30.6.20

CEIA ONLINE EM TEMPOS DE REMOTE COMMUNION

Com o “culto online” pastores passaram a disputar espaço na rede, na tentativa de atrair audiência virtual para suas lives durante a pandemia. A remote communion (comunhão a distância) das igrejas ganhou incrementos para tentar segurar os irmãos diante da tela. Assim, houve quem foi além e realizou até batismo remotamente. A partir disso surgiram alguns debates quanto a realização do “culto online” e a possibilidade de “celebrar” a ceia. É possível realizar a ceia remotamente também? Há algum impedimento bíblico para tal ato? Com isso, alguns pastores prontamente se recusaram a fazer algo assim, enquanto outros assumiram o desafio de “celebrar” a Ceia do Senhor virtualmente alegando que assim ajudariam os membros da igreja a terem comunhão com Cristo e com os demais irmãos que estavam fazendo o mesmo naquele exato momento. Antes de prosseguir com o assunto, adianto que o texto não tem a intenção de dissuadir quem realiza a ceia de maneira remota e considera o ato legítimo e necessário. Esse texto surge a partir de questionamentos recebidos, procurando dialogar quanto à legitimidade teológica de tal ação.

Num primeiro momento, a realização da Ceia do Senhor em uma Igreja Batista (meu lugar de fala) não tem a dimensão sacramental como em outras comunidades de fé. Por isso, os batistas não se referem à comunhão da mesa de “Santa Ceia”, mas sim de Ceia do Senhor ou (melhor expressão na minha percepção) Celebração da Comunhão. Em uma Igreja Batista a Ceia do Senhor é tida como uma ordenança e não como um sacramento. A partir disso, não é possível dizer que os participantes da comunhão (Ceia do Senhor) recebem algum tipo de graça quando participam dCeia do Senhor, porque ela, a Ceia do Senhor, não proporciona por si mesma um meio para assim receber. Nesse sentido, os batistas ingleses (pioneiros) reconheceram o Batismo e a Ceia do Senhor como ordenanças. E mesmo os batistas londrinos que aderiram alguns trechos da Confissão de Fé de Westminster (presbiteriana), substituíram a palavra “sacramento” por “ordenanças”.

Uma diferença importante entre sacramento e ordenança está na oficialização. Enquanto o sacramento só é possível ser oficializado quando há um membro do clero reconhecido para assim fazer, a ordenança não necessita de um membro ordenado do clero para realizar o ato. Por que? Porque quando há um entendimento de que a ceia é uma ordenança, assume-se que pode ser cumprida independentemente do tempo-espaço, uma vez que é uma ordem de Jesus Cristo dada para todos, não somente para os pastores ordenados. Esse é um ponto que deixa muitos pastores ressabiados. Alguns acreditam piamente que somente eles, porque estudaram Teologia, passaram pelo Concílio Examinatório e foram ordenados, podem celebrar a Ceia do Senhor e realizar o Batismo. Assumem um certo sacramentalismo nesses atos, o que não é possível a partir da tradição Batista. Nesse sentido, John Landers é taxativo: “As ordenanças de Jesus Cristo são ordenanças de sua igreja. Elas estão presentes onde cristãos se organizam segundo o padrão neotestamentário”. Nessa sentença, Landers deixa duas coisas muito claras: (i) as ordenanças pertence à igreja, portanto, não pertence ao pastor ordenado; (ii) essas ordenanças estão presentes quando cristãos (todos) se organizam a partir daquilo que o Novo Testamento ensina sobre a reunião e ajuntamento da comunidade de fé. Aí vem um outro ponto: como a igreja no Novo Testamento se organizava? Em casas! O templo é algo que está fora das páginas do Novo Testamento. Até mesmo em Atos dos Apóstolos quando ainda há uma relação com o templo, é dito que os cristãos estavam de casa em casa partindo o pão (Ceia do Senhor na teologia lucana).

O principal espaço de organização das igrejas no NT se deu nas casas. Vincent Branick, estudioso das igrejas domésticas no Novo Testamento, afirma que “as residências particulares garantiam privacidade, intimidade e estabilidade para os cristãos primitivos”. Os irmãos se reuniam em suas casas, mas também com os demais irmãos em um determinado momento para uma celebração maior. Por isso que em Paulo, por exemplo, aparece a expressão hole te ekklesia – “igreja toda” (1Co 14,23; Rm 16,23), mas também a expressão ekklesia kat´oikon – igreja doméstica. Quando havia a celebração da comunhão (ceia), Paulo deixa claro que os cristãos se reuniam no mesmo lugar para celebrar a Ceia do Senhor (1Co 11,20), mas isso não significa que os cristãos não celebravam a ceia na sua ekklesia kat´oikon.

Ainda que a ciberceia possa ser uma modalidade que surge em tempos de pandemia e a sua realização se faz a partir da necessidade de favorecer o ajuntamento entre os irmãos, incorre em algumas questões que podem ser levantas a partir do exposto até aqui: (i) Uma vez que o NT ensina que onde estiverem dois ou três reunidos a partir do nome de Jesus ele estaria presente (Mt 18,20); (ii) Sendo a Ceia do Senhor uma ordenança e não um sacramento na realidade eclesial de uma Igreja Batista, portanto é tarefa de todos e não apenas de um o seu cumprimento; (iii) Com isso, o pastor não precisa ser, necessariamente, o realizador da Ceia do Senhor quando não é possível, o que significa que ele, o pastor, não precisa estar presente para que uma das ordenanças seja cumprida.

A partir disso, é possível intuir que a ciberceia não tem uma certa legitimidade teológica para acontecer - ainda que a proposta e o ato da ciberceia possa ser benéfico e haja testemunho do seu aspecto espiritual quando o pastor diz do outro lado da tela o que cada um precisa fazer e o momento para se fazer. Dentro da perspectiva Batista e a partir do entendimento quanto à Ceia do Senhor enquanto ordenança e o sacerdócio universal de todos os crentes, não há nada que impeça que uma família que pertence a igreja e que se comprometeu em cultuar ao Senhor na sua casa, e sentindo a necessidade de celebrarem a comunhão com Cristo, realizar a Ceia do Senhor. Desse modo, a família está reafirmando a presença de Jesus através da sua memória, ressignificando os seus passos na caminhada da vida e reafirmando a esperança em Cristo.

Referências

BRANICK, Vincent. A igreja doméstica nos escritos de Paulo. São Paulo: Paulus, 1994.

LANDERS, John. Teologia dos princípios batistas. 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1986.

17.6.20

IGREJA BATISTA E RACISMO

Os batistas surgiram no Brasil a partir de missionários estadunidenses que deixaram o seu país de origem por conta da Guerra da Secessão. Um dos principais pontos da guerra foi a questão da abolição da escravidão. Algo que o Sul jamais tolerou foi a possibilidade de se ver livre da mão de obra escrava nas suas fazendas de algodão.  Os missionários racistas deram origem a uma das maiores denominações do Brasil, ramo do protestantismo de missão com maior capilaridade na sociedade brasileira depois dos pentecostais. Ainda assim, o racismo que trouxeram na bagagem foi patente no relacionamento dos missionários com os chamados “nativos” brasileiros. Sobre o racismo dos missionários estadunidenses, o pesquisador Dr. João B. Chaves publicará um livro onde recolhe documentos e correspondências dos missionários com a Junta de Richmond. No livro, Chaves demonstra a maneira como os missionários tratavam a questão dos negros no país e o racismo explícito de muitos deles. O livro está para ser lançado com o seguinte título “O racismo na história batista brasileira: uma memória inconveniente do legado missionário” (Brasília: Novos Diálogos, 2020, no prelo). 

O racismo faz parte da estrutura social brasileira. Isso quer dizer que não está meramente nas piadas com pretos, antes domina as relações sociais e determina as condições que favorece a desigualdade em termos políticos, sociais e econômicos. As falas racistas e o comportamento preconceituoso que corriqueiramente ganha notoriedade na impressa e redes sociais, é mais uma mera manifestação de um fenômeno que é sistêmico e se faz presente em todas as facetas do país, sendo que a violência policial e a quantidade de presos pretos no sistema penitenciário brasileiro é a face mais visível desse racismo sistêmico.

O caso dos protestantismos no Brasil, não obstante apenas os batistas, infelizmente reforçou o racismo sistêmico, sendo, portanto, um dos pilares da estrutura racista que permeia o Estado brasileiro. O protestantismo de cunho étnico tinha um claro objetivo: o branqueamento da raça. O protestantismo se configurou no país a partir da “guerra cultural”, demonizando as religiões de matriz africana. Por essa razão, que o “samba, originalmente, era música do morro, de negro e pobre, e foi rejeitada pelas igrejas protestantes, muito mais por racismo que por razões teológicas” (ALENCAR, 2007, p. 79).

A Igreja Batista, em específico, é resistente quanto ao enfrentamento do racismo como tema inevitável quando da origem e formação da denominação no país. Sempre foi um tema escamoteado e negligenciado por lideranças denominacionais e pastores de igrejas locais. Um tema comumente ausente dos púlpitos das igrejas e inexistente na literatura das conhecidas “Escolas Bíblicas Dominicais”. Por conta disso, sabemos da dificuldade que há quando o assunto surge em igrejas Batistas. Algum tempo atrás, um colega de ministério testemunhou da sua dificuldade quando em Assembleia Geral a igreja elegeu membros negros para cargos da Diretoria Administrativa da igreja. Houve séria resistência quanto a esse ocorrido, mas o pastor permaneceu firme no seu propósito de integrar essas pessoas na liderança da comunidade.

Em 2019, ocorreu algo ainda mais grave enquanto denominação Batista no Brasil. A Juventude Batista Brasileira da CBB, no seu congresso anual “Despertar”, organizou mesas de debates e falas sobre diferentes assuntos. Dentre essas mesas estava uma em especial: “Descolonizando o olhar: o racismo atinge a igreja?”. Os convidados foram Fabíola Oliveira e o pastor batista Marco Davi Oliveira. Após o movimento contrário de um determinado grupo ultraconservador que alegou “desvio doutrinário” na formação da mesa, manifestando que eram desfavoráveis quanto a presença de Fabíola e Marco no congresso da JBB, a direção da JBB decidiu desconvidá-los. Decisão que contou com a participação da Diretoria da CBB. O caso ganhou repercussão e a Igreja Batista passou a ser qualificada como “racista”. Um episódio lamentável e inconcebível quando se trata do ethos dos Batistas e seu apreço pela democracia e o lugar de fala dos seus membros.

Essa semana mais um episódio execrável envolvendo uma live do senhor Rodrigo Santos e sua esposa Jéssica Maciel e a citação de uma Igreja Batista.

Na referida live, Rodrigo (que se apresenta como pastor) narra como conheceu a sua esposa, Jéssica (também pastora) na cidade de Toledo/PR quando ambos frequentavam a Igreja Batista do Calvário. Ele pontua que a igreja estava no lado pobre da cidade e afirma que ficou surpreso em encontrar Jéssica ali. O que vem depois disso é repugnante e demonstra mais uma vez o racismo estrutural e desumano que permeia a sociedade brasileira e a igreja segue sendo um recorte disso. Rodrigo diz que na igreja a maioria dos irmãos eram “encardidos”, “mais moreninho” e “meio sujo” e que sua esposa, por ser loira, causou um certo destaque, além de ser ela da “Zona Norte, zona mais nobre da cidade”.

A Igreja Batista do Calvário reagiu e divulgou uma Nota de Esclarecimento pela fala do então Pr. Rodrigo Santos. Segue:

A Primeira Igreja Batista do Calvário em Toledo, tem uma história de quase quatro décadas desenvolvendo suas atividades religiosas e sociais em Toledo, localizada sua Sede na Grande Pioneira.

Por meio desta nota manifestamos publicamente que não compartilhamos de forma alguma com quaisquer atitudes preconceituosas, manifestação de racismo, desrespeito a individualidade ou manifestações de ódio.

À luz da Lei 7.716/1989 e do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) definem o Racismo como crime inafiançável, inaceitável e indefensável.

A igreja, diante das repercussões geradas pela “live do pastor Rodrigo dos Santos”, reafirma seu compromisso institucional com a promoção da igualdade étnico-racial, sexual, religiosa, repudiando toda e qualquer manifestação de preconceito, contra quem quer que seja. Sendo que reconhecemos que todas as pessoas são iguais perante a Lei e o Criador.

Também informamos que o Sr. Rodrigo dos Santos, foi membro de nossa igreja há tempos atrás, mas que atualmente (8 anos) reside fora do país e congrega em outro ministério onde atua como pastor.

A nota de retratação foi postada em nossa página em função de nossa igreja ter sido citada na live.


O racismo estrutural precisa ser combatido e denunciado.


O racismo é pecado e mata! Ainda estamos todos consternados por um João Pedro, morto pela polícia na sua casa em Niterói; por um George Floyd asfixiado por um policial branco em Minneapolis (EUA); e Miguel, menino negro, que caiu do nono andar de um prédio em Pernambuco porque a patroa da sua mãe permitiu que a criança de cinco anos de idade entrasse sozinho no elevador e subisse para a morte. Por essa razão que quando se levanta o grito de que “VIDAS NEGRAS IMPORTAM” não é apenas um discurso retórico. É a constatação de que algumas vidas não importam tanto e que qualquer tentativa de querer igualar as classes sociais como se as mesmas fossem homogêneas é falaciosa.

 

As igrejas Batistas precisam enfrentar esse dilema social com honestidade e a partir de uma perspectiva bíblico-teológica, denunciando o racismo como pecado! A atitude da Igreja Batista do Calvário em Toledo com sua Nota de Esclarecimento é louvável, porque reafirma a luta constante contra o racismo. É de se lamentar que o senhor Rodrigo passou pela comunidade e não encontrou a glória de Deus no rosto daqueles irmãos. A igreja segue seguindo Jesus de Nazaré que se sentou à mesa e andou com pessoas que não eram bem vistas dentro de uma sociedade classista e preconceituosa, muito parecida com a nossa. E foi para essas pessoas que ele disse: “Bem aventurados vocês, os pobres [e pretos], pois a vocês pertence o Reino de Deus” (Lc 6,20).

Referência
ALENCAR, Gedeon. Protestantismo tupiniquim: hipóteses sobre a (não) contribuição evangélica à cultura brasileira. 2. ed. São Paulo: Arte Editorial, 2007.