6.12.17

(IN)GOVERNABILIDADE DE DEUS

Imaginemos a crença em um deus que conduz bem a trajetória das pessoas.

Ele é, pois, o grande responsável por cuidar de todas as pessoas porque as amam. Depreende-se desse raciocínio que o cuidado decorre do amor desse deus que, não obstante ter criado tudo e todos, cuida, vigia e conduz a tudo e a todos. Para tanto, é dotado de onisciência (sabe tudo), de onipresença (está em todos os lugares), de onipotência (pode todas as coisas); agora, imaginemos, ainda, que na ordem do curso da vida existam catástrofes de grande impacto ou episódios nefastos e que as pessoas comumente atribuam à harmatiologia (ao pecado e à pecaminosidade tais situações), as consequências deletérias do problema do mal. Ora, nesse caso ou deus não resolveu o problema do pecado porque não pôde (então, sua onipotência é colocada em questão) ou não o resolveu porque não quis (e a sua amorosidade estaria em questão).

Por outro ângulo, decorrente dessa catástrofe hipotética, alguns crédulos oram assim: "deus, obrigado porque tu me livraste [...]" e outros lamentam: "ah, deus... por que tu não me livraste?". Tem-se, então, uma aporia (uma questão de difícil resolução na ordem e no estado de coisas de uma teologia incômoda), posto que se deus interfere na história (teoria da providência anterior ao século XVIII), se deus é bom e amoroso (representações do deus monoteísta ou não), e, ao mesmo tempo, não interferiu nas minhas questões vitais sabendo de todas elas - que mexem com destino de crianças, idosos, dependentes, entre outros, coloca-se em xeque ou é colocado em xeque por seus seguidores. Eis o grande dano da doutrina da "soberania de deus".

Do ponto de vista da teologia de Calvino, engendra-se um problema moral para deus (que deus não se atribui a si próprio): ele é soberano e governa a história - além de ser "predestinista" e escolhe pessoas para morar no que idealmente chama-se céu. Portanto está comprometido com os destinos e os cursos dos acontecimentos e, ao invés de julgar, é julgado por aqueles que sofrem o tempo: que emitem ações sobre suas ações ou omissões.


Não é possível, porém, acreditar em um deus assim - sensível na governabilidade e entronizado para desentronizar pessoas. Porque existe uma outra estética e certa autonomia de vida, o centro da história é o ser humano e é ele quem toma decisões segundo a imprevisibilidade de suas ações: se entra em um avião com problemas nas turbinas, as suas limitações e os seus desconhecimentos poderão matá-lo sem que se envolva um deus soberano sentado no trono que a tudo sabe. Deus não se interessaria por turbinas de aviões. 

Se deus é a "projeção das angústias humanas", ele não existe de outra forma: está existencialmente relacionado ao sistema de angústias de seres humanos indecisos, inquietos, mortais, finitos. Quem faz a história, conduz a história e comanda a história são os seres humanos tais que - regidos por relações de poder - se apresentam a ela segundo o curso da ordem, dos acontecimentos, das ocorrências. 

Nesse sentido, orar, rezar e espiritualizar são artefatos ou urdiduras oralizadas ou não que mexem, que abalam, que moldam, que perfazem os caminhos da subjetividade do próprio crédulo. Só.

Mas, isso resulta em uma dimensão ético-afetiva dos caminhos de deus e do comportamento do ser humano diante da Estética que ilumina a vida. Eis o porquê do sentimento religioso e de sua historicidade.

- Leandro Seawright (Doutor em História Social pela USP)

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