodemus. O culto espiritual: um estudo em 1Coríntios sobre questões atuais e diretrizes bíblicas para o culto cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.

26.8.15

NOVO TESTAMENTO: DIFICULDADES QUANTO A SUA "INSPIRAÇÃO"

Recorrentemente manuais de Teologia Sistemática (TS) afirmam que o Novo Testamento é inspirado. Palavra grega de difícil precisão (theopneustos) usada exclusivamente em 2Tm 3,16. Termo, sabidamente, grego, uma vez que a concepção helênica de theopneustos carrega um sentido extático.

A preocupação da TS com o Novo Testamento (NT), nesse sentido de inspiração, se dá em relação ao texto da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento). Entende-se que precisa de credibilidade para que o mesmo possa ter status de “revelação”. Se os textos do NT não forem inspirados, no sentido de Escrituras, o esboço teológico construído a partir dele poderia estar comprometido.

Definitivamente para a TS não se trata de um conjunto de textos que foram sendo concatenados com o tempo, sendo um dos propósitos, alimentar a caminhada de uma gente a partir da memória de Jesus e dos Apóstolos. Isso com todos os problemas advindos das traduções e cópias do NT, tema que a Crítica Textual debate.

Fato é que a palavra Escritura, num primeiro momento, não tem um sentido teológico. Quer apenas significar grafia ou escrever. O entendimento de “escritos sagrados” se dá no helenismo, com os registros dos templos ou livros de magia. Entrando aqui cartas e decretos do Imperador, por ser alguém “semidivino”.

Para a Bíblia Hebraica Escritura é katab, escrever. Depois haverá toda uma reflexão em torno da escrita como sagrada.

Quando a TS trata de inspiração das Escrituras coloca em igualdade o Antigo Testamento (Bíblia Hebraica) e os escritos (textos) do NT. Argumentam que “o Novo Testamento, à semelhança do Antigo, reivindica a virtude de ser Escritura Sagrada, escrito profético, e toda a Escritura e todos os escritos proféticos devem ser considerados inspirados por Deus”. Nesse enunciado há uma postura igualitária entre o Antigo e o Novo Testamento quanto à sua natureza de Escritura, agora com o sentido teológico definido. Outra questão é que o Novo Testamento reivindica, ou seja, não há algo tão claro, mas é algo implícito. Essa reivindicação se dá porque o texto do NT é profético.

Quando a TS trata de 2Tm 3,16, admite que se trata do Antigo Testamento. Isso porque todas as vezes que a palavra Escritura aparece no NT está se referindo exclusivamente à Bíblia Hebraica (AT) e não ao NT – “E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lc 24,27). Como não há outro termo para lidar com isso, recorre-se a 2Pe 3,16 a fim de validar o NT frente ao Antigo quanto à sua inspiração. Por mais que esse argumento seja levado em consideração, há um problema: apenas as “cartas de Paulo” seriam inspiradas? E os Evangelhos Sinóticos? E o Evangelho de João? Hebreus? Lucas e Atos dos Apóstolos?

Outro argumento se dá com o texto de 1Tm 5,18 onde parte do versículo está em Lucas 10,7. Isso ratifica de que há status de Escritura no Evangelho de Lucas. Se esse argumento servir para dar credibilidade ao Evangelho de Lucas, deveria haver outros textos que fizessem o mesmo com o restante do NT e, sabidamente, não há.

Quanto ao texto de 2Pe 1,20-21 não há consenso de que se trate do NT, apenas do Antigo Testamento e sua condição interpretativa.

Parece que o NT não reivindica uma condição de inspiração. Não se trata de um tema explícito em relação ao status do Antigo Testamento. Os textos que a TS trata para dar status de inspiração ao NT são discutíveis quanto ao seu alcance exegético.

A necessidade apologética de reivindicar inspiração para o NT não se sustenta dentro do NT. Uma necessidade dogmatizante não pode anular a construção literária do NT.

Os primeiros cristãos não tinham interesse em escrever algo “deles” porque tinham as Escrituras (AT). Outra razão, eles tinham a mensagem do Reino de Deus proclamada por Jesus. Além disso, as primeiras comunidades cristãs eram fortemente escatológicas, ou seja, esperavam o fim iminente de “todas as coisas”. Com isso, não havia uma preocupação em querer escrever algo como Escritura para as demais gerações.

Teologicamente o NT tem autoridade apostólica, ou seja, ele está “baseado” nos ensinos dos apóstolos. Essa concepção se dá, principalmente, em escritos tardios do NT (At 2,42; Ef 2,20 e 3,5; 2Pe 3,2).