21.9.21

A IGREJA QUER BRIGA! (SOBRE A TAL “GUERRA CULTURAL”)

Uma rápida busca na internet é possível ver a quantidade de pregadores falando sobre “guerra cultural” (um tema importado dos EUA para o Brasil e que ganhou força, especialmente, a partir de 2018). A maioria dos pastores, bispos e apóstolos, estão preparando a igreja para a briga. Isso porque entendem que a igreja está em uma guerra moral com essa sociedade e seus costumes e comportamentos, uma vez que tais posturas “culturais” não têm compatibilidade com a “Bíblia”. Por isso, é preciso que a igreja dê um “xeque-mate” nessa sanha imoral, brigando e fazendo valer sua moralidade através de leis e visibilidade na arena pública. Do contrário, afirmam, a igreja perderá a sua liberdade e não terá mais oportunidade de cultuar e falar abertamente a sua mensagem (desconhecem o tema da secularização?).

Um pastor de Brasília, falando sobre “guerra cultural”, disse que a igreja deve entrar nessa briga com o “evangelho e a legislação”, ou seja, não basta o evangelho pregado, é preciso brigar por uma legislação que seja compatível com o ordenamento político-religioso da igreja. Agora imagine Paulo dizendo para os irmãos de Corinto que apenas o Evangelho de Jesus Cristo não era o suficiente, mas também que os irmãos precisavam brigar para ver aprovadas leis que contemplassem o entendimento da igreja em determinados assuntos, um deles, por exemplo, a de que a adoração à César era ilegítima, porque só havia apenas um rei, Jesus Cristo.

O fato é que a igreja no Brasil, ou uma parte dela para não generalizar, não faz uma leitura da Bíblia comprometida com o seu contexto imediato. Não por acaso que há inúmeros pastores que domingo após domingo cometem erros grotescos falando do texto bíblico (não desmerecendo a força espiritual da Bíblia para as inúmeras comunidades que se reúnem em torno do texto Sagrado). A leitura da Bíblia, mais especificamente o Novo Testamento, é feita de maneira simplista em relação aos temas que perpassam o pensamento da igreja primitiva. O que ocorre é uma leitura oportunista, de ocasião. Um exemplo é que algum tempo atrás se falava muito em “pós-modernidade”. Muitos pastores deram palestras sobre esse tema sem ter lido nenhuma vez um dos teóricos do tema, o francês Jean-François Lyotard. Hoje, mudando apenas os nomes dos pregadores, usa-se os mesmos textos bíblicos de quando se falava contra a “pós-modernidade” para falar sobre a tal “guerra cultural”. Ou seja, é uma leitura ocasional. O mesmo é possível dizer sobre os pregadores que fazem palestras nas igrejas sobre o tal “marxismo cultural”, tratando-o como uma espécie de “teoria conspiratória” para derrubar os pilares da civilização judaico-cristã no Ocidente. E não é surpresa alguma que esses palestrantes nunca tenham lido as obras de Karl Marx. Mas o que importa mesmo é usar o jargão. Isso atraí incautos.

O fato é que no Brasil a igreja sempre terá um “inimigo” para lutar e armar os “crentes” para a briga. Já foi a vez da “teologia da prosperidade”, mas essa se consolidou e quem já atacou um dia se aliou a ela, fazendo uso com outros nomes para dar muito na vista. Agora é “teologia da aliança com Deus”, “da colheita”, “da semente de fé” e por aí vai. A pauta hoje é uma guerra que algumas pessoas entendem que a igreja precisa enfrentar com a “cultura”, esta reduzida em alguns temas. Isso porque a igreja evangélica nunca foi dada a entender a cultura brasileira.

Não há dúvida de que a igreja foi cooptada pela Direita com esse tema. Uma parte da igreja, por sua vez, segue fazendo o jogo político reverberando o tema como um assunto de “vida ou morte”, fazendo disso um cavalo de batalha.   

Diante disso, uma pergunta sincera: será mesmo que a igreja do Novo Testamento ensinou algo tão bélico assim? Ela foi para a guerra com o propósito de emparedar a ordem vigente e modificar as leis para que a sociedade se adequasse ao que ela entendia como o correto ordenamento político-social? A igreja aliou “evangelho e legislação” para fazer valer a sua visão de mundo? Paulo ensinou que os irmãos deveriam concorrer a cargos públicos para que, uma vez neles, aprovassem leis que pudessem favorecer o crescimento do Reino de Deus?

Quando Paulo chega em Tessalônica e apresenta o Evangelho, as estruturas da cidade são abaladas. A acusação diante das autoridades foi: “Estes que têm transtornado o mundo chegaram também aqui”. O verbo grego para “transtornar” é “revolucionar”. O Evangelho pregado tem, naturalmente, uma conotação política. Isso é inevitável. Os apóstolos foram presos e torturados não apenas porque pregavam o Evangelho, mas porque havia nele uma força subversiva que deixava qualquer autoridade local no mínimo atenta. Em Atos 17,7 a acusação foi de que os cristãos tinham “outro rei”, um rival de César. John Stott, comentando sobre esse trecho no seu comentário de Atos dos Apóstolos, irá dizer: “O senhorio de Jesus possui implicações políticas inevitáveis já que, como servos leais, não podemos dar a nenhuma autoridade ou ideologia a honra suprema e a obediência total que devemos apenas a ele”. Isso não era qualquer coisa, era grave! Na mesma linha, o estudioso do Novo Testamento N. T. Wright, irá dizer: “A obra missionária de Paulo deve ser concebida não simplesmente em termos de um evangelista itinerante oferecendo ao povo uma nova experiência religiosa, mas de um embaixador de um rei em exercício, estabelecendo coalizões de pessoas leais a esse novo rei”.

Os cristãos causavam transtornos, porque era um povo que não se importava se o imperador era bonito ou feio; se ele tinha tanques de guerra ou não; se ele poderia dar terras para a igreja ou não; se ele poderia oferecer cargos no seu governo ou não! Não havia nenhuma preocupação em mudar o ordenamento político-jurídico do Império a partir de dentro. Isso porque a igreja tinha uma mensagem que estava para além desse ordenamento. É por essa razão que James K. A. Smith irá afirmar: “O evangelho, então, é profundamente contra imperial – contra os impérios dos Césares de nosso mundo”.

Ao que parece, a igreja, pelo menos uma parte dela no Brasil, desconhece o poder e a força do Evangelho porque precisa se aliar aos políticos para vencer uma guerra que ela, a igreja, nunca deveria travar. O interessante disso, é que filósofos como Slavoj Žižek, que professa o ateísmo, entende muito bem qual deveria ser o papel dos cristãos para este tempo enquanto muitos cristãos nem mesmo fazem ideia do papel preponderante que exercem na sociedade. Diz o filósofo: “A responsabilidade primeira dos cristãos não é assumir a sociedade e impor suas convicções e seus valores a quem não tem sua fé, mas ‘ser a Igreja’. Recusando-se a responder ao mal com o mal, vivendo em paz e dividindo bens, a Igreja comprova que há uma alternativa à sociedade” (parece que aqui caberia muito bem Lucas 19,40).

A igreja precisa pregar a Cristo! Pregar a Cristo significava dizer para todo o mundo de que há um rei, e ele não é o César; há uma esperança, e ela não está na força das armas; há uma subversão da ordem, porque esta que aí está afronta o Deus de justiça e graça.

A igreja não deveria lutar “guerra cultural” nenhuma. O teólogo Miroslav Volf, em entrevista para um jornal aqui, disse que “as igrejas deveriam ficar de fora de guerras culturais”. O que, então, a igreja deveria querer? Faço minhas palavras a de James K. A. Smith: “Não estamos querendo ganhar uma guerra cultural; estamos apenas tentando ser testemunhas. Não estamos querendo ‘transformar’ a cultura através de carteirada da máquina do Estado; estamos tentando esculpir pequenos antegostos de um Reino vindouro”. E há outra coisa que a igreja foi chamada para fazer de acordo com o Novo Testamento?

2.9.21

A IGREJA QUE ATRAPALHA A LÓGICA DO MUNDO

Thomas Hobbes é o filósofo conhecido por escrever a obra Leviatã. Nesse texto, o filósofo inglês coloca a necessidade de haver uma sociedade forte com um governo forte. Para isso, a sociedade deveria ter uma autoridade centrada ou num monarca ou em uma assembleia e isso garantiria a paz e a defesa do bem comum. Essa autoridade deveria ser um Leviatã (monstro marinho citado no Antigo Testamento).  O Leviatã, em Hobbes, seria aquela autoridade inquestionável, onde todos devessem obediência e servisse para o bem de todos.

Ocorre que para Hobbes havia algo que atrapalhava a concretização dessa forma de governo, do Leviatã. Tratava-se do cristianismo. 

Escandalizava Hobbes o potencial subversivo do cristianismo. Isso porque ele envergava no cristianismo, mais propriamente na igreja, uma capacidade de desagregar o poder da autoridade. Esse poder, como deixa claro o filósofo inglês, deveria ser único e absoluto nas mãos de um monarca ou assembleia, um Leviatã. Desse modo, Hobbes compreendia que a igreja causava uma divisão no poder quando fazia distinção entre secular e religioso. O que mais impressionava Hobbes, era a submissão que as pessoas faziam, voluntariamente, a um único Deus vivo e isso ameaçava toda e qualquer autoridade secular.

Comentando sobre os romanos e como eles trataram o cristianismo assim que se tornou conhecido no Império Romano, Hobbes salienta: “Os romanos, que conquistaram a maior parte do mundo conhecido de então, não tinham escrúpulos ao tolerar a religião que fosse, na própria cidade de Roma, a menos que houvesse nela algo incompatível com o governo civil”. O cristianismo estava nessa religião “incompatível com o governo civil”. Isso porque o cristianismo se constituía uma força autônoma, heterodoxa, que não fazia questão alguma de estar vinculada ao poder estatal e isso incomodava e atrapalhava os planos de qualquer autoridade. Não por acaso que o imperador, não podendo vencer os cristãos, o cooptaram para o Império, tornando o cristianismo religião aceita e, logo depois, oficial.

A igreja, quando está imbuída da sua gênese, atrapalha qualquer tentativa de poder e controle político-social. A razão é muito simples: a igreja tem a sua origem no feito escatológico do Cristo, a sua permanência nesse mundo não está condicionada a qualquer recompensa meritória, uma vez que essa recompensa já foi concretizada de modo escatológico na cruz-ressurreição. Assim, a igreja tem algo que está para além da própria igreja, algo que a mantém, mas não a torna dona, o que seja, o seu horizonte escatológico.

Nessa constituição escatológica de ser igreja, ela carrega algo que ousa celebrar, mas que não possui, e ousa representar o que não é da sua propriedade, além de proclamar uma palavra que não é deste mundo. É por essa razão, que a igreja pode estar envolvida politicamente com este tempo porque o que este mundo e sua lógica poderia oferecer a ela, a igreja, não é compatível com aquilo que ela já tem, o que seja, um horizonte escatológico delineado pelo Cristo com a proclamação do Reino de Deus. E o Reino de Deus não cabe na lógica do mundo.

É nesse sentido, portanto, que a igreja atrapalha a lógica do mundo.

A lógica do mundo é conhecida: torna as pessoas mercadorias; estabelece as relações pessoais a partir de uma lógica de poder. A isso, acrescenta-se os pastores midiáticos que fazem uso dessa lógica quando utilizam sua influência para barganhar com o poder estatal. A lógica do mundo está atrelada ao “quem pode mais, chora menos”; a lógica do mundo faz questão de acentuar as diferenças entre as pessoas, quer por gênero, condição econômica ou status social.

Aí vem a igreja e empareda toda essa lógica quando diz: judeus e gregos podem coexistir no mesmo lugar; mulheres, homens e crianças não são diferentes; as distinções sociais não são critério de aceitação por Deus; o status social de alguém não tem valor meritório na vivência comunitária. Isso é realmente revolucionário. Primeiro para um Império estratificado socialmente como era o romano e depois para o mundo em que o valor das pessoas são medidos pela conta bancária.

E como a igreja rompe com essa lógica? Pegando em armas e planejando a derrubada dos poderes constituídos? A igreja precisa ser anárquica para subverter essa lógica? Não! Obviamente que não.

A igreja rompe e atrapalha a lógica do mundo quando em culto celebra a existência dos enfuturados. Sim, a liturgia (que significa serviço para o povo) é o espaço em que a igreja reunida diz em claro e bom som que as estruturas desse mundo são pecaminosas e que somente pela mensagem da cruz de Cristo e na esperança da ressurreição as coisas terão o seu desfecho dentro da perspectiva divina.

Antes mesmo de James K. A. Smith publicar a sua bela trilogia sobre “Liturgias Culturais”, o teólogo J.J. von Allmen, com o seu livro O culto cristão: teologia e prática, já dizia que a igreja em culto questiona a justiça dos homens e constitui uma “ameaça para o mundo”. Allmen diz: “O culto é o desmentido mais eloquente das pretensões que o mundo possa ter de prover aos homens”. É por essa razão, segundo von Allmen, que “o culto cristão, pelo mero fato de ser celebrado, é um ato fundamentalmente político”. Mais tarde James K. A. Smith, no seu texto Aguardando o rei, irá afirmar: “A adoração da igreja não é apenas uma polis alternativa de um enclave isolado; ela é sempre uma intervenção política no ‘mundo’”. A força da igreja reside na sua celebração que ganha dimensão política quando, de maneira profética, proclama a sua mensagem para um mundo que vive a partir de uma lógica mundana.

Igreja, é aquela comunidade formada de pessoas que fazem questão de atrapalhar a lógica do mundo com a sua postura contestatória e audível quando, de maneira litúrgica, diz para todos que possam ouvir: entre nós não temos um kyrios, não temos um führer, não temos um messias. Temos somente um Senhor, Jesus Cristo, a quem anunciamos como loucura para este mundo e sua lógica desagregadora.

Em um tempo em que parte da igreja foi capturada pelo poder político-econômico no nosso país e tendo, infelizmente, a parceria de pastores para fomentar ainda mais a ebulição social, lembremos, mais uma vez, qual é o papel que a igreja de Jesus Cristo deve exercer nesse tempo. Este é o momento de parte da igreja reconsiderar se realmente os seus caminhos são de paz ou de mal (Jr 29,11). Isso é preciso, caso a igreja queira continuar a ameaçar, escandalosamente, o poder do Leviatã.

16.8.21

GOSPEL BEAUTIFUL

O gospel beautiful é altamente rentável.

Segundo Magali Cunha, uma referência nesse tema, o que temos é uma “cultura gospel”. Isso foi possível porque houve uma ocupação cada vez maior do espaço público com mídias, redes sociais, mas, principalmente, o mercado fonográfico. Isso mesmo. Vender músicas alimenta o mercado gospel como também produz teologia para quem consome o gospel beautiful.

O gospel beautiful é lindo, belo, cheiroso, gostoso, afável, apaixonante. O gospel beautiful leva para as nuvens, tira os pés do chão da realidade e transporta para um estado de espírito onde ocorre o encontro com o self. Quem vive sua vida religiosa a partir do gospel beautiful só precisa ter uma preocupação: deixar a casa para ele entrar e curtir o momento.

Essas bandas que seguiram nas pegadas do sucesso do grupo musical australiano Hillsong, além da mesma postura de palco, luzes e estilo copiado, também procuraram transportar as letras. Quando o repertório acabou, passaram a criar suas próprias letras (óbvio que a qualidade não é a mesma nem aqui e nem na Austrália).

O que temos hoje com essas bandas do gospel beautiful é uma espécie de antropopatia versão 2.0. Fala-se de Deus e, principalmente de Jesus, como se fosse um “namorado”. Por isso ele é lindo, lindo, lindo e mais lindo. E por essa razão é possível estar “apaixonado” por ele perdidamente.

Dentre vários grupos do gospel beautiful, o destaque é a Casa Worship. Sim, essa que tem uma letra em que diz que “deixou a casa” para Jesus, como se houvesse uma para deixar. A letra cantada por Julliany Souza exemplifica muito bem esse gospel beautiful.

Diz a letra:

Te chamam de Deus e de Senhor 

Te chamam de Rei e Salvador

Mas eu me atrevo a te chamar de meu amor

Sim, todas as outras qualificadoras teológicas para Jesus não seriam suficientes, mas agora há um “atrevimento” ao chamá-lo de “meu amor”. A situação muda e tudo fica mais claro e, de maneira indescritível, lindo, porque se trata do gospel beautiful.

E não poderia faltar na letra da Casa Worship o refrão: “Yeshua tu és tão lindo que eu nem sei expressar” (Ainda bem que tenho todas as músicas do amigo Daniel Souza - “Fruto do Espírito”).

E assim temos uma teologia forjada a partir do gospel beautiful, que procura desvencilhar o Jesus de Nazaré da sua missão e a consequente exigência para que os seus discípulos assumam o compromisso de continuarem as suas pegadas. Enquanto isso, uma multidão segue sendo anestesiada com o gospel beautiful. E vai dizer que Jesus não é lindo para essa galera, é bem provável que chamem você de “comunista”.

27.2.21

O TERCEIRO EXCLUÍDO E O VOTO DOS EVANGÉLICOS EM 2022

Dentre as contribuições de Aristóteles para a Filosofia e o pensamento ocidental, está a sua sistematização lógica. A lógica aristotélica possibilitou pensar a verdade a partir de proposições. Assim, os princípios da lógica se tornaram conhecidos como sendo três, de maneira bem específica: o princípio da identidade, da não contradição e do terceiro excluído.

Funciona assim: se um enunciado é verdadeiro, logo ele é idêntico à realidade demonstrável. Esse é o princípio da identidade. Em outras palavras, tudo que seja idêntico a si mesmo se dá no princípio da identidade. Já no princípio da não contradição, a lógica entende que, no caso de dois enunciados, não é possível haver verdade em ambos. Quando digo que “algumas pessoas não são boas” e depois digo que “todas as pessoas são boas”, o princípio da não contradição diz que ambas as afirmações não podem ser verdadeiras.

Quanto ao princípio do terceiro excluído, é visto como uma forma de eliminar, excluir, aquilo que não cabe dentro do princípio da identidade, ou seja, uma coisa é ou não é, não pode ser outra coisa. Diante de duas possibilidades aparentemente contraditórias, não há a possibilidade de ter uma terceira opção dentro da lógica, ficando, portanto, excluída. Dessa forma, a lógica aristotélica não encontra um meio termo e advoga a exclusão de algo que possa gerar um meio entre os opostos. Dito de outro modo, o princípio do terceiro excluído é a não contradição das ideias, ou seja, é a lógica que diz que não pode haver uma terceira via, apenas uma dentre duas, A ou B e C é praticamente descartável porque, aparentemente, não está plenamente demonstrável.

A lógica aristotélica do terceiro excluído, ajuda a entender o mosaico dos evangélicos e a fala de alguns líderes midiáticos que se veem como os representantes dos evangélicos quando o tema é eleições e o voto dos evangélicos em 2022.

A jornalista Anna Virginia Balloussier (Folha de S. Paulo), fez uma reportagem sobre os evangélicos e a política brasileira e os propensos apoios ao atual presidente nas eleições de 2022 por parte dos evangélicos e escutou os principais líderes midiáticos (1). Segundo a jornalista, um pastor chegou a admitir que “o presidente atingiu imunidade de rebanho no eleitorado evangélico”. Segundo esse pastor, ele (o presidente) “estaria protegido, assim, contra o ‘vírus de esquerda’ por contar com a ampla maioria de uma fatia que representa cerca de 30% dos brasileiros”. Para esse pastor, partindo da lógica aristotélica, os evangélicos têm um “princípio de identidade” com o atual presidente e isso deve continuar na disputa de 2022. Para muitos pastores, os evangélicos elegem Bolsonaro em 2022 porque há um princípio de identidade entre ambos, ou seja, o presidente fala e faz aquilo que os evangélicos querem ouvir e ver. Seguindo a lógica do princípio da não contradição, na outra ponta estaria o espectro político da esquerda que não teria qualquer possibilidade de “conquistar” votos desse eleitorado, uma vez que o discurso é contraditório entre ambos, Bolsonaro e esquerda. 

Dentro dessa lógica, como apurou a jornalista Anna, para os principais líderes evangélicos midiáticos do país, e que juntos detém um monopólio de fiéis e mídia, “a possibilidade de a esquerda voltar a abocanhar votos evangélicos em massa é vista com descrença, o que se estende a outros atores do campo, como Ciro Gomes (PDT) e Guilherme Boulos (PSOL)”. De acordo com a reportagem, esses líderes entendem que “o fogo maior é contra o petismo”. Para esses líderes, a ideia de que Bolsonaro atingiu imunidade de rebanho (uma clara alusão ao novo coronavírus e as medidas contestáveis do presidente em relação à pandemia), leva em consideração a agenda conservadora do presidente e os assuntos morais que tocam a grande maioria dos evangélicos com temas já conhecidos e que sempre voltam com maior intensidade nas eleições presidenciais. A pauta dos evangélicos se dá a partir dos costumes e abarca o campo da moralidade evangélica, envolvendo a defesa da família e rejeitando os temas identitários, geralmente encampados pela esquerda.

Ocorre que assim como Aristóteles não conseguiu acoplar o terceiro excluído, ou seja, na lógica aristotélica não há possibilidade de haver duas proposições verdadeiras, sendo que haverá uma terceira que sempre estará fora, a lógica dos coronéis da fé não leva em conta o terceiro excluído que representa a grande massa dos evangélicos que vivem nas periferias das grandes cidades do país.

Pastores entrevistados pela jornalista Anna Balloussier como Silas Malafaia e César Augusto (Igreja Fonte da Vida), são reconhecidos pela sua teologia da prosperidade e o lobby evangélico que praticam no espaço público. São pastores que movimentam quantias exorbitantes de dinheiro e possuem seus jatinhos particulares. A força midiática ajuda na disseminação de suas ideias e reforçam a percepção de que “falam por todos os evangélicos”. Ocorre que há um terceiro excluído que está fora desse universo evangélico midiático e que não nutre, necessariamente, um princípio de identidade com o atual presidente, mas também não enxerga na esquerda qualificada, que até recentemente ignorava essa gente e, em alguns casos, tratava-os com uma certa deficiência cognitiva na política, a melhor opção para resolver os problemas prementes e os anseios sociais da grande maioria do eleitorado evangélico.  

O pesquisador Juliano Spyer, fazendo um trabalho de campo entre os evangélicos, faz uma constatação que já sabíamos, mas ele reforçou em sua pesquisa, qual seja: “A relação entre evangélicos e o Brasil popular aparece no cenário de muitas e variadas igrejas presentes em bairros periféricos, entre negros e pardos com menos escolaridade e salários menores do que os da média da população” (2). Ainda que o discurso moral seja um atrativo considerável entre os evangélicos, a grande maioria sofre com a pobreza, com a falta de saneamento básico, com a renda pequena, com a violência, com o racismo e, agora com a pandemia, viu agravar consideravelmente a desigualdade social. A igreja evangélica na periferia, se constitui uma rede de solidariedade, amizade e generosidade. A igreja que ajuda uma família a colocar a comida na mesa, é a mesma que faz orações para que Deus proteja os filhos da violência e pede para que Deus “abra uma porta de emprego”.

Essa gente é o terceiro excluído na lógica política dos evangélicos midiáticos. Esses líderes não têm muito o que dizer para essa parcela significativa dos evangélicos, porque encabeçaram um projeto de governo e de poder que, pelo princípio da não contradição, não podem falar da fome, do desemprego, da falta do auxílio emergencial. Caso falem sobre esses temas, podem ser enquadrados dentro do espectro político à esquerda. Mas não falam sobre isso por conta desse julgamento, não falam porque esses temas não estão, em definitivo, dentro das suas aspirações como cristãos e cidadãos. Eles não têm como contradizer a política neoliberal do governo; eles não podem falar sobre a falta de investimento na saúde, na educação e cobrar uma política de distribuição de renda. Essas pautas não constam nesse governo que deu, desde o início, sinais claros de que a massa pobre do país não é e nunca será a prioridade. Antes, a prioridade do ministério da Economia é alavancar sua agenda neoliberal e retirar, se possível, todos os benefícios que foram conquistados. Assim, trabalham para alterar leis trabalhistas, dificultar aposentadorias e achatar os salários que já estão defasados em relação à inflação.

Essa gente, o terceiro excluído, está fora dos grandes eventos do mundo gospel. Essa gente tem em Deus a única fonte de esperança, mas também já perceberam que a política é a oportunidade de debater e lutar por melhorias. Por essa razão, muitos pastores e irmãos da periferia estão dispostos a conversar sobre os problemas e dificuldades sociais do dia a dia que afetam a todos, indiscriminadamente.

O terceiro excluído é composto por gente que está acompanhando essa polarização Bolsonaro versus Esquerda, mas ainda não tornaram essa polarização a razão maior para a definição de seus votos, pelo contrário, o que definirá seus votos serão as demandas sociais e a vida que fica cada dia mais difícil para quem pega o ônibus lotado e vai trabalhar às cinco horas da manhã. 

Um projeto político-econômico que discuta as principais questões e aponte melhorias, não apenas para os evangélicos e suas demandas sociais, será oportunizado. Nesse sentido, o líder midiático, que voa de jatinho, pode até falar e se fazer ouvir como se fosse a “voz dos evangélicos”, mas não terá alcance satisfatório com essa gente que compõe o terceiro excluído que são, com certeza, mais do que 30%.

Notas: (1) https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/02/apoio-evangelico-em-2022-indica-bolsonaro-na-ponta-e-entraves-a-doria-huck-e-pt.shtml (2) Juliano Spyer. Povo de Deus: quem são os evangélicos e porque eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020, p. 85.  

28.1.21

A NOVIDADE DA CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA, SER “APOLÍTICA”

A mídia noticiou um Pedido de Impeachment assinado por mais de 380 lideranças religiosas, incluindo católicos e protestantes, e foi entregue à Câmara dos Deputados no dia 26 de janeiro 2021. O pedido está baseado nos “supostos” crimes que o presidente da República cometeu em relação a sua má condução na maior crise sanitária que o país já passou, a pandemia da COVID-19.

Bastou a mídia divulgar que dentre as lideranças religiosas que assinaram o Pedido estavam os batistas, que a Convenção Batista Brasileira (CBB) e a Ordem dos Pastores Batistas do Brasil (OPBB) emitissem um Pronunciamento para deixar claro (como se houvesse necessidade) de que essas instituições, representativas das igrejas Batistas e dos pastores batistas, não tinham qualquer participação no Pedido. Fazendo coro com a Igreja Presbiteriana do Brasil, que conta com ministros e auxiliares no alto escalão do governo federal, portanto, não há nenhuma dúvida de que a cúpula da IPB está envolvida até as vísceras com a gestão Bolsonaro, a CBB não precisava vir à público para dizer que não se envolveu com o Pedido. Até porque, o nome da CBB não aparece em nenhum lugar do documento. Quem assina são pastores de igrejas Batistas vinculados à CBB como também à Aliança de Batistas do Brasil, que é uma agremiação de pastores e igrejas Batistas de tendência ecumênica. O Pronunciamento da CBB foi um equívoco e completamente desnecessário, a partir desse ponto. Mas quando a CBB vem à público, por pressão da sua ala mais conservadora que segue comprometida com a agenda do governo federal, ela está tomando partido por omissão, uma vez que em diversas ocasiões foi solicitada a sua manifestação e o silêncio foi ensurdecedor. Nesse sentido, o ditado é verdadeiro: “Quem cala consente”.

No Pronunciamento do dia 27 de janeiro de 2021, a CBB frisa que em nome da sua fidelidade aos seus princípios se considera na posição de “apolítica”. Em outras palavras, a CBB está dizendo que não se envolve em política (no sentido partidário, faltou deixar isso claro, uma vez que a condição de apolítico não é possível em uma sociedade politizada). Quando recorre aos seus princípios, nos vem à mente os Princípios Batistas e dentre eles a Separação entre Igreja e Estado. Ocorre que já tem um tempo que pastores batistas e igrejas Batistas, no cenário político nacional, ignoraram os Princípios Batistas para apoiar o governo que entenderam ser o melhor de “Deus” para o país.

Um breve exercício de memória nos ajudaria a verificar que a CBB não se comportou de maneira “apolítica” em diversas ocasiões. Vejamos alguns episódios.

Os batistas têm um inequívoco laço com o regime que se instalou no Brasil a partir de 1964. Jorge Pinheiro é taxativo nesse sentido: “A partir do golpe militar de 1964, os batistas brasileiros construíram um profícuo relacionamento com o bonapartismo militar”. Depois de 1964, os batistas não são “apolíticos” de jeito nenhum. O Jornal Batista nesse período funcionou como propaganda política para os governos militares e depois disso foi um caminho sem volta, jogaram na lata do lixo o ethos histórico-político-teológico dos batistas. Antes de 1964, os batistas conheceram o Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil, que denunciou situações gritantes na condução da política social e econômica do país. Mas não fiquemos nesse período nefasto apenas.

O corte decisivo se deu em 2010 quando Paschoal Piragine Jr. exibiu um vídeo propaganda no púlpito da igreja da qual é pastor titular desde 1988, a Primeira Igreja Batista em Curitiba/PR, para assim emitir a sua opinião contrária à eleição da então candidata Dilma Rousseff à presidência da República. Piragine Jr., pela primeira vez em 30 anos, toma partido e diz em quem os seus membros não deveriam votar nas eleições gerais de 2010. Assim, quando Piragine Jr. se posicionou politicamente, o seu discurso político-religioso foi chancelado quando se tornou presidente da CBB em 2011. Com essa votação, a CBB estava dizendo que tinha partido, uma vez que foi pedido, inúmeras vezes, que viesse à público e se posicionasse em relação à fala de Piragine Jr., mas ao invés disso deu a ele a presidência da CBB. Aqui não houve “posição apolítica”.

Quando Deltan Dellagnol estava à frente do Ministério Público Federal em Curitiba conduzindo a “Operação Lava Jato”, o seu pastor, L. Roberto Silvado, deu a ele todo o apoio, uma vez que o procurador era membro da Igreja Batista do Bacacheri (Curitiba/PR). Quando Silvado se tornou o presidente da CBB em 2013, Dellagnol passou a frequentar seminários, igrejas e encontros de pastores para falar de política e corrupção. A CBB estava de portas abertas para esse tema. O ponto mais emblemático, se deu no caso da votação no STF sobre a prisão ou não em segunda instância, e Deltan disse que “jejuaria pela prisão de Lula”. O seu discurso político-religioso foi endossado por L. Roberto Silvado, então presidente da CBB, que fez um pronunciamento aos batistas brasileiros em canal oficial da CBB, pedindo oração e jejum para que o Supremo Tribunal Federal julgasse de maneira correta quanto à prisão em segunda instância, pedindo oração e jejum à todos os batistas brasileiros para que os ministros do STF fossem iluminados pelo Espírito Santo quanto a permanência de um entendimento do Supremo à favor da prisão em segunda instância mesmo que o processo não tenha sido ainda transitado e julgado em todas as instâncias superiores. Houve reação à fala do presidente da CBB para que a mesma se posicionasse em relação ao ocorrido, mas o que se ouviu foi um silêncio e a tal “posição apolítica” não se confirmou nesse caso.

No dia 19 de agosto de 2018, na Igreja Batista Atitude Central da Barra, no Rio de Janeiro/RJ, o pastor Josué Valandro Jr. chamou à frente o então candidato do PSL à presidência da República, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro. Sua intenção era orar pelo candidato, uma vez que a esposa do candidato fazia parte da membresia da igreja. Fazendo isso, Valandro Jr. se comprometeu com o candidato e suas propostas. Na oração do pastor da Atitude, ele deixa bem claro o que ele gostaria que acontecesse: “Se for a vontade de Deus que você seja no dia 1º de janeiro presidente do Brasil”. Além da oração, Valandro Jr. deixa o candidato falar, algo inimaginável em outros tempos para os batistas. Mesmo com inúmeros protestos para que a CBB se pronunciasse em relação ao ocorrido, o silêncio foi a sua melhor resposta.

Um último e penoso fato, se deu em 2019. A Juventude Batista Brasileira da CBB, no seu congresso anual “Despertar”, organizou mesas de debates e falas sobre diferentes assuntos. Dentre essas mesas estava uma em especial: “Descolonizando o olhar: o racismo atinge a igreja?”. Os convidados foram Fabíola Oliveira e o pastor batista Marco Davi Oliveira. Após o movimento contrário de um determinado grupo ultraconservador que alegou “desvio doutrinário” na formação da mesa, manifestando que eram desfavoráveis quanto a presença de Fabíola e Marco no congresso da JBB, a direção da JBB decidiu desconvidá-los. Decisão que contou com a participação da Diretoria da CBB. Nas Assembleias subsequentes ao ocorrido, o que se viu foi o silêncio e as manobras da cúpula da CBB para abafar o caso.

Esses episódios somados deixam bem claro que a CBB não tem posição “apolítica” quanto aos temas da política nacional. Quando se silencia, está tomando partido. E quando emite um Pronunciamento para dizer que não tem qualquer relação com um Pedido de Impeachment onde pastores batistas assinaram, está, mais uma vez, tomando partido. Como parece que esse é o caso, bastava a CBB vir à público e dizer que aprova o atual governo e a sua agenda que, no mínimo, contraria os anseios do Evangelho. Mas isso a instituição não faz, porque se considera “apolítica” quando lhe é conveniente.