31.10.15

A REFORMA, NOSSA REFORMA!

Há 498 anos, na cidade de Wittemberg, Martin Lutero pregou suas 95 teses. Esse evento é conhecido como ponto inicial da chamada Reforma Protestante. Partindo da perspectiva triunfalista da história, Lutero é tratado como o grande divisor d’águas e herói do protestantismo, e todo o processo da reforma do séc. XVI é visto como uma verdadeira epopeia. Dessa forma, e como é comum nas nossas datações comemorativas, fazem do dia 31 de outubro um illud tempus (tempo sagrado, tempo originário ou tempo mítico) e da Alemanha um axis mundi (centro do mundo mítico). Não quero desqualificar a participação do monge agostiniano, mas simplesmente sinalizar exatamente sua contribuição na história de longa duração para reforma da igreja cristã, a qual não começa e muito menos termina na Alemanha.

Para ser mais claro, o dia 31 de outubro foi como uma espuma na beira da praia precedida por ondas de ideias e movimentos religiosos da história da Igreja. Como bem disse Le Goff, “a Nova História mostra que esses ‘grandes acontecimentos’ são em geral apenas a nuvem – muitas vezes sangrentas – levantadas pelos verdadeiros acontecimentos sobrevindos antes desses, isto é, as mutações profundas da história”.

Atrás de Lutero temos, por exemplo, os Goliardos, que carnavalizavam, como diria M. Bakhtin, a igreja oficial com indisciplinas e sátiras. Nas costas luteranas temos outros como Guilhermo de Ockham, que já dizia, bem antes de Lutero, que a moralidade do ser humano não depende da sua própria ação, mas da aceitação da vontade de Deus/graça de Deus que pode santificar antes que haja o arrependimento. Em seu “Brevilóquio Sobre o Princípio Tirânico”, Ockham, por incrível que pareça, já questionava o poder papal e sua tradição. Como ilustração, também, cabe aqui o caso de Orleans, em 1022 d.C, quando 14 clérigos da alta hierarquia foram queimados por questionarem a graça do batismo, a eucaristia, a remissão dos pecados mortais e outros pontos importantes do Cristianismo medievo. O que falar dos Cátaros, um grupo de “hereges” proclamadores da centralidade do Novo Testamento para experiência da fé? Não podemos esquecer também dos Valdenses que deixariam qualquer reformado boquiaberto em relação à valorização das Escrituras. Devemos lembrar também dos Místicos – dos quais Lutero foi grandemente devedor – com suas regras e direta relação com o Deus da Bíblia. Na mesma lista temos Wycliffe, Huss e Savonarola que dispensam comentários.

Lutero foi uma ponta do iceberg, favorecido por contextos social, cultural, econômico e religioso propícios para o desencadeamento de ondas transformadoras iniciadas na Europa e expandidas para todo o mundo, criando não somente novos cristianismos (se assim posso dizer), mas também outras formas de pensar a vida e o homem na arte, na política, na economia etc.

Se em Lutero não temos o início da Reforma, muito menos encontramos nele o fim. O a posteriori do dia 31 contribuiu para a formulação do processo da Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria. Depois de 1517 a história da Igreja Cristã também foi presenteada com grupos de alas mais radicais e revolucionárias, como, por exemplo, os anabatistas, que inquestionavelmente continuaram o processo reformador.

Minha intenção não é negar o evento “Lutero”, mas colocá-lo no seu devido lugar, como um momento na linha histórica, muito grande por sinal, que ainda não tem o seu ponto final, pois a proposição de Gisbertus Voetius (1589-1676) ,“Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” (Igreja reformada, sempre se reformando) está muito viva, mesmo que fora de seu contexto, e deve ser levada até às últimas consequências.

Por isso, nós também estamos no bojo do "Semper Reformanda Est", porque o dia 31 de outubro de 1517 e os séculos posteriores não são o fim do processo. Existe ainda muita covardia em voltar às Escrituras por medo de perder o poder sobre as massas piedosas; insiste entre nós a negação, em vários contextos, da segurança unicamente na graça, por causa da presença de diversos tipos de legalismos; encontramos ali e acolá artifícios fracos ladeando a fé; ainda se preservam, em muitos níveis, objetos e rudimentos além do Cristo; e vários que canalizam a glória para si, utilizando os mais ardis artifícios do mundo evangélico. Exatamente por essas coisas sou cônscio de que os desafios ainda estão bem vivos e a Reforma em andamento.

(Kenner Roger Cazotto Terra)

8.10.15

UMA REFORMA QUE NÃO ACONTECEU: OS HOLANDESES NO BRASIL

Esse ano a Reforma Protestante completa 498 anos (31 de Outubro de 1517). A contagem regressiva para os 500 anos da Reforma Protestante está dada, um feito histórico que definiu os rumos do cristianismo e favoreceu mudanças em diferentes vertentes da sociedade. Indubitavelmente a Reforma abrigou aspectos que não são plausíveis, como as guerras religiosas, mas também favoreceu abertura de caminhos que o mundo contemporâneo ainda respira suas “conquistas”.

No Brasil a Reforma bateu à sua porta por duas ocasiões, antes da inserção definitiva do comumente denominado protestantismo(s) de missão.

A primeira se deu com a chegada dos huguenotes – calvinistas franceses. Na França as batalhas religiosas provocaram inúmeras mortes, como a mais sangrenta delas, conhecida como o massacre de São Bartolomeu. Além disso, as disputas e conflitos entre católicos e protestantes agravaram a instabilidade política e econômica do país. É dentro desse contexto que Nicolau Durand de Villegagnon chega à baía de Guanabara em 1555 com o sonho de fundar no Brasil a França Antártica. Tal empreitada não obteve êxito principalmente por disputas internas entre Villegagnon e os pastores, enviados e recomendados por Calvino, envolvendo questões doutrinárias como a transubstanciação, por exemplo. De um modo geral, as disputas entre os calvinistas franceses e Villegagnon envolviam prestígio pessoal e questões políticas.

A segunda presença de protestantes no país se deu com os holandeses.

Um país dominado pela Espanha, a Holanda também enfrentou conflitos envolvendo católicos e protestantes. Depois da Revolta dos Camponeses, os holandeses se revoltam contra o rei espanhol, Felipe II. Abraçam o calvinismo e a liberdade que almejavam, destituindo assim um sistema absolutista.

Nesse tempo, a Holanda é um país com ares de liberdade religiosa, recebendo grupos de outros países que buscavam vivenciar a fé fugindo da perseguição religiosa. Entre eles estão os anabatistas e depois os batistas (1609). Por esse tempo convivem luteranos, bem como anabatistas e calvinistas.

É dentro de um contexto de guerra, que os holandeses se lançam ao mar a fim de pilhar riquezas dos espanhóis. Assim, chegam ao Brasil em 1630. Estabelecem o comércio no país e dão enormes prejuízos aos espanhóis e portugueses quando capturam seus navios.

Os holandeses, ao que parecia, possuíam condições favoráveis para estabelecer uma colônia bem sucedida no Brasil. Dois motivos eram bem claros: comércio e propagação da fé reformada.

Uma vez no Brasil, há registros de tolerância religiosa entre reformados e católicos, com alguns excessos de ambos os lados, mas ainda assim os católicos poderiam exercer sua religião de maneira livre nos seus espaços. Diferente da posição portuguesa, que não admitia nenhuma outra expressão religiosa que não fosse católica.

Um dos principais objetivos dos holandeses reformados no Brasil foi à evangelização dos nativos. Para isso, enviavam líderes nativos para serem educados na Holanda a fim de voltarem e continuarem a propagação da fé reformada. Entre esses estão Pedro Poti, um dos líderes mais destacado nessa face de evangelização holandesa no país.

A reforma que não aconteceu de maneira concreta, contribuiu para o avanço da economia, ciências, artes e liberdade religiosa. Foram os primeiros a desenvolver literatura religiosa em três idiomas (holandês, tupi e português).

Um período de guerras e traições culminou na retirada dos holandeses em 1654. Quando os católicos procuram recristianizar o território até então ocupado pelos holandeses, se dão conta do projeto político, econômico, educacional e social que a pequena reforma deixou no território. O padre Antônio Vieira, chegando lá para tal trabalho, se depara com algo assim: “uma verdadeira Genebra de todos os sertões do Brasil, porque muitos dos índios pernambucanos foram nascidos e criados entre os holandeses”.

A proposta da reforma impetrada pelos holandeses deixaram os padres atônitos com o que viram. Os trajes com que se vestiam e a capacidade de ler e escrever. Além disso, o aspecto religioso era notório na fé reformada. Era outro modelo de inculturação, diferente do modus operandi dos portugueses.

Diferente dos huguenotes, os holandeses deixaram uma marca, favorecendo uma mentalidade cristã reformada entre os nativos do Brasil.

Em uma época onde a questão religiosa era tão impregnada com as demais áreas da vida em sociedade, sem a presença do secularismo contemporâneo, os holandeses no Brasil demonstraram o espírito reformado, deixando uma clara diferença entre os dois modelos de colonização e religião quando comparado ao português.