31.5.18

O PERIGO DA INERRÂNCIA SELETIVA

Molly T. Marshall (1)

Inerrância bíblica foi supostamente a razão para a aquisição hostil da Convenção Batista do Sul (SBC), ou ressurgimento conservador, como alguns preferem. Eu afirmo que a inerrância bíblica era uma mera ferramenta para a preservação do poder patriarcal e do privilégio masculino branco.

Eu estava involuntariamente na mira de tudo, tendo começado meu doutorado no Seminário Teológico Batista do Sul em 1979, o ano da primeira vitória fundamentalista seguindo o manual de Pressler (2) e Patterson (3). Quando entrei para a faculdade lá em 1984, a controvérsia estava a todo vapor, e a posição de alguém sobre o papel das mulheres no ministério tornou-se o teste decisivo para a inerrância. Como pastor que trabalhava na SBC na época em que fui contratada, tornei-me uma exposição de tudo o que os líderes masculinos temiam: uma mulher ordenada que reivindicou seu lugar de direito como líder pastoral.

No verão de 1984, a Convenção tinha notoriamente resolvido que as mulheres deveriam ser impedidas de exercer o ministério pastoral por causa da “prioridade na queda edênica”. Falo sobre a inerrância seletiva! Os proponentes escolheram um texto obscuro como prova da disposição duradoura de Deus sobre a culpabilidade feminina e, portanto, a incapacidade de liderar uma igreja. Naturalmente, este é o único lugar em todas as Escrituras (além do Gênesis) onde Eva é mencionada, e a abordagem hermenêutica dos conservadores Batistas do Sul convenientemente ignoraram a maioria do corpus paulino com seu acento sobre a transgressão de Adão.

A teologia ossificada tem sido a marca do ressurgimento conservador, e Paige Patterson é o principal exemplar dessa tradição. Destrutiva em sua aplicação, esta teologia promoveu resultados cruéis. Enquanto eu evito a proposição da inerrância, acreditando que ela reivindica algo para a Escritura que não reivindica por si mesma, a inerrância seletiva de Patterson tem sido buscada por interesse próprio e medo do poder das mulheres. 

Patterson leu aqueles avisos ou proibições historicamente situados sobre a liderança das mulheres, literalmente ignorando todos os textos que identificam a liderança e as realizações das mulheres. Uma interpretação masculinista de textos o manteve cativo, e o dano esmagador de sua abordagem de sua teologia veio à tona agora. Exigir que as mulheres mantenham silêncio sobre o abuso e se submeter à chefia masculina é tudo sobre o patriarcado e nada sobre os valores bíblicos.

Eu trabalhei em um projeto de livro no início dos anos 90 com Paige; ele fazia parte de uma equipe conservadora de autores, eu estava com a equipe moderada. O volume resultante foi Beyond the Impasse (“Além do impasse”), um destino que nos iludiu. O que me impressionou imediatamente foi sua incapacidade de ouvir qualquer coisa que desafiasse sua visão de mundo fundamentalista. Lembro-me de uma troca entre o renomado estudioso do Velho Testamento Walter Harrelson (4) e Patterson sobre sua abordagem das Escrituras e o que estava em jogo se você abandonasse a inerrância. “Se não há Adão e Eva históricos e literais”, alegou Patterson, “então não temos doutrina do pecado”. Harrelson respondeu com sua bondade característica, ainda que incisiva: “Ó meu querido irmão, minhas perguntas são muito maiores do que isso”. Ele sabia que uma falsa suposição sobre as Escrituras não permitiria uma fé coerente.

A visão obscurantista de Patterson também permitiu que ele ignorasse inúmeras bandeiras sobre o comportamento desagradável de Pressler com os rapazes. Enquanto o seu lugar de honra fosse preservado, ele poderia ignorar as alegadas aberturas de seu colega mais próximo, cujo caso agora está no tribunal. O objetivo de recuperar a SBC de sua tendência liberal importava mais do que a integridade daqueles que guiavam essa busca, como confirmam recentes divulgações (o caso das mulheres que veio à público agora).

A inerrância seletiva é tão prejudicial quanto a escolha de textos que reforçam as pressuposições liberais. A leitura de todo o texto divino-humano conta a história do envolvimento de Deus com a humanidade nas várias épocas, forjando a tradição judaico-cristã. A Bíblia fala implacavelmente de mudanças sociais e da esperança de que a nova comunidade forjada por Cristo supere as estruturas patriarcais.

Esconder-se atrás da inerrância, a fim de preservar o privilégio masculino, causa danos irreparáveis ​​a um testemunho cristão lúcido. Deus sabe, precisamos contar melhor nossa história e vivê-la mais plenamente, para que tanto mulheres quanto homens possam florescer.

Notas
(1)   Doutorado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul; pós-graduação no Instituto Ecumênico Tantur (Jerusalém, Israel); Universidade de Cambridge (Cambridge, Inglaterra); Seminário Teológico de Princeton (Princeton, Nova Jersey). 
(2)   Paul Pressler, uma figura importante no processo fundamentalista da Convenção Batista do Sul em 1979. Em 2018, surgiram alegações de décadas de abuso sexual. Pressler foi acusado de ter estuprado um menino regularmente, começando quando o menino tinha 14 anos quando ministro da juventude. O líder da Convenção Batista do Sul, Paige Patterson, é acusado de ter ajudado no acobertamento do caso.
(3)   Paige Patterson, foi demitido do Seminário Batista do Sul depois que surgiu acusações de que ele teria aconselhado mulheres abusadas física e sexualmente a se manterem caladas e casadas.
(4)   Walter Harrelson, pastor batista; estudou na Universidade de Basileia (Suíça) e na Universidade de Harvard. No Brasil tem um livro traduzido: “Os Dez Mandamentos e os Direitos Humanos” (Paulinas, 1987).

12.5.18

AS OVELHAS PRETAS DA IGREJA

Não é novidade que quando há uma crise sistêmica, como essa que o país atravessa, setores conservadores da “Igreja Evangélica Brasileira” (na falta de um nome melhor para caracterizar um segmento do cristianismo não católico no Brasil, que funciona como um catalizador de diferentes posturas e idiossincrasias possíveis), ressuscitam alguns “inimigos” para legitimar o discurso político e a luta doutrinária. Não está sendo diferente da época pós-1964, quando as igrejas, notadamente as tradicionais, se alinharam com o regime civil-militar, mesmo quando viu a Igreja Católica pagar por seu “pecado” de ter apoiado, num primeiro momento, a deposição do governo de João Goulart e, depois, enfrentou sérios problemas com o regime, tornando-se vítima do aparelho repressivo do Estado de exceção que contava, sabidamente, com prisões, torturas e assassinatos.

Parece que o “inimigo” que setores conservadores da “Igreja Brasileira” elegeu para combater não é outro, somente no filme “Tropa de Elite 2” que o “inimigo era outro”. O “velho e conhecido inimigo” é o “comunismo”, dizem alguns. Outros falam no “socialismo”. Há quem diga “esquerdopatas”, uma mistura de esquerda política com psicopatia, qualificação usada por Silas Malafaia. Recentemente o pastor e deputado federal Marco Feliciano, não conseguiu chocar a todos quando contou uma “piada” quando perguntado sobre a morte da vereadora Marielle e do motorista Anderson em um programa de rádio. Disse: “O cérebro do esquerdista é do tamanho de uma ervilha. Há pouco tempo fiquei sabendo que deram um tiro num esquerdista no Rio de Janeiro e levou uma semana para morrer porque a bala não achava o cérebro”.

A polarização política no país vem somando imbecilidades, ao ponto que os conceitos “comunismo” ou “socialismo” são empregados nas Redes Sociais indiscriminadamente, desconsiderando as devidas conexões ou desconexões com os termos. Quem nunca ouvira falar de Karl Marx passou a odiá-lo, mesmo sem ter lido uma linha sequer das suas ideias. Assim, o “inimigo” a ser combatido no país é a “esquerda”, com o seu “satânico” intento de implantar medidas libertinas e fazer com que o país se transforme em uma “Cuba” ou em uma “Venezuela” economicamente. Essa é a narrativa, sem as devidas desproporções e limites, obviamente.

A narrativa do Golpe de 2016 se deu, para esse universo político-religioso, a partir do “combate ao comunismo”, assumindo o slogan de grupos de identificação política de “direita” na frase imperiosa: “Nossa bandeira nunca será vermelha”. Somou-se esforços para retirar do poder central do país o Partido dos Trabalhadores, acionando os parlamentares da conhecida “Bancada Evangélica”, também conhecida como a “bancada BBB” (da Bíblia, da bala e do boi), fazendo coro com o então “homem de Deus”, o pseudo-evangélico Eduardo Cunha. Quando o PT sai do governo, de maneira vexatória, o segmento evangélico conversador seguiu ignorando os inúmeros casos de corrupção explícita do atual governo, o embusteiro Michel Temer. Antes considerado “satanista”, Temer passou a ser uma espécie de “Ciro”, o rei da Pérsia que permitiu o povo de Israel voltar à Jerusalém. Se antes a corrupção sistêmica era causada e criada pelo PT, agora é preciso colocar nas mãos de Deus o próximo Presidente, que parecem que já “elegeram” (#SQN) um dos maiores engodos da democracia brasileira, o senhor Jair “Messias” Bolsonaro.

Para esses setores conservadores da “Igreja Brasileira”, a “esquerda” precisa ser combatida e isso se dá com um discurso doutrinário efusivo, ou seja, em grandes eventos, grandes igrejas, seminários, blogs, livros e Redes Sociais. Fazem um bom trabalho de articulação e marketing. O “inimigo” a ser encarado são os representantes da então “Missão Integral”, como se essa abrigasse os pastores e teólogos da “esquerda” (algo inverossímil). Mas o foco mesmo se dá em torno de nomes como Ariovaldo Ramos e Ricardo Gondim, por exemplo. As referências a esses dois é feita de modo velado em algumas ocasiões, mas em outras se dá de maneira aberta e audível. Esse setor alega que a Teologia da Missão Integral (TMI) é uma ramificação do marxismo cultural e, portanto, precisa ser extirpado da igreja, essas ovelhas pretas, quer dizer, vermelhas. Com isso, o discurso político vem alinhado ao discurso doutrinário, de tendência agostiniana-calvinista.

Para legitimar a pregação do evangelho sem, necessariamente, o comprometimento social (tensão que perdura no movimento evangelical), os pregadores e expoentes do setor conservador alegam estar de posse da “verdade” bíblica. A fim de ilustrar, recordo que uma vez estava ouvindo Jonas Madureira, um dos principais proponentes do conservadorismo evangélico, e ele dizia que a “igreja não deveria estar sendo guiada por uma agenda social, mas sim pela agenda de Deus”. Ao final da sua fala, abriu-se para perguntas. Indaguei: “Qual a agenda de Deus hoje?”. A sua resposta foi muito interessante: “A agenda de Deus é a palavra (Bíblia)”. E completou: “Na época que o ex-Presidente Lula foi indiciado pela ‘Lava-Jato’, no domingo preguei um sermão bíblico que veio de maneira certeira no atual momento que o país estava passando”. Uma pena não ter tido o direito da réplica. Nesse caso, a agenda de Deus funcionou assim: o pregador (Jonas) fez uso de um texto bíblico que, por coincidência divina (porque se tratava de uma série de mensagens), calhou com o indiciamento do ex-Presidente e, desta forma, o texto bíblico foi lido com as lentes da ocasião, ou melhor, serviu para dizer que os fatos estavam sendo, de alguma maneira, conduzidos por Deus. Não deixa de ser uma agenda. 

Ocorre que para legitimar o discurso doutrinário, é preciso combater o “inimigo”. O “inimigo” são pessoas e igrejas que professam um discurso aberto e integrador, com uma incidência político-social, identificados, porém, com uma perspectiva política à “esquerda” (com todas as dificuldades que esse termo acarreta e suas consequências políticas em discussão até hoje). Por isso, frases como “Não encontramos Deus na face do pobre, encontramos Deus na face de Cristo”, de Igor Miguel, por exemplo, são frequentes. É uma maneira de dizer que essa leitura dos evangelhos está equivocada (Deus na face do pobre), quando o correto mesmo é olhar para o Cristo, apenas ele, porque ele é a face de Deus (revelação). Isso é bom! Mas o Cristo que revela o Pai seria aquele de Mateus 25,34-40?