17.5.20

BATISTAS E BOLSONARISTAS: COMPATÍVEIS?

Antes de mais nada é bom deixar claro o que seja o bolsonarismo. Trata-se de um fenômeno social, que envolveu uma parcela da sociedade brasileira que nutria já algumas décadas um discurso de extrema-direita, mas que depois das Eleições de 2018 houve uma radicalização e uma organização como militância político-partidária, antes PSL e agora Aliança pelo Brasil, que não se concretizou ainda como partido. Esse fenômeno social ganhou proporção maior com o então candidato do PSL à presidência da República, Jair Bolsonaro. Depois do pleito, tendo como resultado a eleição do atual presidente, o bolsonarismo seguiu sendo um grupo com pautas antidemocráticas, explicitadas em manifestações, como também um grupo com um braço paramilitar em treinamento que não esconde o uso de armamento como pretexto para se defender de um inimigo identificado como “esquerdistas” e “comunistas”. Além disso, esse grupo tem o apoio e o alimento intelectual do seu principal guru, Olavo de Carvalho, que vive já algum tempo nos EUA e de lá mexe algumas peças no tabuleiro do governo. Daí que para alguns a expressão mais adequada seria “bolsolavismo”. De qualquer forma, há pesquisadores que asseguram que o bolsonarismo é maior que Jair Bolsonaro. Caso ele saia do governo, terminando o mandato ou sendo retirado, o fenômeno social bolsonarismo irá perdurar.

Além desse dois aspectos desse fenômeno social chamado bolsonarismo – a militância raivosa e o braço paramilitar –, há também o endosso acrítico de uma parcela da Igreja Evangélica. Com uma pauta moral esbravejante nas falas de um Silas Malafaia e um Marco Feliciano, apenas para citar esses dois como um estereótipo de que “evangélicos” estamos nos referindo aqui, fez-se campanha para o então presidente e assumiu definitivamente a face bolsoevangélica do Governo Federal, com ministros evangélicos, bem como uma agenda presidencial voltada apenas para esse segmento religioso do país, que é, por natureza, plural na sua religiosidade. A narrativa é: “O Estado é laico, mas eu sou cristão” (leia-se, simpatizante dos evangélicos). O fenômeno social do bolsonarismo capturou o desejo nutrido por anos de ter, finalmente, um “presidente evangélico” e elegeu Bolsonaro como seu “messias”. Dessa forma, foi possível surgir, como em outras épocas da política nacional, mas muito mais acentuado agora, um messianismo político-evangélico quando passou a idolatrar o presidente da República como um “salvador” do país que estava, segundo eles, indo a reboque quando um determinado partido no poder pregava aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ideologia de gênero e militância política de esquerda nas escolas e universidades. Assim, o bolsonarismo passou a funcionar como um parasita que encontrou na Igreja Evangélica (parte dela e alguns líderes) um fiel hospedeiro.  

Para a surpresa de alguns, a decepção de outros e a resistência de uma maioria, o bolsonarismo também conseguiu capturar mentes e almas entre os batistas. Não apenas membros, mas pastores passaram a fazer parte da militância bolsonarista. Para citar um, em específico, há o pastor Josué Valandro Jr., da Igreja Batista Atitude, no Rio. No dia 19 de Agosto de 2018, o pastor chamou à frente o candidato do PSL à presidência da República. Sua intenção era orar pelo candidato, uma vez que a esposa do candidato era membro da referida igreja. Além de emitir a sua opinião a favor do candidato, a vontade de Deus, segundo o pastor, pelo menos num primeiro momento, já estava manifestada para ele: o presidente era o então candidato ao seu lado. Mesmo que o pastor tenha dito que na igreja não havia “voto de cabresto”, ele negou, pelo menos, dois princípios dos batistas. Um deles é a separação entre Igreja e Estado. Por esse princípio, o candidato do PSL não deveria estar à frente da igreja, a não ser que este fosse o presidente do país. O segundo princípio, é a liberdade de consciência e opinião, que faculta a todos o direito inalienável de decidir suas questões morais, éticas, políticas e religiosas.

Os batistas, para um rápido recurso da história, surgem como um grupo político-religioso organizado que luta com veemência pela liberdade religiosa e, como consequência, a separação entre Igreja e Estado, reivindicando, portanto, o lugar do indivíduo como fator decisivo de consciência, opinião, crença e participação política.

Tendo os batistas a sua gênese no movimento liberal inglês, eles participam dos anseios e perspectivas de sua época, ou seja, liberdade religiosa e separação entre Igreja e Estado. Esse ímpeto por liberdade levou o filósofo inglês John Locke a dizer que “os batistas foram os primeiros proponentes de uma liberdade absoluta, justa e verdadeira liberdade, liberdade igual e imparcial”.

Recentemente, houve deliberada desconsideração ao ethos histórico-político-teológico dos batistas e dos caros princípios fomentados pelos batistas ingleses da liberdade de consciência e separação entre Igreja-Estado. O ethos histórico-político-teológico dos batistas se dá a partir do (i) livre exame da Palavra de Deus; (ii) da liberdade de consciência; (iii) da responsabilidade pessoal para com a igreja local e outras coirmãs; (iv) a responsabilidade civil para com o Estado; (v) a separação entre Igreja e o Estado; (vi) e o amor, que gera conduta e respeito para com o próximo, testemunho e ação no mundo.

A partir disso, quem diz que é batista e tem nessa tradição o seu balizamento para se identificar como tal, não poderia ser bolsonarista. Esses dois pontos não são convergentes, antes são antagônicos.

O ser batista não tem qualquer relação com quem defende o fim de instituições que compõem o Estado Democrático de Direito, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Os batistas não tem no seu histórico o fim do estrato político, antes, foi a partir do estrato político que lutaram para que os princípios que balizam o ser batista hoje fosse possível. Martin Luther King Jr., para citar um exemplo, pastor batista ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1964, não fez qualquer tipo de manifestação contra as instituições políticas dos EUA. Diferente de Malcon X, Luther King não defendeu luta armada contra o governo porque os direitos civis dos negros não estavam sendo respeitados a partir da Constituição norte-americana. Antes, as batalhas se travaram no campo político, mesmo sofrendo constantes atos de violência. É desse batista a seguinte frase: “Através da legislação e de ordens judiciais procuramos regular o comportamento”. Luther King nunca cogitou lutar fora do contexto político e democrático. Portanto, batistas que se julgam bolsonaristas estão equidistantes do que é o espírito de luta e resistência que a tradição batista legou.

O ser batista não tem qualquer relação com quem defende a volta do Ato Institucional número 5. O AI-5 é o ato mais cruel do período da Ditadura Civil-Militar no país (1964-1985). O AI-5 estabelecia: “A suspensão dos direitos políticos; suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de frequentar determinados lugares”. Esse foi o AI-5 com todos os seus elementos de privação e violação de direitos em nome de uma guerra contra o “comunismo” que nunca foi possível de maneira direta no país. É esse mesmo Ato Institucional que é proclamado por bolsonaristas. A incansável busca dos batistas se deu a favor da liberdade e isso custou a vida de Thomas Helwys que morreu na prisão por defender o direito de dizer o que pensava.

Por fim, ressalto a definição do ser batista de A. B. Langston: “Os batistas são um povo que tem a coragem das suas convicções. Creem num indivíduo livre, numa igreja livre, num estado livre; creem nos direitos iguais para todos e privilégios especiais para ninguém; creem numa democracia política, religiosa, social, econômica e educativa”. Quando que ser bolsonarista se enquadraria em algo assim? Nunca!

Democracia combina com o ser batista, já com o bolsonarismo jamais!

14.5.20

A "BOLSORRELIGIOSIDADE": A NOVA SEITA BRASILEIRA

Religião é rede simbólica perpassada por memórias, metáforas, ritos e narrativas, cujo sistema interpreta o mundo e a realidade a partir do conjunto de valores e saberes partilhados por determinado grupo. Por vezes, o fiel se sente na obrigação de defender seus dogmas e verdades irredutivelmente, ao mesmo tempo em que precisa proteger seus líderes, dos quais aceitam acriticamente suas informações sagradas. No Brasil, temos testemunhado um tipo novo de fenômeno religioso: a bolsorreligiosidade. Em termos gerais, essa nova expressão de fé tem algumas características: moralismo intolerante, messianismo acrítico, monofonia, sacrificialismo violento, antipatia à ciência, dualismo e verborragia com indícios de pós-verdade.
A Bolsorreligiosidade defende conceitos pouco realistas de família tradicional, o que alimenta intolerância contra a pluralidade e modelos não adequados ao padrão idealizado. Por vezes, tem relações sincréticas com evangélicos fundamentalistas, o que alimenta um moralismo intolerante. É messianicamente acrítica, porque preserva um discurso messiânico tipicamente sebastianista. Bolsonaro é aceito como modelo de salvador, o qual representa a descontinuidade e novidade político-religiosas. O seu messias é blindado pela infalibilidade, o que desenvolve um sistema idólatra. Com pouco espaço para o contraditório, essa expressão religiosa é monofônica. Ou seja, os dogmas da bolsorreligiosidade não abrem espaços para o diálogo ou polifonia. A eliminação inquisitorial é seu modus operandi no trato com as heterodoxias. Consequentemente, tem traços da religiosidade sacrificial-violenta. Como as religiões primitivas, a bolsorreligiosidade tem na linguagem e práticas violentas a proteção de seu sistema de crenças e bens simbólicos. Qualquer ameaça é passível de punição. Por outro lado, nessa expressão de religiosidade o bolso-messias sacrifica-se pelos fiéis, porque é visto como um tipo de servo sofredor.
Comum nas expressões religiosas mais fundamentalistas, costuma relativizar o valor da ciência ou mesmo negá-la. Em sintonia com discursos e mentalidade medievais, essa expressão religiosa repetidamente desqualifica o saber científico. Na bolsorreligiosidade o obscurantismo e a ignorância são tratados como provas de fé e fidelidade. Naturalmente, nessa perspectiva, o mundo deixa de ser social e historicamente complexo, pois é dividido de maneira maniqueísta e dualista: nós x eles, bons x maus, cidadãos de bem x comunistas, fiéis ao Messias x marxistas. E, como estratégia de blindagem de suas contradições e legitimação das incoerências, usam-se expressões verborrágicas perpassadas por tendências comuns da “pós-verdade”: o real e verdadeiro serão sempre modelados pelas crenças do seu líder, mesmo que não haja qualquer fonte legítima ou plausível. Por ser fortemente retórica, as afirmações aceitas pelos seus fiéis não dependem de comprovação, bastam repetir discursivamente suas crenças.
Por essa razão, precisamos, mais do que nunca, preservar no Brasil a inegociável separação entre religião e Estado.

Kenner Terra
Jornal A Gazeta 

2.5.20

DA ESTUPIDEZ

*Dietrich Bonhoeffer (texto de 1943)

A estupidez é mais perigosa que a maldade. Contra o mal se pode protestar; o mal pode ser exposto, revelado; pode também ser evitado, se necessário, até pela força; o mal sempre carrega o germe da autodecomposição, deixando pelo menos um desconforto naquele que o pratica. Diversamente, não há como se defender da estupidez. Nada pode ser feito aqui com protestos ou com violência; razões não a convencem; simplesmente não se dá crédito a fatos que contradigam o próprio preconceito – em tais casos, o estúpido se torna ainda mais resistente – e se esses fatos são incontestáveis, podem com facilidade ser postos de lado como casos isolados e sem sentido.

O estúpido, ao contrário da pessoa má, sente-se completamente satisfeito consigo mesmo; sim, ele até se torna perigoso, enfurecendo-se facilmente quando é refutado. Portanto, a relação com o estúpido exige muito mais cautela do que com a pessoa má. Nunca se há de convencer o estúpido pela razão – é inútil e perigoso. Para saber lidar com a estupidez, é preciso antes procurar entender sua natureza. Não se trata essencialmente de um defeito intelectual, mas algo que atinge a humanidade do sujeito. Tanto é assim que existem pessoas de inteligência extraordinariamente ágil que são estúpidas e pessoas intelectualmente pesadas que podem ser tudo, menos estúpidas.

Para nossa surpresa, chegamos à seguinte conclusão: parece que a estupidez não é propriamente um defeito congênito, mas um processo em que as pessoas se tornam estúpidas sob certas circunstâncias, ou deixam-se fazer estúpidas de forma recíproca. Também observamos que a estupidez aparece mais em pessoas ou grupos propensos ou condenados a viver em comum do que em pessoas mais fechadas, reservadas e solitárias. Assim, parece que a estupidez é um problema mais sociológico do que psicológico. É uma forma especial de influência das circunstâncias históricas sobre o homem, isto é, uma consequência psicológica de certas circunstâncias externas. Em uma análise mais detalhada, verifica-se que toda forte expansão externa do poder, seja política ou religiosa, golpeia um grande número de pessoas com estupidez. Sim, parece que é uma lei psicológica e sociológica. O poder de alguém precisa da estupidez de outrem.

O processo não é que, de repente, algumas faculdades – como a intelectual - definhem ou fracassem, mas sim que a independência interna da pessoa vai sendo roubada pela impressão esmagadora do desenvolvimento do poder, até que – mais ou menos inconscientemente – essa pessoa renuncia a encontrar seu próprio comportamento em relação às situações que a vida lhe apresenta.

O fato de o estúpido ser muitas vezes teimoso não significa que ele seja independente. Conversando com ele, você quase pode sentir que seu discurso nem sequer tem a ver com ele mesmo, com aquilo que o constitui. Trata-se de frases de efeito, slogans e chavões que se apoderaram dele. Ele está enfeitiçado, cego, abusado e maltratado em sua própria natureza. Tornando-se assim um instrumento sem vontade própria, o estúpido será capaz de todo o mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer-se mau ou de reconhecer maldade em seus atos. Aqui está o perigo de um abuso diabólico. Como resultado, as pessoas serão destruídas para sempre.

Disso decorre que somente um ato de liberação – e não um ato de instrução – poderá superar a estupidez. Na grande maioria dos casos, para superar a estupidez, a pessoa terá de aceitar que uma genuína libertação interior só se tornará possível após a libertação externa; até então, sem essa condição, teremos que desistir de todas as tentativas de convencer os estúpidos. A propósito, nesse estado de coisas, fica bem claro que em tais circunstâncias é vão tentar saber o que "o povo" realmente pensa, mesmo porque, ao mesmo tempo – nessas dadas circunstâncias – qualquer resposta seria supérflua para o pensador e realizador responsável.

Palavra da Bíblia que diz que o temor de Deus é o começo da sabedoria (Salmos 111: 10); diz que a liberação interior dos humanos, para uma vida responsável diante de Deus, é a única verdadeira superação da estupidez.

De resto, esses pensamentos sobre a estupidez são reconfortantes, pois não permitem tratar a maioria das pessoas como estúpidas a todo custo. Realmente, isso dependerá da tendência dos Poderes Instituídos, vale dizer, se querem tornar seu povo estúpido ou se buscam a independência interior e sabedoria de seus governados.