16.2.16

JOSÉ DO EGITO

Uma leitura a partir dos indícios

Está na Record, José do Egito.

Não por acaso, é possível ouvir vez ou outra alguém mencionar as narrativas sobre José. Ainda mais com a telenovela trazendo um herói impoluto, capaz de atravessar as mais difíceis situações e não se “corromper” diante das tentações da vida como dinheiro e sexo. Não por acaso, esse exímio administrador sofre com calúnias e tramas e mesmo assim continua inabalável.

Quando ouvimos as narrativas sobre José apresentada em Gênesis a partir do capítulo 37, impressiona a trajetória do jovem predileto do pai e odiado pelos irmãos.

Um jovem que tem sonhos um tanto prepotentes, como os feixes de seus irmãos se inclinarem para o seu feixe. Quando a interpretação do sonho representa domínio de José sobre os irmãos, a revolta destes é ainda maior em cima de um rapaz promissor e dotado de tantos talentos e habilidades.

Toda a leitura de um texto abre possibilidades. Nenhuma leitura é ausente de pré-conceitos (uma linguagem gadameriana). A hermenêutica está aí para demonstrar caminhos para a compreensão do texto e esta se dá a partir do sujeito leitor que agrega ao texto sentido, mesmo que o próprio texto seja compreensível o bastante para ter um sentido unívoco (o que é difícil, na maioria das vezes).

A leitura das narrativas de José é lida a partir do herói. Um jovem que se tornou escravo; um escravo que se tornou administrador; um administrador injustiçado; um injustiçado preso; um preso que não é lembrado; um sonhador que tem seu sonho interpretado; um intérprete que vira governador; um governador que “salva” o Egito da destruição fatal; um benevolente que ajuda os irmãos com fome. Esse é o enredo aplaudido.

Olhando o texto a partir dos indícios, é possível perceber que a narrativa não está tão isenta de problemas e pretensões.

Se a hipótese de que a narrativa de José foi construída na época do rei Salomão for viável, estamos diante de uma narrativa Javista. É possível que o Javista tenha como contexto os últimos anos da monarquia de Davi ou o começo do reinado de Salomão (século X a.C.). Se assim for, há uma grande possibilidade de estar se fazendo uma comparação entre o sistema faraônico e salomônico. Este último seria o alvo das críticas.

José seria o personagem que, distante da sua saga como herói, mas agora como governador do Egito, apresenta Salomão. Quando José sonha que seu feixe está sendo reverenciado pelos feixes dos irmãos, não há uma pretensão de ser rei sobre eles? Quando os irmãos planejam matá-lo, não está dizendo que as tribos rejeitam o sistema monárquico? Quando Jacó e sua família decidem ir para o Egito, não representaria a passagem do sistema tribal para um sistema tributário? São perguntas a serem consideradas se o ponto de partida for o período salomônico.

O sistema tributário (Gn 47,13-26) do Egito é atribuído a José.

Primeiro todo o dinheiro do povo para as mãos do Faraó; depois todos os rebanhos são recolhidos para o Faraó; em sequência, as terras são recolhidas para o Faraó; por fim todos os homens se tornam escravos do Faraó. Apenas os sacerdotes ficam isentos de todas essas medidas.

Como se tudo isso não fosse ruim, o texto apresenta o povo agradecendo a José (tu nos salvaste a vida, Gn 47,25).

José protagoniza a maior falência do povo egípcio e depois dos hebreus. Não por acaso que José se casa com a filha do sacerdote.

O trigo no período das “vacas magras” não é dado, mas vendido. Não há fraternidade nisso. O povo perde tudo, dinheiro, animais, terras e a liberdade.

Lendo as narrativas a partir de outros indícios, é possível ver um José orgulhoso diante dos irmãos. Provavelmente não era uma pessoa tão humilde assim, foi quando escravo. Quando se viu na liderança da casa de Potifar, a mulher deste o acertou na sua autoestima. Ele tinha dado a “volta por cima”. Alguém que tem cargo de chefia na casa do chefe e ainda uma mulher linda e poderosa (as mulheres tinham direitos civis avançados no Egito) dando indícios de que o queria, foi a grande reviravolta na sua vida. Do poço para a “glória”. A cena de José fugindo e deixando suas roupas, demonstra uma tensão entre os dois. Algo que chegou muito perto, pois não se tratava de uma capa, mas sim a roupa do corpo.

A narrativa de José pode ter alguns enfoques. O mais notório é a saga do herói.

José criou o sistema tributário no Egito e tornou tudo e todos escravos do Faraó, assim como ele foi um dia, quando vendido pelos seus irmãos. Casou-se com a filha do sacerdote, aquele que alimentava a ideologia do Estado e o status da religião egípcia. Mesmo que a história tenha seu final feliz, os indícios mostram que as coisas não foram tão bem como muitos costumam imaginar, principalmente o José da Record.

Consulta

J. Shreiner (Ed.). Palavra e mensagem do Antigo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Teológica/Paulus, 2004 (p. 134-135).

Lília Dias Marianno. Relacionamentos complicados da Bíblia: estudos para grupos familiares. Rio de Janeiro: Eagle Book, 2015 (p. 80-81).

Sandro Gallazzi. Por uma terra sem mar, sem templo, sem lágrimas: introdução a uma leitura militante da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1998 (p. 29-32). 

Valmor da Silva. Deus ouve o clamor do povo: teologia do êxodo. São Paulo: Paulinas, 2004 (p. 14-15).

3.2.16

“OS TEMPOS MUDAM, E NÓS MUDAMOS COM ELE”

(frase de Ovídio)

Saiu no O Jornal Batista de 31 de Janeiro de 2016 um texto que fala de saudade.

O autor, um pastor batista, procura fazer uma comparação entre o que foi vivenciado em anos anteriores no universo eclesial (batista, mais precisamente) e o que hoje é possível ver no atual cenário das igrejas que passam (passaram) por mudanças em termos culturais e sociais.

O que chama atenção no referido texto, foi o “tom” saudosista de uma reflexão que não levou em consideração as mutações da cultura e que, inevitavelmente, respinga na realidade das igrejas. Além disso, é perfeitamente coerente apontar o que era (que não necessariamente leva o título de “melhor”) com o que é hoje. Mas também será possível apontar o que poderia (ou deveria) acontecer para modificar o atual cenário?

Qualquer avaliação do “antes” e do “depois”, se tratando de realidade eclesial, precisaria levar em consideração alguns temas:

- Impacto da mídia: a relação que o indivíduo tem com a mídia forma a sua personalidade, escolhas e decisões. Os neopentecostais souberam aproveitar bem isso;

- Cultura da imagem: um tempo em que uma imagem ficou valendo mesmo mais que mil palavras. Aparelhos celulares foram substituídos por pessoas; o parecer “bem” com a própria imagem é uma questão de sobrevivência nas redes sociais;

- Aceleração da história: em épocas passadas a história era contada, compartilhada, passada de uma geração à outra. Há uma aceleração da história, ou seja, as coisas acontecem apressadamente e não há “tempo” para absorver, refletir e apurar. Daí o conflito de gerações que são visíveis nas comunidades de fé;

- Consumismo como referencial de valor: há uma vida para o consumo como bem avalia o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. As pessoas vivem para consumir e não vivem com o que consomem. O “comprar” e o “ter” são duas categorias existenciais, infelizmente;

- Rejeição do autoritarismo: qualquer tentativa de cercear a “liberdade” é reprimida. Há uma tendência em curso de desconsiderar qualquer figura que transmita “autoridade”. Nesse sentido está o professor, os pais, o policial e o pastor (para ficar com alguns exemplos);

- Urbanização: as cidades estão cada vez mais aceleradas e as pessoas preferem elas (desde o êxodo rural no país) ao campo. A urbanização traz mobilidade, mas também desumaniza as pessoas.

Quando o autor do artigo no O Jornal Batista intitula seu texto com um provocativo Dá saudades!, ele está fazendo um exercício de comparação, ou seja, o que era bom (por isso a saudade) e o que hoje não é tão bom assim (por isso a reminiscência). Saudade é a ausência daquilo que não se pode ter ou ver mais, porque foi um momento, uma fase, um tempo. Isso é perfeitamente válido, quando a concepção é apenas subjetiva. Quando é uma leitura abrangente, é preciso tratar causalidades, pelo menos.

Em todos os comparativos que o autor usou, esse chamou atenção:

- “Dá saudades de quando falávamos para uma pessoa procurar uma igreja próxima de sua casa, e hoje temos que dizer que a pessoa procure uma igreja mais próxima da Bíblia”.

De que Bíblia se trata? Ou seria de doutrinas? Há muito tempo a Bíblia deixou de ser um texto básico para as igrejas. Ela foi substituída por Declarações Doutrinárias e quando se estuda com a Bíblia se trata na verdade de revistas de EBD onde o autor repassa as suas percepções e lições. Está cada vez mais difícil procurar uma igreja mais próxima da Bíblia. Ela (a Bíblia) assusta, desconstrói sistemas, muda perspectivas e ninguém, históricos, pentecostais ou neopentecostais, querem olhar para a Bíblia com lupa, ela contraria práticas, ela destrona poderes, ela promove o empoderamento do pobre e marginalizado.

O texto tem como característica um anacronismo cultural e social. Além de não indicar (ou mesmo sonhar) com outras possibilidades, sejam elas de "tom" pessimista, otimista ou de esperança. Qualquer avaliação que procura abranger comportamentos e pessoas, não pode deixar de fora o movimento da história e a mutante cultura na qual todos nós estamos inseridos.