8.12.17

NÃO FOI NO PALÁCIO DE HERODES

O evangelho de Mateus coloca na narrativa do Natal a figura do asqueroso político Herodes em diálogo com os viajantes do Oriente e os chefes dos sacerdotes.

O capítulo 2 de Mateus, usa como construção literária um recurso conhecido como midraxe – é a explicação de um texto bíblico feita livremente com alegorias, imagens, comparações e até mesmo fantasias. Mateus quer equiparar Jesus à Moisés e para isso ele, habilidosamente, constrói um texto em que Jesus e Moisés são semelhantes. Assim como o Faraó procurou matar crianças no Egito e Moisés é poupado milagrosamente, Herodes faz o mesmo; assim como Moisés vai para o Egito, Jesus tem o mesmo caminho; assim como Moisés sobe ao Monte Sinai e recebe os Dez Mandamentos, Jesus profere as dez (contando com o versículo 12) bem-aventuranças no monte.

No início do capítulo 2, Mateus coloca, propositadamente, a figura de Herodes, o Grande, em contraste com o menino rei Jesus – “nos dias do rei Herodes”. Há um conflito aqui entre dois reis que são distantes em propósito e diferentes em condições.

Herodes – este vivia os meandros da política. Estava acostumado com o jogo de poder. A sua busca era expandir sua riqueza e influência na conturbada região. Gabava-se de ser “amigo” do imperador romano e todos que eram contra ou representava alguma ameaça ao seu domínio ele procurava eliminar. Por conta disso matou os três filhos e a esposa. Herodes governava a partir de construções e embelezamento de cidades, inclusive foi financiador da reforma do templo de Jerusalém. Isso lhe rendeu adeptos e o colocou como protagonista diante da classe sacerdotal.

Herodes representa a inveja, o interesse próprio, o poder simplesmente por ter. Ele é o ícone da nossa sociedade em que as relações são estabelecidas pelo interesse, onde a troca é um elemento chave de relacionamento, desde o casamento até os presentes de fim de ano.

Quando os “magos” procuram um rei que não seja ele, prontamente ele quer encontrar o menino a fim de matá-lo. Mateus faz uma criança suplantar o notório e poderoso Herodes; ele faz uma flor parar um canhão; ele faz uma luz, ainda tão pequena, dissipar as densas trevas. A opulência do castelo de Herodes não foi suficiente diante da manjedoura. Há outro rei, exclama os “magos”, e este não é Herodes e mais, os presentes são para ele e não para o temível rei. 

A manjedoura quer dizer “Deus conosco”. Um Deus que veio nos mostrar que a ordem das coisas pode mudar. A manjedoura é sinal de simplicidade, amor, acolhimento, visitação. O palácio gélido de Herodes é sinal de poder, sem graça, de força, sem autoridade, de ostentação de uma sociedade que busca nas relações de poder e na riqueza o seu bem-estar.

O que significa o menino não nascer em um palácio?

Significa que não se pode coadunar com quem explora o seu povo com impostos abusivos; significa que não se deve aplaudir medidas governamentais que beneficiam os mais ricos; significa ainda, que o Deus menino preferiu um lugar qualquer, rodeado de gente considerada ralé, para dizer que é assim que Deus é! Como? Uma criança.

Ele não está no palácio de Herodes, muito menos no templo de Jerusalém. Do templo vieram quem sabia onde iria acontecer o milagre da vida: “É em Belém da Judéia, pois é isto que foi escrito pelo profeta”. Só souberam dizer isso, porque ver o menino não foi possível. Ele não está disponível para um sistema religioso que faz conluio com o poder estatal para vilipendiar ainda mais a fé do povo. Sacerdotes sabem dizer o que é para fazer e como fazer. Mais ainda, sacerdotes sabem muito bem aplicar a pena quando não se faz ou se faz errado. No templo? Nesse, com certeza, o menino não nasceria. Está maculado pelo espúrio. Ele abriga um feudo familiar que se perpetua no poder. Lá, tem um banco que cobra muito caro para fazer o câmbio de uma moeda romana. Nem palácio, nem templo. Manjedoura. Sem luxo, sem dinheiro, mas com amigos (“magos") e colo (Maria e José). Natal é isso. É Deus dizendo: acolham o menino. 

6.12.17

(IN)GOVERNABILIDADE DE DEUS

Imaginemos a crença em um deus que conduz bem a trajetória das pessoas.

Ele é, pois, o grande responsável por cuidar de todas as pessoas porque as amam. Depreende-se desse raciocínio que o cuidado decorre do amor desse deus que, não obstante ter criado tudo e todos, cuida, vigia e conduz a tudo e a todos. Para tanto, é dotado de onisciência (sabe tudo), de onipresença (está em todos os lugares), de onipotência (pode todas as coisas); agora, imaginemos, ainda, que na ordem do curso da vida existam catástrofes de grande impacto ou episódios nefastos e que as pessoas comumente atribuam à harmatiologia (ao pecado e à pecaminosidade tais situações), as consequências deletérias do problema do mal. Ora, nesse caso ou deus não resolveu o problema do pecado porque não pôde (então, sua onipotência é colocada em questão) ou não o resolveu porque não quis (e a sua amorosidade estaria em questão).

Por outro ângulo, decorrente dessa catástrofe hipotética, alguns crédulos oram assim: "deus, obrigado porque tu me livraste [...]" e outros lamentam: "ah, deus... por que tu não me livraste?". Tem-se, então, uma aporia (uma questão de difícil resolução na ordem e no estado de coisas de uma teologia incômoda), posto que se deus interfere na história (teoria da providência anterior ao século XVIII), se deus é bom e amoroso (representações do deus monoteísta ou não), e, ao mesmo tempo, não interferiu nas minhas questões vitais sabendo de todas elas - que mexem com destino de crianças, idosos, dependentes, entre outros, coloca-se em xeque ou é colocado em xeque por seus seguidores. Eis o grande dano da doutrina da "soberania de deus".

Do ponto de vista da teologia de Calvino, engendra-se um problema moral para deus (que deus não se atribui a si próprio): ele é soberano e governa a história - além de ser "predestinista" e escolhe pessoas para morar no que idealmente chama-se céu. Portanto está comprometido com os destinos e os cursos dos acontecimentos e, ao invés de julgar, é julgado por aqueles que sofrem o tempo: que emitem ações sobre suas ações ou omissões.


Não é possível, porém, acreditar em um deus assim - sensível na governabilidade e entronizado para desentronizar pessoas. Porque existe uma outra estética e certa autonomia de vida, o centro da história é o ser humano e é ele quem toma decisões segundo a imprevisibilidade de suas ações: se entra em um avião com problemas nas turbinas, as suas limitações e os seus desconhecimentos poderão matá-lo sem que se envolva um deus soberano sentado no trono que a tudo sabe. Deus não se interessaria por turbinas de aviões. 

Se deus é a "projeção das angústias humanas", ele não existe de outra forma: está existencialmente relacionado ao sistema de angústias de seres humanos indecisos, inquietos, mortais, finitos. Quem faz a história, conduz a história e comanda a história são os seres humanos tais que - regidos por relações de poder - se apresentam a ela segundo o curso da ordem, dos acontecimentos, das ocorrências. 

Nesse sentido, orar, rezar e espiritualizar são artefatos ou urdiduras oralizadas ou não que mexem, que abalam, que moldam, que perfazem os caminhos da subjetividade do próprio crédulo. Só.

Mas, isso resulta em uma dimensão ético-afetiva dos caminhos de deus e do comportamento do ser humano diante da Estética que ilumina a vida. Eis o porquê do sentimento religioso e de sua historicidade.

- Leandro Seawright (Doutor em História Social pela USP)

31.10.17

ERASMO E LUTERO, OU DE COMO AS COISAS SAÍRAM DO CONTROLE

Num primeiro momento, Lutero questiona o domicílio da verdade na Igreja. Isso ele faz quando escreve o Manifesto à nobreza alemã e A igreja no cativeiro da Babilônia. Nesses textos, Lutero passa de um crítico da Igreja para um questionador da regra de fé da Igreja, ou seja, ele estabelece um novo critério religioso que, agora, não passa mais pela Igreja e seus concílios que, segundo Lutero, continham erros, porque eram feitos por homens. É nesse momento que o monge agostiniano passa de questionador para um líder reformador. Não por acaso que Johann Eck fica escandalizado com Lutero quando este nega a autoridade do Papa e da Igreja em assuntos religiosos. Dar-se um rompimento em torno do que se concebia como verdade quando Lutero muda o eixo, da Igreja para o crente: “Todos os cristãos têm a capacidade de discernir e de julgar o que é certo ou errado em questões de fé”. Agora são as Escrituras o critério de verdade, superando o Papa em sua autoridade.

Para Lutero a liberdade está condicionada à consciência, sendo a consciência condicionada às Escrituras. Eis o novo critério de verdade. Como bem pontua Richard Popkin, “a caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequências extremamente amplas não só na teologia, mas em todos os domínios intelectuais do ser humano”. Uma vez aberta a possibilidade de lidar com o novo, ou seja, haver outros critérios para a verdade, busca-se o verdadeiro critério. Se por um lado a Igreja acusava a consciência de não ser confiável, portanto haveria de ter um elemento discernidor, nesse caso a Igreja, para dar orientação; por outro lado Lutero insistia que o elemento discernidor não seria (não poderia) ser a Igreja, mas o crente. Não sem razão, que “um dos argumentos apresentados pelos católicos ao longo de toda a Reforma foi que o critério de Lutero levaria à anarquia religiosa” (Richard Popkin). A mudança de critério para a verdade levou à pluralidade, principalmente quando “qualquer um poderia recorrer à sua própria consciência e manter que o que lhe parecia a verdade era verdade”. Lutero chegou a ver o surgimento da pluralidade quando, por exemplo, os Anabatistas acirram ainda mais os postulados da Reforma. A mudança de critério, ocasionou uma diversidade religiosa na Europa, levando reformistas a condenar como heréticos aqueles que, no uso de suas consciências, promoveram movimentos a partir de outros critérios de verdade, como o acesso à terra, como foi o caso dos camponeses liderados por Thomas Müntzer, por exemplo.

Para Lutero o critério de verdade se dá na Bíblia. Como fonte da verdade e critério último, até porque era preciso apresentar um, a Bíblia é o único recurso de Lutero diante da Igreja. A premissa era: “Tudo o que nós sabemos de Deus e da relação homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura. Esta, portanto, deve ser entendida com rigor absoluto, sem interferência de raciocínios e glosas metafísico-teológicas”. Colocar na Bíblia o critério de verdade abre a possibilidade de interpretações. Essas interpretações, dentro da própria Bíblia, se constitui plural.

Quando Lutero se viu diante dessa pluralidade de perspectivas e interpretações com o, agora, único critério de verdade, “pouco a pouco foi se tornando dogmático e intransigente, pretendendo, em certo sentido, estar dotado daquela ‘infalibilidade’ que contestara o Papa”. Lutero viu a pluralidade e não gostou do que viu. Erasmo tinha alertado Lutero quanto a obscuridade de trechos das Escrituras, e que por isso, era preciso contar com a sabedoria da Igreja (tradição) para orientar. Já Lutero, insistia de que “para encontrar as verdades basta consultar as Escrituras”. O livre exame, do qual Foucault atribuiu o surgimento do pensamento crítico, não funcionou do jeito que Lutero poderia ter imaginado, principalmente quando o meio para se conhecer a verdade contida nas Escrituras foi colocado sob responsabilidade do Espírito Santo. Ingenuidade ou não, para Lutero o Espírito Santo não permitiria a dúvida e a incerteza. A terceira pessoa da Trindade não colocaria “em nossos corações opiniões incertas, mas sim afirmações da maior firmeza” (Lutero).

Ao que parece, Lutero não confiou tanto assim na figura do Espírito Santo quando viu que um dos principais postulados da Reforma, a liberdade da fé, se tornou em algo que ele não pôde controlar. Seria por essa razão que Lutero induziu os Príncipes que controlassem a vida religiosa do povo, “chegando até a exortá-los a ameaçar e punir todos aqueles que desleixavam as práticas religiosas”? Para quem proclamou uma emancipação diante de um sistema opressor que instrumentalizava as indulgências como discurso político castrador da autonomia do humano, Lutero não foi diferente quando passou aos Príncipes a tutela espiritual do povo como patrimônio político destes, surgindo, então, a união entre Igreja e Estado na Alemanha.

Como um pêndulo, Lutero poderia não ter se dado conta (ou se deu e foi tarde demais para revogar) que os principais pressupostos da Reforma abriria outros pressupostos e desses não se teria mais o controle, mesmo que tentasse. Mas Erasmo o alertou...

Referências
POPKIN, Richard. História do ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 2000, p. 26-33.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Descartes. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, v. 3, p. 69-74.
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 284-285.

16.10.17

“SOMOS COLECIONADORES DE DESAFETOS”

Uma conversa entre pastores

Em conversa com um colega pastor, falávamos de como o ministério tem seus bons momentos, sendo esses, os bons momentos, relacionados com a promoção humana. Ambos concordávamos de que um ministério pastoral “produtivo” precisava estar focado nos relacionamentos com efetiva participação do pastor na vida dos integrantes da comunidade de fé e a estrutura, obviamente importante, uma vez que estamos inseridos nela (prédio, recursos, denominação), não constava como a primeira na nossa agenda, mas tendo o seu lugar minimizado e o humano maximizado.

A participação efetiva do pastor na vida dos membros da comunidade passa, inevitavelmente, por lidar com problemas, conflitos e dificuldades dos participantes da comunidade, quando solicitado para uma intervenção (aconselhamento). Nessa lista constam casamentos desajustados e mal resolvidos; frustrações por perdas reparáveis; doenças das mais agressivas e complicadas de lidar como um câncer; pessoas com síndrome do pânico e depressão; a sexualidade; violência doméstica; disputas judiciais. Esses são alguns dos problemas e conflitos dos quais o pastor está, direta ou indiretamente, envolvido. A tomada de decisão em alguns casos desses, acarretam enormes desgaste emocional e físico, alguns sucumbindo em problemas depressivos e, lamentavelmente, tirando a própria vida. Além disso, a família é uma preocupação, principalmente quando há filhos e eles acompanham a rotina do ministério pastoral. Infelizmente, em alguma Casa Pastoral, os filhos não são, devidamente, “blindados” quanto aos problemas e desafios do ministério, principalmente quando assuntos que envolve pessoas da comunidade surgem na mesa do almoço em um domingo depois da EBD.

Ainda em conversa com esse colega, chegamos no ponto de falar dos desafetos. Uma frase que chamou a minha atenção foi: “somos colecionadores de desafetos”. Isso também! Concordei. Os pastores, na caminhada ministerial, colecionam, não como mérito ou honra pessoal, inúmeras vitórias quando envolvidos com pessoas que conseguem vencer suas dificuldades. Não obstante a isso, ele também coleciona desafetos. Esses desafetos são originados, geralmente, por situações em que os envolvidos não gostaram ou não concordaram com certos posicionamentos do pastor. Há pessoas que nutrem desafetos com o pastor por conta do sermão de domingo à noite; outros ainda porque o pastor não valorizou, devidamente, o filho que é um “prodígio” na música; desafeto declarado porque a visão ministerial do pastor não encontrou ressonância em um membro mais antigo da comunidade. Enfim, esses são os possíveis desafetos que o pastor, ao longo da sua trajetória, pode(rá) colecionar. Alguns desses desafetos causam danos, outros são irrisórios, mas todos deixam, de alguma maneira, marcas.

Um amigo pastor no Nordeste, quando conversou comigo sobre a sua saída da igreja da qual estava já algum tempo no pastoreio, disse-me que deixou a igreja com algumas mágoas. O trato não foi cordial para com ele e sua família. Mesmo assim, ele alertou: “deixei bons amigos lá e isso que conta no final”. Por onde o pastor passa, deixa desafetos, mas amigos também. 

7.10.17

REFORMA 500 ANOS: SOLA GRATIA

Antes de ser também uma questão teológica, a Sola Gratia está, intrinsecamente, ligada a um contexto conturbado na Europa nos anos que antecederam a Reforma. Para Jean Delumeau, havia uma angústia coletiva para uma gente que enfrentara numerosas crises, dentre elas A Guerra dos Cem Anos e a Peste Negra. Delumeau indica que a opção pela Reforma foi, também, uma maneira de encontrar resposta para a insegurança que assolava o velho continente.[1]

A Igreja de então, por sua vez, fornecia essa segurança por meio dos sacramentos. Assim, uma vez administrada pela Igreja, a graça se dava pela mediação da hierarquia e dos sacramentos. O sistema funcionava tendo a Igreja como indicadora de um caminho seguro, oferecendo um status confiante quando na administração dos sacramentos constituídos como meios da graça. De certa forma, a Igreja detinha o controle, principalmente quando um sacerdote administrava os sacramentos.[2]

É nesse contexto que Lutero surge com a Sola Gratia. Lutero percebeu que o sistema não cumpria o que prometia, a segurança da salvação. É aqui que ele descobre um outro caminho quando ler as Escrituras (Romanos). Não entraremos em detalhes quanto a essa descoberta, uma vez que a vida do monge agostiniano está muito bem documentada, onde é possível perceber o quanto a culpa o consumia diante da grandeza de Deus em contraste com a sua vida, entregue a miserabilidade da existência. Daí também a sua antropologia pessimista.

Quando Lutero se deparou com a graça, percebeu de que Deus nos oferece gratuitamente tudo de que não somos capazes: não somos apenas perdoados, mas estamos justificados diante dele. Estava aí o início de uma extraordinária experiência com Deus, qual seja, a de que Deus, em amor e graça, liberta dos jugos que promovem a culpa e a insegurança. Agora, para Lutero e outros reformadores, Deus está presente por toda parte e, por graça, sustenta, promove, liberta, conduz. Esse é um canto de liberdade diante de um sistema que aprisionava por meio da consecução dos sacramentos.

A questão central na Sola Gratia, se dá na percepção de que Deus está no centro da existência humana, ativo em toda a história, sempre tomando a iniciativa para se aproximar dos seres humanos. A descoberta de Lutero abriu uma nova janela por onde um ar fresco e aconchegante entrou: a graça de Deus sustenta a vida, portanto, vivamos, porque ele, Deus, já cuidou de tudo, principalmente da eternidade!

A Sola Gratia está para além da letra; ela é integradora do ser. Não está atrelada a qualquer meio de aprisionamento, porque esse Deus de graça é livre e nos chama à liberdade! Por isso podemos cantar: Graça! Que maravilhosa graça! / É imensurável e sem fim / É maravilhosa, é tão grandiosa / é suficiente para mim.

Quando comemoramos 500 anos da Reforma Protestante, temos a oportunidade de iluminar, mais uma vez e quantas vezes for preciso, os pilares pelos quais podemos nos sustentar. A Sola Gratia é, indiscutivelmente, um desses pilares.

É inconcebível posturas demarcatórias, tanto de igrejas como de pessoas (líderes), da graça de Deus, ou seja, não é possível uma igreja que caminha a partir da tradição da Reforma determinar a ação de Deus, cerceando o seu agir; dizer quem Deus aceita e quem ele rejeita como se assim fosse possível dimensionar o pecado melhor do que o próprio Deus!

A graça está dada como uma marca indelével para a Igreja. Ela é celebrada na Reforma porque foi possível entender que, pela graça, Deus é Deus.


[1] DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 60.
[2] SHAULL, Richard. A Reforma protestante e a teologia da libertação. São Paulo: Pendão Real, 1993, p. 39-41.

1.9.17

SE FOR PARA O BEM DO MERCADO, EU FICO!

No dia 7 de Setembro, o Brasil completa 195 anos da sua independência. O ano de 1822 foi muito importante para o país. Marcou a independência de Portugal, que gostaria de recolonizar o Brasil e, para isso, exigia que D. Pedro voltasse para Portugal para que terminasse seus estudos na Europa. Ele, muito preocupado com o Brasil para os brasileiros de um lado e, por outro lado, pressionado por Portugal, recebe uma petição com 8 mil assinaturas (do povo?), solicitando sua permanência. Imbuído de heroísmo, prontamente responde: “Como é para o bem geral da nação, estou pronto, diga ao povo que fico”. E assim ficou conhecido como o “Dia do Fico”.[1]

Aqui há um lado da “história”. O outro lado é mais interessante e tem tudo a ver com o atual momento do país.

A Independência não nasceu porque os brasileiros nutriam um ideal de nação e queriam construir um país livre da tirania econômica, política e social de Portugal. A Independência foi um jogo de cartas marcadas. Estava-se mudando o cenário econômico. Portugal, como se esperava, estava atrasado em termos de tecnologia. A poderosa Inglaterra aparecia no cenário e, como se sabe, dominaria o comércio “mundial”. A Independência, como jogo de cena, teve forte influência dos ingleses. Em linhas gerais, o Brasil deixa um chefe (Portugal) e serve um patrão (Inglaterra). E mais uma vez quem ganha? O povo brasileiro? Claro que não! São os mais de 8 mil que assinaram a petição para o digníssimo D. Pedro. Produtores rurais que detinham escravos em suas fazendas. O modelo econômico, desde a colônia, sempre favoreceu essa classe – uma elite dominante que estabeleceu os limites do liberalismo brasileiro. Com a mudança de Portugal para a Inglaterra, essa elite continuaria lucrando e fazendo o mesmo de sempre, só que agora com alcance maior, uma vez que os ingleses estavam dominando mares e oceanos.

E o D. Pedro?

A preocupação com a população nunca esteve na sua agenda. Um déspota mulherengo que, uma vez livre de Portugal, achou que poderia fazer o que bem entendesse, como, por exemplo, mandar fechar a Assembleia Constituinte (1823) porque se irritou com os deputados.[2]

A Independência tem as suas facetas na história e a econômica não é a única, obviamente. Diria que é a mais importante. Além das disputas políticas no primeiro plano, a Independência estava configurando uma nova fase econômica. A elite intelectualizada do Brasil estava percebendo que o comércio mundial estava sendo dominado, hegemonicamente, pelos ingleses e a industrialização estava batendo à porta, logo uma nação deixar de ser colônia, estava dando sinais claros de que participaria do sistema econômico que emergia. 

O D. Pedro deveria dizer outra coisa (“como é para o bem geral da nação, estou pronto, diga ao povo que fico”). O melhor seria: “Se é para o bem geral dos grandes proprietários de terras, dos donos de escravos, do futuro da economia com os ingleses, eu fico”.

Dizem que a história se repete. No caso do Brasil é um replay.

O que se viu no país desde 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, foi um jogo de cartas marcadas. A oligarquia branca e elitizada do país, julgou que as coisas precisavam melhorar, não para o povo, para os grandes empresários. É aqui que surge o programa do PMDB denominado “Uma Ponte para o Futuro”. Nesse programa, as principais propostas são de reformas duras com caráter imediato que atende, principalmente, a classe empresarial. O Temer, chega à Presidência da República por meio de um golpe parlamentar que tem nas ruas uma cortina de fumaça que levanta a bandeira do “abaixo à corrupção”. Ainda que “legal”, mas não legítimo, ele tem como propósito implantar as medidas apresentadas no programa “Uma Ponte para o Futuro” (futuro de quem?). Uma vez lá, ele já colocou a Reforma Trabalhista – que prejudicou ainda mais a classe de trabalhadores, deixando-os reféns dos patrões quando um acerto entre empregador-empregado está acima da Lei. Agora, a pauta é a Reforma da Previdência, mexendo, mais uma vez, com os menos favorecidos, exigindo um tempo de serviço exorbitante, enquanto as grandes corporações não se toca.

Mesmo com fortes indícios de corrupção, o Temer segue seu curso, porque o seu maquiavélico plano ainda está de pé, qual seja? Tornar a economia favorável para os herdeiros da velha colônia. Com graves acusações de corrupção (daí a prova de que a narrativa do “abaixo à corrupção” nunca foi a preocupação), o Temer continua, postiçamente, seguindo como Presidente. Quando acusado pelo Procurador-geral da República por ocasião do seu encontro com Joesley, ele faz diferente do D. Pedro, não manda fechar a Câmara dos Deputados, compra-os para que votem contra a denúncia do Procurador.

Qual o jogo? Mercado. Se não fosse ele (o senhor Mercado), o Temer já teria sido expulso de Brasília, com ou sem “pedalada fiscal”. Como é para o bem dos empresários, ele segue dizendo: “eu fico”.


[1] COSTA, Luís César Amad & MELLO, Leonel Itaussu A. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1999, p. 147-151.
[2] NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. 2. ed. São Paulo: Leya, 2011, p. 279. 

22.7.17

VAMOS BEBER!

Estavam atentos ao tema abordado. O assunto? Bem, falávamos de como os evangelhos apresentam um Jesus que tem a missão de subverter, de desdizer o que era dito, de suplantar a prédica estabelecida e inverter lógicas de poder e subalternidade.

Por ser um grupo que se prepara para o símbolo do batismo, a abordagem dos textos não são exegeticamente precisas, até porquê esse não é o objetivo. O viés político e ideológico do texto, bem, esse não tem como ignorar.

Bom, na conversa chegamos ao texto de João 2,1-11. Jesus no casamento de Caná.

Chega uma hora que a palavra “metáfora” surge para falar dos temas que o texto aborda.

Na conversa sobre o texto, a pergunta aparece:

- Quando usamos a palavra “metáfora” quer dizer que o texto tem mais do que está aí? É isso?

Com certeza! (Imagine a minha alegria quando alguém consegue enxergar no texto o que não está patente, mas nas entrelinhas, como um tear que entrelaça as linhas e os fios, mas no fim o tecido está ali).

“Na linguagem usamos metáforas para uma relação de semelhança entre dois termos. Quando fazemos um caminho de transposição de sentidos”. (Lembrei-me de Ricoeur e o seu texto Metáfora viva).

Assim, o evangelho de João é uma construção textual em que os “milagres” são sinais e esses sinais (metáforas) querem dizer algo mais do que está sendo dito (texto) ali. O sinal indica o ponto de vista humano no qual a atenção está voltada não tanto para o milagre em si, mas para aquilo que é revelado para quem consegue enxergar mais longe.

O evangelho de João surge em meio às dificuldades de uma gente que quer vivenciar o amor; que tem uma liderança que prioriza a fraternidade; as relações de poder são diminuídas, surgindo o serviço ao outro como demonstração de cuidado.

A narrativa do casamento é o primeiro sinal. É uma narrativa que procura construir uma comunidade solidária e sensível às pessoas.

O casamento era representativo para o povo de Deus (Israel). Era um sinal entre o povo e Deus.

Quando em um casamento falta o vinho, era como um aniversário faltar o bolo.

A falta do vinho (ter acabado), pode ser uma referência à falta de amor; a incapacidade de realizar a partilha e a solidariedade.

Faltar o vinho é dizer que o sistema, baseado na Lei, deixou de ter a sua alegria; não cumpre mais aquilo que Deus deseja.

O amor (vinho) foi substituído pela Lei. “Eles” tornaram a relação com Deus em outra coisa que não combina com a alegria e a celebração. Algo que dizia apenas às regras e o velho e rotineiro jeito de fazer as coisas.

Vamos beber!

As talhas, coloquem água.

- Jesus, as talhas servem para a purificação!

Coloquem água nelas...

No lugar da purificação vem o vinho (amor). E do melhor ainda!

Se mais alguém chegar na festa, antes de procurar se purificar – por estar na rua e ser um lugar impuro – irá beber o melhor vinho da festa.

O nosso texto ganhou sentido naquela noite. A poesia superou a prosa. Não é o literalismo do texto, é para além dele...

Uma noite boa, em volta do evangelho e um sentido de comunidade surgindo e sendo maturado.

A vida em comunidade deveria ser assim. Quando se chega não há talhas para a purificação, há vinho para a celebração.

Não são as regras e a Lei que garantem o relacionamento amoroso com Deus, é o amor e a alegria.

11.7.17

O "CRISTÃO FAKE"

Ah sim. Agora é “moda”.

Já ouvi, inclusive, em discursos acadêmicos. Mas ela é bem usada nas Redes Sociais.

A palavra fake (inglês) significa falso ou falsificação. E pode ser colocada para uma pessoa, um objeto ou qualquer ato que não seja autêntico.

Nas Redes Sociais, a palavra é muito utilizada para dizer que alguém (supostamente), está usando um perfil fake, ou seja, algo “falso” ou, prefiro essa definição, “inautêntico”. Em outras palavras, o fake se dá quando alguém quer ocultar sua “verdadeira” identidade – não sei se isso é possível na Internet, a identidade, principalmente quando se leva em consideração que o ambiente virtual é híbrido. De qualquer forma, há diversos perfis fakes espalhados pela Rede, principalmente em fóruns de debate e Redes Sociais.

A palavra, sendo polissêmica, saiu das Redes Sociais e ganhou o “universo gospel”, para usar outra palavra fake. Assim, se fala agora em “púlpito fake”, ou seja, quando o pregador faz um Ctrl+C mais um Ctrl+V e coloca diante da comunidade um “sermão fake”.

A questão é que não há apenas o “púlpito fake” ou o “sermão fake”, há também o “irmão fake”. Quando na sua comunidade ele é fake. Não no sentido falso quando se contrapõe ao verdadeiro (também), mas no sentido de autenticidade e inautenticidade. Não é autêntico enquanto cristão e as consequências desse compromisso de fé.

No Novo Testamento o Evangelho de Mateus (capítulo 7), irá dizer que pelos frutos se conhece a árvore, sendo improvável que árvore má dê fruto bom. Em Tito (1,16), há um texto mais claro sobre os fakes na caminhada cristã – “professam conhecer a Deus, mas negam-no pelas suas obras”. É gente que diz uma coisa, mas faz outra, ou melhor, não faz.

O tal do “cristão fake” é engraçado até...

Ele geralmente vê defeitos naquilo que os outros fazem e quando tem oportunidade não deixa de dizer o que é preciso fazer. É incrível, mas os “cristãos fakes” não costumam atender aos desafios colocados pela comunidade. É gente de corpo presente, quando está presente, mas não são autênticos enquanto seguidores do Nazareno. É como o texto de Tito 1,16 diz, é gente que sabe falar de Deus, da Bíblia, citar versículo bíblico, canta bonito, mas negam o que Deus deseja com suas vidas e obras.

Não quero generalizar, mas é bem provável que toda a comunidade de fé tenha mais de uma dúzia de “cristãos fakes”.

A possibilidade de identificar suas “identidades” não é muito difícil...

Eles estão por aí, se vestem como os outros, sem nenhuma dificuldade. Falam a mesma linguagem e professam os mesmos nomes. Mas suas ações dizem bem quem são. Não são, geralmente, pessoas ruins, claro que não. São gente boa (alguns deles). Mas não espere contar com um “cristão fake”, ele, provavelmente, o deixará na mão.

Já ia esquecendo de dizer...

Se o leitor/a entender que esse texto foi direcionado propositalmente, é porque, provavelmente, o leitor/a possa ser um “cristão fake”. Mas se for e achar que não tem nada a ver o que leu, desconsidere, principalmente se não houver mais alguém com você lendo esse texto. No mais, continue assim, sendo fake, está na moda...

15.5.17

O MODELO MISSIONÁRIO DA CBESP

Os batistas se notabilizaram no país, dentre outras características, pelas suas campanhas missionárias. Quer em nível mundial (JMM), nacional (JMN) ou estadual, os batistas asseguram que a necessidade de evangelização é uma prioridade da igreja, logo, das organizações denominacionais.

Ocorre que há modelos que são colocados para as igrejas e aos agentes missionários das organizações. No caso da JMM, por exemplo, de maneira bem sintética, o principal modelo se dá em projetos que a JMM desenvolve em alguns países, procurando alinhar as necessidades prementes de um lugar ou região com o trabalho da equipe missionária. Nesse sentido, o modelo foca o aspecto social e religioso. A mensagem não é, primeiramente, falada, mas demonstrada e praticada com ações que promovem o testemunho do Evangelho. Por aqui, a JMN tem demonstrado que as Cristolândias é uma prioridade de recursos e equipes. A notoriedade midiática da Cristolândia, favoreceu o mote da JMN, que é servir de instrumento de reabilitação e integração social de adictos, tendo o Evangelho como primeira ferramenta para isso.
 
A Convenção Batista do Estado de São Paulo (CBESP), vem demonstrando a sua estratégia missionária depois de alguns problemas de ordem financeira, como também de logística. Ocorre que o modelo que a CBESP vem construindo difere das organizações missionárias mencionadas acima, ou seja, o foco principal tem sido disputar espaço no campo religioso estadual com outros segmentos, principalmente com o setor católico. Algo que não víamos já algum tempo.

Antes, é preciso recordar que, a grosso modo, o protestantismo de missão chegou no país com a missão de converter católicos. Reconheciam no catolicismo, dentre outras razões, o atraso do país. É sabido que esse encontro gerou conflitos para ambos os lados, sendo o protestantismo, por ser minoritário, o mais penalizado. Por outro lado, o discurso exclusivista do protestantismo e a postura apologética causou inúmeros problemas, inclusive entre os próprios protestantes. É dessa conjuntura, que emerge a identidade protestante e sua base missiológica, tendo, principalmente, os católicos como principal alvo concorrente.

Agora, temos a impressão de que estamos presenciando o mesmo modelo missionário do século XIX entre os batistas do Estado de São Paulo. A proposta da CBESP, parece evocar um modelo missionário de caráter bélico, onde luz e trevas estão em conflito, sendo que as “trevas” são locais que ainda não há um templo (presença) batista. Ao que parece, estamos diante de uma conhecida ideia medieval, a de que identificava a presença física da igreja (templo) com o reino de Deus.

Postura como essa, reforçam uma visão de mundo que esteve atrelada ao maniqueísmo, quando se colocava em constante dicotomia o mundo e o reino de Deus, ou seja, a igreja. Uma vez associando “trevas” ao um segmento do cristianismo, mesmo que não concordando com suas doutrinas e ritos, não está se priorizando um modelo missionário pautado na caminhada do Nazareno que procurou mediar as diferenças por meio de gestos e ações que privilegiava o humano, antes de qualquer sistema religioso. Não por acaso, os empates com os fariseus e saduceus nos evangelhos se deram a partir disso. Não é o sábado que vem primeiro, mas sim gente.

Quando comemoramos 500 anos da Reforma Protestante, parece que os principais elementos da Reforma são obnubilados por outras motivações. A Reforma, se constituiu em momento ímpar para o mundo ocidental por demarcar um tempo de liberdade, sendo os batistas, depois, dentre outros, a lutar para que ela, a liberdade, não fosse apenas um discurso, mas também uma ação. O modelo missionário da Reforma se mostrou viável e desafiador, porque colocou na liberdade o seu início; na graça de Deus a salvação; a fé como condição salvífica; na teimosia profética a denúncia como elemento imprescindível do ser protestante. Esses elementos formaram o ser protestante e desses elementos somos, queira ou não, herdeiros.

Entendemos que um modelo missionário que tem como primeira marca o embate a partir do campo religioso brasileiro, sendo esse embate promovido pela logística denominacional com publicações e promoção de personagens que transitaram entre segmentos da religiosidade brasileira, não atende as reais necessidades prementes que temos no momento. Pensar que o principal problema de evangelização no Estado de São Paulo se dá, apenas ou principalmente, a partir da religiosidade, é suprimir um gigantesco universo de problemas de ordem espiritual, social, política e moral. Na leitura do mundo, não é mais possível reducionismos que privilegiam uma relação dicotômica ou dualista.

O primeiro e principal modelo missionário continua sendo o de Jesus. Em Mateus 11,28-30, Jesus coloca, em oração, o seu modelo missionário e este modelo se constitui em mansidão, leveza, descanso e alívio. Fica claro que o que dá consistência ao modelo missionário de Jesus é a sua pessoalidade. O modelo de Jesus encontra resistência com as estruturas denominacionais, porque não foca no sistema, mas sim nas pessoas.

É a partir do modelo missionário de Jesus que somos chamados a testemunhar o que seja o Evangelho. Não por acaso que em Atos 1,8 a primeira incumbência dos discípulos é: “E sereis minhas testemunhas”. 

22.4.17

QUANDO HOLLYWOOD FAZ TEOLOGIA...

A cada filme hollywoodiano que tenha como enredo um tema bíblico-teológico aparece, os comentários nas redes sociais, blogs e vídeos se multiplicam. Bastou surgir nos cinemas filmes em que o roteiro tem conexões com a Bíblia, para que pessoas ligadas às comunidades de fé e teólogos da web, principalmente conservadores, tecerem suas impressões sobre os filmes.

Em 2014 Hollywood lançou dois filmes épicos tendo a Bíblia como roteiro. Um filme do diretor e roteirista Darren Aronofsky, “Noé” causou estranheza porque o público “evangélico” julgou tratar de um filme “bíblico”, ou seja, um filme que “retrataria o que está escrito na Bíblia” (ouvi isso de um colega). Quem viu, logo percebeu que não se tratava disso, e o diretor procurou marcar a trama de uma outra forma, apenas usando a narrativa bíblica como ponto de partida. No mesmo ano, conhecemos “Êxodo: deuses e reis”, de Ridley Scott. No longa, “Moisés” não é visto romanticamente como um pastor, mas como um general que defende, num primeiro momento, os interesses do Egito. É alguém preparado para batalhas. O que chamou mais atenção nem mesmo foi essa imagem que o filme rompe (Moisés, como um pastor), mas sim a representação de “Deus” como um menino, uma criança até que invocada e que apenas Môche via. Saindo do cinema, ouvimos algumas pessoas (presumivelmente de igreja), o comentário: “como pode, colocar ‘Deus’ como uma criança”. O espanto foi duplo. No mesmo filme Moisés deixa de ser o “bonzinho” de Deus e Javé é feito menino. Um Deus-menino no filme de Scott, não foi muito legal, mas no Natal... Bem, aí já é outra coisa. 

É recente o filme (2017) “A cabana” do diretor Stuart Hazeldine. Como nos filmes anteriores, os comentários nas redes sociais e textos em blogs procuraram dar uma opinião favorável ou contrária ao enredo do filme. Os comentários, vindo principalmente de pessoas com pertença religiosa de segmento “evangélico”, mesclaram entre elogio e depreciação.

É possível ver comentários nas redes sociais e vídeos no YouTube de pessoas com alguma relação com igreja, quer sejam frequentadores ou membros de comunidades, ou sem nenhuma filiação institucional, colocando suas impressões sobre o filme. Algumas dessas pessoas, em seus depoimentos, revelaram ter “descoberto” Deus no filme, ou seja, o filme funcionou como um gatilho para impulsionar a fé delas e abrir suas percepções teológicas sobre Deus, o que demonstra que a igreja, per si, não tem mais o controle sobre isso para algumas pessoas. Para esses, o filme é “maravilhoso”, porque retrata Deus de uma “maneira diferente”. Outros ainda, viram no filme o combustível para “heresias”, porque coloca Deus (e a trindade) de maneira inadequada e isso fere o que a igreja entende sobre “Deus” e sobre a “trindade”.

Os diversos comentários em redes sociais, blogs e vídeos sobre o filme girou em torno da representação de Deus feita pela atriz conceituada Octavia Spencer, ou seja, por ser mulher e afro-americana. Isso bastou para que reações surgissem vindas do universo eclesiástico conservador. O filme foi associado à propagada feminista, por colocar “Deus” como uma mulher, recusando assim a figura paterna de Deus-Pai. As feministas querem livrar a sociedade de uma imagem masculina de Deus e, filmes como “A cabana”, favorece o discurso das teólogas feministas. Não gostaríamos de discutir esse tema aqui, até porque o objetivo do texto é outro, mas negar que a imagem de um Deus masculinizado e ocidental tenha contribuído para uma concepção distorcida de Deus na história, causando inúmeros equívocos nas interpretações bíblicas e alimentado posturas sexistas e misóginas, não é mais possível ignorar.

Quando há um entendimento de que Hollywood comete erros ao retratar temas bíblicos em suas superproduções, reivindicando, assim, ter a primazia de uma interpretação “correta” sobre os mesmos temas apenas nos bancos das igrejas, esse entendimento não atentou para as principais mudanças que o mundo passa/ou e que envolve, dentre outros meios de disseminação cultural, o cinema.

A luta de setores conservadores das igrejas é legítima, porque a contemporaneidade e suas transformações favorece isso. Os conservadores procuram lutar contra um pluralismo de princípio. A ideia de que o monopólio da religião não está mais dado às igrejas e suas instituições de controle do sagrado, assusta... A assim denominada globalização, favoreceu o rompimento de fronteiras antes mais definidas, tornando o mundo uma aldeia global. O contemporâneo é marcado por entre-lugares, ou seja, não há mais fronteiras fixas e tudo e todos estão lançados ao que vem, ao que está-aí e, concomitantemente, ao que não-está, caracterizando um tempo em que a busca por sentido se encontra em um templo como também em um shopping-center. Assim, as reações de conservadores são legítimas nesse contexto, porque há uma constatação “de que existem maneiras de viver e crer diferentes daquelas que são correntes [até então] e comuns a determinados grupos que partilham o mesmo conjunto de crenças” (Eliane Moura da Silva). Essa constatação paradoxal é perceptível inclusive em Hollywood, que vem fazendo teologia com seus longas. Essa tensão entre diversidade (pluralismo) e conservadorismo (exclusivismo), está presente nas telas de maneira secularizada. Nesse sentido, houve quem vibrasse com os filmes “Deus não está morto” e “Você acredita?”, do mesmo modo houve quem demonizasse “O código Da Vinci” e, agora, “A cabana”.

Acontece que Hollywood está fazendo o papel das igrejas na sua função de doutrinar. O problema é que as salas de cinema ficam mais cheias que as salas da EBD e isso, querendo ou não, incomoda bastante setores conservadores. A quantidade de pessoas que vão aos cinemas ver filmes como “A cabana”, não é a mesma que comparece aos cultos e encontros doutrinários. Isso ocorre por que o cinema é mais atrativo? Não necessariamente. Ocorre porque não é de hoje que há um crescente deslocamento do religioso, onde as igrejas, como instituições do depósito simbólico de bens religiosos, não tem mais a prioridade. Com isso, como bem esclarece Clifford Geertz, “a religião se tornou cada vez mais um objeto flutuante, desprovido de toda ancoragem social [...] em instituições estabelecidas. Em lugar e em vez da comunidade solidária agregada por representações coletivas (o sonho de Durkheim), surgiu uma rede à maneira de Georg Simmel, difusa e desprovida de centro, conectada por afiliações genéricas, multidirecional e abstrata. A religião não se enfraqueceu como força social. Pelo contrário: parece se ter reforçado no período recente. Mas mudou – e muda cada vez mais – de forma”. Com esse esclarecimento pontual de Geertz, esperamos outros filmes hollywoodianos em que o elemento religioso esteja presente. Mas isso não significa concorrência com segmentos religiosos (igreja, por exemplo), antes se dá porque as ofertas de bens religiosos está cada vez mais plural, o que significa que as instituições religiosas são uma, dentre outras, opções. Dentre essas opções, “A cabana” é uma delas...

25.2.17

EVANGELHO E ÉTICA SOCIAL: UMA CONTA QUE NÃO FECHA COM OS EVANGÉLICOS NO BRASIL

Quando tomamos conhecimento da morte de inúmeros presos no sistema penitenciário de cidades do Norte do país, presenciamos falas, não somente nas redes sociais, mas também de integrantes desse governo postiço, de que a tragédia estava anunciada e o seu desfecho era algo esperado, portanto, algo que apenas entrava para as estatísticas como números com o fim de gerenciar valores para um sistema que, há muito tempo, vem se mostrando ineficiente. Os “evangélicos”, principalmente esses que escutam e se identificam com os pastores televisivos que, ora estão em Brasília defendendo uma agenda intolerante, ora estão visitando a sede da PF, também foram às redes sociais para expressar suas opiniões. Com isso, demonstraram o que, de fato, vai na “alma” dos evangélicos, ou, pelo menos, em uma parcela deles. 

Não apenas o fatídico episódio envolvendo presos no Norte do país deixou a sociedade brasileira atônita, mas também no Sudeste (Vitória/ES), vimos o caos nas ruas de uma bela cidade por conta da greve de policiais militares. Com a ausência de policiamento, pessoas saquearam o comércio varejista, além dos inúmeros delitos cometidos. Nesse ato, dos saques, há relatos, inclusive com fotos nas redes sociais, de pessoas consideradas de “bem”, carregando eletrodomésticos pelas ruas. Dentre essas pessoas, se comprovou que “evangélicos” estavam envolvidos e, depois de apuradas as imagens dos estabelecimentos comerciais, muitos começaram a devolver o que tinham levado.

Com esses dois incidentes, foi possível perceber, não que isso seja recente, que há um antagonismo entre o discurso e a prática dos “evangélicos”. O discurso, a priori, toma (ou deveria tomar) como ponto de partida a mensagem do evangelho. Nessa mensagem, pelos menos nos Evangelhos que narram a caminhada de Jesus de Nazaré, há elementos de compaixão, de amor, de perdão, de alteridade. A mensagem central de Jesus, o reino de Deus, acolhe o que mais precisa, levanta o desvalido, socorre o doente, visita o preso e alimenta o que tem fome. Em Mateus 25,31-46, por exemplo, os presos são visitados e isso caracteriza o fazer aos pequeninos de Jesus.

Que a relação entre discurso e prática envolvendo a ética do “evangélico” é dicotômica, não é novidade. Há estudos disponíveis que demonstram isso em escala histórica. A ética no “universo evangélico” se concentra em aspectos individuais, dependendo de qual grupo está se referindo. Nesse sentido, há diferentes perspectivas de moralidade em alguns setores do “universo evangélico” que pode ser a negação de certas roupas o ponto central, como também a abstinência de bebida alcoólica, o tabagismo e o sexo antes do matrimônio e a homossexualidade. Essas são as principais bandeiras morais que caracterizam o comprometimento com um certo cristo. Com isso, o discurso ético se dá em perspectiva individual, e o nome disso é ética cristã. A relação com o contexto social é desprovida de uma ética solidária e comprometida. Nesse contexto, é possível uma manifestação de que a justiça divina foi feita em relação aos presos assassinados no Norte do país, demonstrando completa insensibilidade, fruto de uma leitura superficial da realidade social e sua complexidade. Assim, houve “crentes” que entenderam como julgamento escatológico a morte dos presos. Isso demonstra, com tristeza, que o evangelho de Jesus está equidistante de uma leitura de compaixão e justiça, pois muitos entendem que o chavão “bandido bom, é bandido morto” está correto. É claro que os problemas sociais do país são enormes, mas aqui estamos focando em atitudes, principalmente aquelas que foram veiculadas nas redes sociais, de pessoas que se identificam como “evangélicas”. Essas pessoas que assim se expressam, também são as mesmas que entram em lojas para pegar o que não lhe pertence porque, naquele momento, não há “lei”.

Há uma diferença qualitativa entre presença e visibilidade dos “evangélicos” no Brasil. A visibilidade dos “evangélicos” é um fato há algum tempo na sociedade brasileira. A mídia favoreceu o estar visível e as grandes concentrações em estádios e avenidas, fortaleceu a ideia de que os “evangélicos” estão conquistando espaço. Assim, o domínio de alguns setores da economia e da política, são dedicados aos “evangélicos”. 

Quanto à presença dos “evangélicos” no país, no sentido de tornar tangível posturas tolerantes carregadas de misericórdia e justiça, que tenha na alteridade o principal elemento de ação e leitura social, ainda se constitui em processo.