21.9.21

A IGREJA QUER BRIGA! (SOBRE A TAL “GUERRA CULTURAL”)

Uma rápida busca na internet é possível ver a quantidade de pregadores falando sobre “guerra cultural” (um tema importado dos EUA para o Brasil e que ganhou força, especialmente, a partir de 2018). A maioria dos pastores, bispos e apóstolos, estão preparando a igreja para a briga. Isso porque entendem que a igreja está em uma guerra moral com essa sociedade e seus costumes e comportamentos, uma vez que tais posturas “culturais” não têm compatibilidade com a “Bíblia”. Por isso, é preciso que a igreja dê um “xeque-mate” nessa sanha imoral, brigando e fazendo valer sua moralidade através de leis e visibilidade na arena pública. Do contrário, afirmam, a igreja perderá a sua liberdade e não terá mais oportunidade de cultuar e falar abertamente a sua mensagem (desconhecem o tema da secularização?).

Um pastor de Brasília, falando sobre “guerra cultural”, disse que a igreja deve entrar nessa briga com o “evangelho e a legislação”, ou seja, não basta o evangelho pregado, é preciso brigar por uma legislação que seja compatível com o ordenamento político-religioso da igreja. Agora imagine Paulo dizendo para os irmãos de Corinto que apenas o Evangelho de Jesus Cristo não era o suficiente, mas também que os irmãos precisavam brigar para ver aprovadas leis que contemplassem o entendimento da igreja em determinados assuntos, um deles, por exemplo, a de que a adoração à César era ilegítima, porque só havia apenas um rei, Jesus Cristo.

O fato é que a igreja no Brasil, ou uma parte dela para não generalizar, não faz uma leitura da Bíblia comprometida com o seu contexto imediato. Não por acaso que há inúmeros pastores que domingo após domingo cometem erros grotescos falando do texto bíblico (não desmerecendo a força espiritual da Bíblia para as inúmeras comunidades que se reúnem em torno do texto Sagrado). A leitura da Bíblia, mais especificamente o Novo Testamento, é feita de maneira simplista em relação aos temas que perpassam o pensamento da igreja primitiva. O que ocorre é uma leitura oportunista, de ocasião. Um exemplo é que algum tempo atrás se falava muito em “pós-modernidade”. Muitos pastores deram palestras sobre esse tema sem ter lido nenhuma vez um dos teóricos do tema, o francês Jean-François Lyotard. Hoje, mudando apenas os nomes dos pregadores, usa-se os mesmos textos bíblicos de quando se falava contra a “pós-modernidade” para falar sobre a tal “guerra cultural”. Ou seja, é uma leitura ocasional. O mesmo é possível dizer sobre os pregadores que fazem palestras nas igrejas sobre o tal “marxismo cultural”, tratando-o como uma espécie de “teoria conspiratória” para derrubar os pilares da civilização judaico-cristã no Ocidente. E não é surpresa alguma que esses palestrantes nunca tenham lido as obras de Karl Marx. Mas o que importa mesmo é usar o jargão. Isso atraí incautos.

O fato é que no Brasil a igreja sempre terá um “inimigo” para lutar e armar os “crentes” para a briga. Já foi a vez da “teologia da prosperidade”, mas essa se consolidou e quem já atacou um dia se aliou a ela, fazendo uso com outros nomes para dar muito na vista. Agora é “teologia da aliança com Deus”, “da colheita”, “da semente de fé” e por aí vai. A pauta hoje é uma guerra que algumas pessoas entendem que a igreja precisa enfrentar com a “cultura”, esta reduzida em alguns temas. Isso porque a igreja evangélica nunca foi dada a entender a cultura brasileira.

Não há dúvida de que a igreja foi cooptada pela Direita com esse tema. Uma parte da igreja, por sua vez, segue fazendo o jogo político reverberando o tema como um assunto de “vida ou morte”, fazendo disso um cavalo de batalha.   

Diante disso, uma pergunta sincera: será mesmo que a igreja do Novo Testamento ensinou algo tão bélico assim? Ela foi para a guerra com o propósito de emparedar a ordem vigente e modificar as leis para que a sociedade se adequasse ao que ela entendia como o correto ordenamento político-social? A igreja aliou “evangelho e legislação” para fazer valer a sua visão de mundo? Paulo ensinou que os irmãos deveriam concorrer a cargos públicos para que, uma vez neles, aprovassem leis que pudessem favorecer o crescimento do Reino de Deus?

Quando Paulo chega em Tessalônica e apresenta o Evangelho, as estruturas da cidade são abaladas. A acusação diante das autoridades foi: “Estes que têm transtornado o mundo chegaram também aqui”. O verbo grego para “transtornar” é “revolucionar”. O Evangelho pregado tem, naturalmente, uma conotação política. Isso é inevitável. Os apóstolos foram presos e torturados não apenas porque pregavam o Evangelho, mas porque havia nele uma força subversiva que deixava qualquer autoridade local no mínimo atenta. Em Atos 17,7 a acusação foi de que os cristãos tinham “outro rei”, um rival de César. John Stott, comentando sobre esse trecho no seu comentário de Atos dos Apóstolos, irá dizer: “O senhorio de Jesus possui implicações políticas inevitáveis já que, como servos leais, não podemos dar a nenhuma autoridade ou ideologia a honra suprema e a obediência total que devemos apenas a ele”. Isso não era qualquer coisa, era grave! Na mesma linha, o estudioso do Novo Testamento N. T. Wright, irá dizer: “A obra missionária de Paulo deve ser concebida não simplesmente em termos de um evangelista itinerante oferecendo ao povo uma nova experiência religiosa, mas de um embaixador de um rei em exercício, estabelecendo coalizões de pessoas leais a esse novo rei”.

Os cristãos causavam transtornos, porque era um povo que não se importava se o imperador era bonito ou feio; se ele tinha tanques de guerra ou não; se ele poderia dar terras para a igreja ou não; se ele poderia oferecer cargos no seu governo ou não! Não havia nenhuma preocupação em mudar o ordenamento político-jurídico do Império a partir de dentro. Isso porque a igreja tinha uma mensagem que estava para além desse ordenamento. É por essa razão que James K. A. Smith irá afirmar: “O evangelho, então, é profundamente contra imperial – contra os impérios dos Césares de nosso mundo”.

Ao que parece, a igreja, pelo menos uma parte dela no Brasil, desconhece o poder e a força do Evangelho porque precisa se aliar aos políticos para vencer uma guerra que ela, a igreja, nunca deveria travar. O interessante disso, é que filósofos como Slavoj Žižek, que professa o ateísmo, entende muito bem qual deveria ser o papel dos cristãos para este tempo enquanto muitos cristãos nem mesmo fazem ideia do papel preponderante que exercem na sociedade. Diz o filósofo: “A responsabilidade primeira dos cristãos não é assumir a sociedade e impor suas convicções e seus valores a quem não tem sua fé, mas ‘ser a Igreja’. Recusando-se a responder ao mal com o mal, vivendo em paz e dividindo bens, a Igreja comprova que há uma alternativa à sociedade” (parece que aqui caberia muito bem Lucas 19,40).

A igreja precisa pregar a Cristo! Pregar a Cristo significava dizer para todo o mundo de que há um rei, e ele não é o César; há uma esperança, e ela não está na força das armas; há uma subversão da ordem, porque esta que aí está afronta o Deus de justiça e graça.

A igreja não deveria lutar “guerra cultural” nenhuma. O teólogo Miroslav Volf, em entrevista para um jornal aqui, disse que “as igrejas deveriam ficar de fora de guerras culturais”. O que, então, a igreja deveria querer? Faço minhas palavras a de James K. A. Smith: “Não estamos querendo ganhar uma guerra cultural; estamos apenas tentando ser testemunhas. Não estamos querendo ‘transformar’ a cultura através de carteirada da máquina do Estado; estamos tentando esculpir pequenos antegostos de um Reino vindouro”. E há outra coisa que a igreja foi chamada para fazer de acordo com o Novo Testamento?

2.9.21

A IGREJA QUE ATRAPALHA A LÓGICA DO MUNDO

Thomas Hobbes é o filósofo conhecido por escrever a obra Leviatã. Nesse texto, o filósofo inglês coloca a necessidade de haver uma sociedade forte com um governo forte. Para isso, a sociedade deveria ter uma autoridade centrada ou num monarca ou em uma assembleia e isso garantiria a paz e a defesa do bem comum. Essa autoridade deveria ser um Leviatã (monstro marinho citado no Antigo Testamento).  O Leviatã, em Hobbes, seria aquela autoridade inquestionável, onde todos devessem obediência e servisse para o bem de todos.

Ocorre que para Hobbes havia algo que atrapalhava a concretização dessa forma de governo, do Leviatã. Tratava-se do cristianismo. 

Escandalizava Hobbes o potencial subversivo do cristianismo. Isso porque ele envergava no cristianismo, mais propriamente na igreja, uma capacidade de desagregar o poder da autoridade. Esse poder, como deixa claro o filósofo inglês, deveria ser único e absoluto nas mãos de um monarca ou assembleia, um Leviatã. Desse modo, Hobbes compreendia que a igreja causava uma divisão no poder quando fazia distinção entre secular e religioso. O que mais impressionava Hobbes, era a submissão que as pessoas faziam, voluntariamente, a um único Deus vivo e isso ameaçava toda e qualquer autoridade secular.

Comentando sobre os romanos e como eles trataram o cristianismo assim que se tornou conhecido no Império Romano, Hobbes salienta: “Os romanos, que conquistaram a maior parte do mundo conhecido de então, não tinham escrúpulos ao tolerar a religião que fosse, na própria cidade de Roma, a menos que houvesse nela algo incompatível com o governo civil”. O cristianismo estava nessa religião “incompatível com o governo civil”. Isso porque o cristianismo se constituía uma força autônoma, heterodoxa, que não fazia questão alguma de estar vinculada ao poder estatal e isso incomodava e atrapalhava os planos de qualquer autoridade. Não por acaso que o imperador, não podendo vencer os cristãos, o cooptaram para o Império, tornando o cristianismo religião aceita e, logo depois, oficial.

A igreja, quando está imbuída da sua gênese, atrapalha qualquer tentativa de poder e controle político-social. A razão é muito simples: a igreja tem a sua origem no feito escatológico do Cristo, a sua permanência nesse mundo não está condicionada a qualquer recompensa meritória, uma vez que essa recompensa já foi concretizada de modo escatológico na cruz-ressurreição. Assim, a igreja tem algo que está para além da própria igreja, algo que a mantém, mas não a torna dona, o que seja, o seu horizonte escatológico.

Nessa constituição escatológica de ser igreja, ela carrega algo que ousa celebrar, mas que não possui, e ousa representar o que não é da sua propriedade, além de proclamar uma palavra que não é deste mundo. É por essa razão, que a igreja pode estar envolvida politicamente com este tempo porque o que este mundo e sua lógica poderia oferecer a ela, a igreja, não é compatível com aquilo que ela já tem, o que seja, um horizonte escatológico delineado pelo Cristo com a proclamação do Reino de Deus. E o Reino de Deus não cabe na lógica do mundo.

É nesse sentido, portanto, que a igreja atrapalha a lógica do mundo.

A lógica do mundo é conhecida: torna as pessoas mercadorias; estabelece as relações pessoais a partir de uma lógica de poder. A isso, acrescenta-se os pastores midiáticos que fazem uso dessa lógica quando utilizam sua influência para barganhar com o poder estatal. A lógica do mundo está atrelada ao “quem pode mais, chora menos”; a lógica do mundo faz questão de acentuar as diferenças entre as pessoas, quer por gênero, condição econômica ou status social.

Aí vem a igreja e empareda toda essa lógica quando diz: judeus e gregos podem coexistir no mesmo lugar; mulheres, homens e crianças não são diferentes; as distinções sociais não são critério de aceitação por Deus; o status social de alguém não tem valor meritório na vivência comunitária. Isso é realmente revolucionário. Primeiro para um Império estratificado socialmente como era o romano e depois para o mundo em que o valor das pessoas são medidos pela conta bancária.

E como a igreja rompe com essa lógica? Pegando em armas e planejando a derrubada dos poderes constituídos? A igreja precisa ser anárquica para subverter essa lógica? Não! Obviamente que não.

A igreja rompe e atrapalha a lógica do mundo quando em culto celebra a existência dos enfuturados. Sim, a liturgia (que significa serviço para o povo) é o espaço em que a igreja reunida diz em claro e bom som que as estruturas desse mundo são pecaminosas e que somente pela mensagem da cruz de Cristo e na esperança da ressurreição as coisas terão o seu desfecho dentro da perspectiva divina.

Antes mesmo de James K. A. Smith publicar a sua bela trilogia sobre “Liturgias Culturais”, o teólogo J.J. von Allmen, com o seu livro O culto cristão: teologia e prática, já dizia que a igreja em culto questiona a justiça dos homens e constitui uma “ameaça para o mundo”. Allmen diz: “O culto é o desmentido mais eloquente das pretensões que o mundo possa ter de prover aos homens”. É por essa razão, segundo von Allmen, que “o culto cristão, pelo mero fato de ser celebrado, é um ato fundamentalmente político”. Mais tarde James K. A. Smith, no seu texto Aguardando o rei, irá afirmar: “A adoração da igreja não é apenas uma polis alternativa de um enclave isolado; ela é sempre uma intervenção política no ‘mundo’”. A força da igreja reside na sua celebração que ganha dimensão política quando, de maneira profética, proclama a sua mensagem para um mundo que vive a partir de uma lógica mundana.

Igreja, é aquela comunidade formada de pessoas que fazem questão de atrapalhar a lógica do mundo com a sua postura contestatória e audível quando, de maneira litúrgica, diz para todos que possam ouvir: entre nós não temos um kyrios, não temos um führer, não temos um messias. Temos somente um Senhor, Jesus Cristo, a quem anunciamos como loucura para este mundo e sua lógica desagregadora.

Em um tempo em que parte da igreja foi capturada pelo poder político-econômico no nosso país e tendo, infelizmente, a parceria de pastores para fomentar ainda mais a ebulição social, lembremos, mais uma vez, qual é o papel que a igreja de Jesus Cristo deve exercer nesse tempo. Este é o momento de parte da igreja reconsiderar se realmente os seus caminhos são de paz ou de mal (Jr 29,11). Isso é preciso, caso a igreja queira continuar a ameaçar, escandalosamente, o poder do Leviatã.