25.2.18

A TRADIÇÃO ECUMÊNICA BATISTA

Os batistas não surgem nos Estados Unidos. Apenas para deixar bem claro.

Os batistas aparecem na Inglaterra do século XVII tendo como contexto os separatistas ingleses e, portanto, “os batistas fazem parte da gênese do pensamento liberal inglês” (1) que eclodia na época. 

Nesse sentido, os postulados do liberalismo inglês serão os mesmos dos primeiros batistas como liberdade individual e separação entre Igreja e Estado.

Os batistas ingleses aparecem na história do cristianismo como um grupo que luta por liberdade religiosa e isso custa a vida de um de seus líderes, Thomas Helwys que se manifestou com o livro Uma breve declaração do mistério da iniquidade em 1612, “em que defendeu liberdade religiosa para todos, incluindo os católicos romanos” (2). 

Os batistas ingleses têm na sua gênese a diversidade que gera, naturalmente, divergências, mas mesmo assim convergiam em temas comuns e buscavam o diálogo, honrando assim o início do movimento batista. Aqui podem ser citados os batistas gerais e os batistas particulares, como exemplos. “Apesar da diferença quanto à teologia arminiana e calvinista, adotaram princípios e práticas semelhantes e se desenvolveram separadamente, até que em 1891 se uniram através da União Batista da Grã-Bretanha e Irlanda” (3).

A fim de sobreviver, os batistas buscam liberdade religiosa para todos e isso, concomitantemente, incluía as demais manifestações religiosas. Como consequência, os batistas procuram a unidade dos cristãos a fim de testemunhar o Cristo. É neste sentido que John Smyth se expressa em um texto produzido em 1612: “Estando profundamente contristados porque nós que seguimos uma fé, e um espírito, um Senhor, e um Deus, um corpo e um batismo, estamos divididos em tantas seitas e cismas: e isto apenas por assuntos de menor importância” (4).

Não por acaso que os batistas ingleses vêm “participando ativamente em várias organizações do movimento ecumênico” (5). Assim que o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) foi organizado em 1948, os batistas ingleses têm sua participação tendo, inclusive, um batista como presidente do CMI, Ernest Payne (6).

Ainda em território inglês, ocorre o primeiro grande encontro dos batistas (1905) em Londres sobre os auspícios do batista inglês Howard Shakespeare. Desse congresso surge a Aliança Batista Mundial (sigla em inglês BWA) tendo como primeiro presidente o pastor londrino John Clifford (7).

A Aliança Batista Mundial vem procurando abrir diálogo com diferentes representações religiosas, não apenas o cristianismo, mas inclusive com este, principalmente com a Igreja Católica.

Em 2012 Timothy George (autor do livro muito conhecido por aqui, Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 2017), como presidente da Comissão de Doutrina e União Cristã da Aliança Batista Mundial, participou de um sínodo no Vaticano, e foi recebido pelo Papa Bento XVI.

Na recepção à delegação da BWA, Bento XVI se dirige aos batistas da seguinte maneira: Dou-vos minhas cordiais boas-vindas, membros da comissão internacional patrocinada pela Aliança Batista Mundial e pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Agrada-me que tenhais escolhido como lugar para vosso encontro esta cidade de Roma, onde os apóstolos Pedro e Paulo proclamaram o Evangelho e coroaram seu testemunho do Senhor ressuscitado derramando seu sangue. Espero que vossas conversas tragam abundantes frutos para o progresso do diálogo e o crescimento do entendimento e da cooperação entre católicos e batistas (8).

A BWA tem protagonizado encontros e diálogos fraternos com os católicos, unindo esforços em questões comuns. A Aliança Batista Mundial congrega diferentes ramificações dos batistas e isso favorece o diálogo.

A Convenção Batista Brasileira (CBB) integra a BWA.

NOTAS
(1) AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do indivíduo: a formação do pensamento batista brasileiro. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 12. 
(2) OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Um povo chamado batista: história e princípios. Recife: Kairós Editora, 2010, p. 56.
(3) OLIVEIRA, 2010, p. 58-59.
(4) OLIVEIRA, Zaqueu Moreira de. Liberdade e exclusivismo: ensaios sobre os batistas ingleses. Rio de Janeiro/Recife: Horizonal/STBNB, 1997, p. 129.
(5) OLIVEIRA, 1997, p. 154.
(6) OLIVEIRA, 1997, p. 155.
(7) OLIVEIRA, 1997, p. 139.
(8) DISCURSO DO PAPA BENTO XVI AOS MEMBROS DE UMA DELEGAÇÃO DA ALIANÇA BATISTA MUNDIAL. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/bened...>.

FOTOS
1 - Este ano o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) completa 70 anos.
2 - Rev. Martin Luther King no CMI em 1967. Ele pregaria na Assembleia do CMI no ano seguinte, se não tivesse sido assassinado em 1968.
3 - Rev. Timothy George e o Papa Bento XVI no Vaticano. 
4 - Rev. Billy Graham e o Papa João Paulo II no Vaticano (1981).

22.2.18

BILLY GRAHAM: HOMEM DE DEUS, MAS TAMBÉM DA WHITE HOUSE

O universo evangélico recebeu a notícia do falecimento de Billy Graham (1918-2018) com um certo ufanismo e regozijo. Afinal de contas, ele já estava com 99 anos e havia quem esperasse que pudesse completar 100 anos, um século de vida. Uma marca indelével para um ser humano, com certeza. A mídia, quando noticiou a sua morte, fez questão de citar que ele atraiu multidões em seus sermões e esteve bem próximo dos presidentes norte-americanos, sendo, inclusive, por décadas, conselheiro de vários deles. 

Sem dúvida, Billy Graham, um pastor batista que ganhou status de celebridade religiosa em uma cruzada em 1949 na cidade de Los Angeles, se tornou um dos homens mais conhecidos do mundo. Há quem diga que ele logrou êxito e maior notoriedade na proclamação do Evangelho ao ponto de superar o Apóstolo Paulo, com as devidas proporções, obviamente. O sucesso das suas cruzadas só foi possível porque houve um apoio maciço da mídia, alcançando os meios de comunicação convencionais da época como rádio, televisão e jornais. Tudo isso graças aos empresários que viu no jovem loiro, alto e de olhos azuis o símbolo de uma América do Norte em exportação. Com esse sucesso, a sua proximidade com o poder político foi uma mera consequência conveniente. Assim, Billy Graham se configurou como um “homem de Deus”, alguém que, com a mensagem de Cristo, poderia entrar e sair de países comunistas, como fez, por exemplo, na então URSS e depois na Coréia do Norte.

Com uma oratória cativante e eloquente, Graham não apenas se destacou no cenário nacional, mas também mundial. Na guerra da Coréia, ele foi uma das principais figuras que ficou responsável pela implantação do conhecido american way of life no sul da península. Na Guerra Fria, o evangelista se tornou uma figura central para o governo norte-americano, principalmente na América Latina.

Qual o legado de Billy Graham para o protestantismo latino-americano?

Billy não era apenas um homem de Deus, como bem o conheciam e o chamavam, mas também um exímio observador e influenciador dos assuntos de governo da Casa Branca, portanto, um homem também da White House. Mesmo admitindo que o governo político não transformava o mundo, por conta da sua escatologia fatalista – ou seja, somente a iminente segunda vinda de Cristo poderia pôr fim às misérias e conflitos no mundo –, ainda assim Graham exerceu uma enorme influência nas políticas de Estado em países latino-americanos no auge da Guerra Fria, falando abertamente contra o comunismo num tempo em que o mundo se dividia em dois blocos.

Por meio da Associação Evangelística Billy Graham (AEBG), houve maciço apoio às igrejas que apoiavam governos militares na América Latina. Nos momentos cruciais dos regimes militares, que tinham como vocação purgar o temível “espírito comunista” na América Latina, não se importando se havia ou não Diretos Humanos, Graham estava lá com suas conferências de teor apenas evangelístico e não, necessariamente, político. Mesmo que isso fosse um fato, apenas a sua presença em um país sob o regime militar só conotava apoio norte-americano ao que estava em curso.

A América Latina estava entre os continentes que mais chamavam a atenção de Graham. Quando há uma convocação para o primeiro congresso mundial sobre evangelização em Berlim (1966), sob os auspícios da AEBG e a revista fundada por Graham, Christianity Today, houve uma resolução no congresso cujo teor era a implantação de congressos de evangelização na América Latina (1). Algo que foi recebido prontamente por lideranças do protestantismo latino-americano, por conta da herança e do histórico laço com o protestantismo estadunidense. Há, portanto, uma clara relação entre as campanhas evangelísticas e os governos militares na América Latina. Não por acaso que a Associação de Graham não levará adiante os ideais do Pacto de Lausanne, havendo um claro antagonismo de direção e teologia. Enquanto o Pacto impulsionou o que ficou conhecido na América Latina como Teologia da Missão Integral, Graham se moveu deliberadamente para esvaziar o discurso e a práxis de Lausanne. Principalmente quando ainda em Lausanne, René Padilla fez duras críticas ao imperialismo norte-americano.

No Brasil, os batistas “apoiam” o golpe civil-militar e orientam as igrejas por meio do “O Jornal Batista” – “Os acontecimentos políticos militares de 31 de Março e 1º de Abril que culminaram com o afastamento do presidente da República vieram, inegavelmente, desafogar a nação. Porque estávamos vivendo num clima pesado de provocações, de ameaças, de agitações, que nos roubavam o mínimo de tranquilidade necessária para poder trabalhar e progredir. Necessária inclusive para a pregação do Evangelho. Agora as coisas mudaram. Era tempo” (2). É nesse contexto que Graham aparece no Estádio do Maracanã em 1960 (Aliança Batista Mundial), no Pacaembu em 1962 e, novamente no Maracanã, em 1974. Em 1974 o Brasil estava sob o comando de um general de tradição luterana, Ernesto Geisel. A presença de Billy Graham acentua ainda mais o apoio norte-americano aos anos de repressão e as Igrejas Batistas se dedicam a campanha de evangelização “Jesus Cristo é a Única Esperança”.

A influência de Billy Graham na formação missionária e pastoral da América Latina protestante é inegável. Fruto de seu tempo e portador de uma teologia salvacionista (ganhar almas) e imbuído do “destino manifesto” – ou seja, a ideia de que os EUA é a nação que colocará o mundo em ordem –, Graham deixou um legado marcado por uma escatologia pré-milenista e fatalista; uma antropologia pessimista; uma visão política que emudece a voz profética.

Notas
(1) NETO, LONGUINI, Luiz. O novo rosto da missão: os movimentos ecumênico e evangelical no protestantismo latino-americano. Viçosa: Ultimato, 2002, p. 155-156.
(2) REILY, Ducan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: ASTE, p. 315 e 322.

14.2.18

SOMOS TODOS IRMÃOS...

Campanha da Fraternidade 2018 – Fraternidade e Superação da Violência

Nos últimos anos o país conheceu a brutalidade das facções que operam nas penitenciárias. Nas ruas a violência está gratuita e sistêmica e a mídia tem todos os dias notícias que relatam casos de famílias atingidas por ela, vitimando, cruelmente, crianças. Como se tudo isso não bastasse, nossa gente convive com a violência da corrupção do sistema político, o tipo de crime que mata silenciosamente quando priva crianças da merenda escolar e de melhores escolas; quando as pessoas convivem com o medo e a falta de segurança pública, onde seus agentes (policiais), não recebem adequadamente seus salários; quando os doentes precisam de hospitais, remédios e exames emergenciais e não há equipamentos disponíveis.

Somos todos irmãos”, trecho do Evangelho de Mateus 23,8. Com esse texto, a Campanha frisa que a violência é sempre contra um semelhante, ou seja, é sempre contra o outro que é igual diante de Deus. Nessa busca por dirimir a violência, as igrejas podem contribuir e muito, uma vez que são portadoras da mensagem de esperança e paz. Nesse sentido, as igrejas não poderiam coadunar com qualquer justificativa de violência, quer de pessoas que nutrem um discurso assim, quer do Estado e seu aparato policial.

Importa refletir sobre a paz e meios para buscá-la na permanente tentativa de aplacar a violência.

Um caminho de paz abre um caminho para a justiça. Na tradição bíblica, a justiça está na pregação profética, onde há um Deus de justiça. É Paul Tillich quem aponta a justiça como um dos critérios para se julgar as expressões religiosas, principalmente o cristianismo. No cristianismo, Tillich nos lembra, que os homens são aceitos pela justiça praticada, e não necessariamente pela religião confessada (Mateus 25,31-45).

As igrejas, por tradição, nutrem uma força ética para promover/provocar mudanças que favoreçam uma cultura de paz. O Estado, há muito comprometido com o mercado, ignora a grande maioria das pessoas que lutam pela sobrevivência. As igrejas podem e devem contribuir, principalmente sendo a consciência do Estado, como alertara Martin Luther King – “igreja... não é a senhora ou a serva do Estado, mas, antes, a sua consciência. Ela deve ser a orientadora e a crítica do Estado. E nunca sua ferramenta!”.

As igrejas não podem abrir mão da participação e atuação no atual contexto brasileiro. Estamos em um momento em que se conhece o drama da imigração de venezuelanos e haitianos; um tempo de intolerância religiosa, principalmente em relação às religiões afro-brasileiras; a brutalidade contra pessoas homoafetivas; a luta por igualdade de direitos da população negra. Diante de todos esses dilemas, é pueril pensar que o Estado tenha como principal meta encontrar soluções equitativas para esses dramas, até porque a justiça, na sua plena expressão, nunca foi o ponto forte do Estado. Em uma sociedade onde se dependa, exclusivamente, da justiça legal, acentua-se muito mais a sua desumanidade, principalmente quando há um sistema penitenciário onde a terceira maior população carcerária do mundo vive em condições sub-humanas. 

Não obstante a isso, a situação está ficando mais delicada ainda com um governo à serviço do capital neoliberal. Um governo que trabalhou, incansavelmente, para diminuir direitos dos trabalhadores com a sua Reforma Trabalhista. Isso não sendo suficiente, o atual governo quer continuar na sua missão de distanciar ainda mais aqueles que têm dinheiro daqueles que nada têm com uma Reforma da Previdência que atinge, em cheio, os menos favorecidos economicamente do país. Uma violência praticada por um Estado que não consegue fechar suas contas públicas por irresponsabilidade administrativa.

Diante disso, é preciso lembrar que o Deus bíblico se dá na prática da justiça e onde há injustiça, a sua ação é libertadora – “Deus também já está presente lá onde acontece a injustiça. Fazendo justiça aos que sofrem violência. O que é feito aos pobres e indefesos indiretamente é também feito a ele”, já dizia Jürgen Moltmann. Os profetas reivindicam justiça diante dos desmandos do Estado. Há uma luta intensa pelo direito dos despossuídos, desfavorecidos e marginalizados da sociedade. A justiça – como bem nos lembra Moltmann –, na perspectiva bíblica, se dá no direito, ou seja, “a justiça de Deus é, ao mesmo tempo, aquela que cria o direito, mas também traz justiça à vida injustiçada. Desta forma, é uma justiça criativa. Deus faz justiça a quem sofre violência e põe em ordem quem comete o mal”. Essa é a nossa esperança que nos impulsiona para uma práxis libertadora.

Caminhos de paz se faz por meio da justiça e justiça se estabelece na prática do direito equitativo. Que a Campanha da Fraternidade 2018 venha nos lembrar de que somos todos irmãos, portanto, devemos dar as mãos e enfrentar a violência sistêmica com amor e voz profética.