22.9.20

FUNDAMENTALISTAS E CONSERVADORES: HÁ DISTINÇÃO?

Pode até parecer redundância, mas não é. Embora fundamentalistas e conservadores tenham a mesma percepção quanto à “defesa” da doutrina, há modos diferentes de entender como essa postura apologética é conduzida. Com os primeiros (fundamentalistas), o diálogo é quase nulo; com os segundos (conservadores), é possível dialogar porque estes já se deram conta há algum tempo que as coisas mudaram e o mundo não é mais como antigamente.

O caro leitor/a deve saber que o conceito “fundamentalismo” é um termo que surgiu no contexto religioso protestante nos EUA, mas que já ultrapassou o âmbito protestante estadunidense há muito tempo, principalmente depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. O termo ficou popularizado e hoje pode ser visto sendo empregado não apenas no contexto religioso.

Regra geral, o movimento fundamentalista funcionou como uma reação, num primeiro momento, à modernidade e as mudanças que esta provocou em diversas áreas do comportamento humano, mas principalmente no campo teológico. No aspecto teológico, o fundamentalismo foi uma reação ao que ficou conhecido como “liberalismo teológico”, causando enormes conflitos em denominações, seminários teológicos e universidades lideradas por respectivas alas, fundamentalista e/ou liberal. Mas o ponto aqui não é essa história, mas sim como os conservadores passaram a se desvincular dos fundamentalistas por entender que a reflexão precisava acontecer e o recrudescimento a partir de posturas ferrenhamente antagônicas não contribuía para o debate com os liberais e, como consequência, com a sociedade. O que demonstra, que os conservadores procuraram o diálogo enquanto os fundamentalistas continuaram a se verem como os “únicos” detentores de uma verdade que não abria para questionamentos.

Os fundamentalistas tem uma característica evidente: “A convicção de que possuem o conhecimento absoluto da verdade, da qual se tornaram guardiões divinamente ordenados” (Lloyd Geering). Por se entenderem como guardiões absolutos da verdade, julgam que essa verdade está na Bíblia – não necessariamente em Deus, uma vez que entendem ser a Bíblia a única forma que Deus falou, daí toda a discussão quanto à inerrância do texto bíblico. Ainda que essa crença no texto bíblico não tenha qualquer dificuldade, o problema reside na interpretação do texto bíblico. O que significa dizer que, “as Escrituras Sagradas são a forma mais tangível da verdade para os fundamentalistas, que não aceitam quaisquer interpretações modernas dos textos sagrados, e nem mesmo que estes sejam, eles mesmos, interpretações” (Sandra Duarte). É por essa razão, que teólogos conservadores como Alister McGrath irá afirmar que o movimento fundamentalista prejudicou a teologia acadêmica e o consequente debate com os liberais. Para ele, “o surgimento do fundamentalismo causou impacto sobre o compromisso evangélico com a erudição em geral”. Dito de outro modo, McGrath está afirmando que os fundamentalistas, no seu afã de se identificarem como detentores da verdade e paladinos da defesa do cristianismo, prejudicaram a integralização entre evangélicos e universidades. Logo, a grosso modo, os fundamentalistas têm dificuldades em lidar com o conhecimento acadêmico e, a partir dele, propor debates coerentes.

Quando os embates entre fundamentalistas e liberais estava no auge nos EUA, houve quem visse nesse termo, fundamentalistas, um adágio e não uma insígnia. Um deles foi John Gresham Machen. Este preferia dizer “cristianismo conservador”, ou, simplesmente, “cristianismo”. Segundo ele, não havia a necessidade de acrescentar mais um “ismo” dentre muitos que já havia. Mas o destacado teólogo Edward John Carnell foi mais além. Ele procurou corrigir os erros dos fundamentalistas e passou a interagir com a teologia ortodoxa de maneira inteligente. Assim, estudou teologia no Seminário de Westminster, reconhecido centro do fundamentalismo, mas fez o seu doutorado em teologia na Universidade de Harvard, estudando a teologia de Reinhold Niebuhr. Este, professor no Union Theological Seminary, um dos mais progressistas nos EUA. Além disso, Niebuhr era abertamente socialista, mas não comunista. Carnell era um teólogo conservador, mas não mais fundamentalista.

Um dos principais pontos que diferem fundamentalistas de conservadores está na interpretação da Bíblia. Os primeiros “identificam ontologicamente a palavra escrita na Bíblia com a Palavra divina, suspendendo, assim, a historicidade do texto e reivindicando para os textos bíblicos, o caráter de autoridade final da Escritura, graças à sua inerrância e expressão da verdade divina absoluta (acima do contexto). O objetivo da hermenêutica bíblica, no fundamentalismo, é a escuta direta da Palavra de Deus que irá confirmar, ao final, as verdades doutrinárias e morais componentes do ideário fundamentalista” (Júlio Zabatiero). Nesse sentido, o texto bíblico é alçado à ídolo. Já para os conservadores, há uma certa distinção na hermenêutica. Não afirma, de maneira peremptória, “a inerrância, mas a infalibilidade das Escrituras em questões de doutrina e fé” (Júlio Zabatiero). Para teólogos conservadores, há uma resistência quanto “à tentação de identificar o próprio texto da Escritura com a revelação” (Alister McGrath). Assim, temos, portanto, pastores e teólogos que são conservadores, mas não são fundamentalistas. Billy Graham, por exemplo, que desbravou o mundo com suas campanhas evangelísticas era conservador, mas não fundamentalista. Ele recebeu apoio financeiro de instituições ecumênicas, transcendendo as fronteiras do conservadorismo. John Stott, era conservador, mas não fundamentalista. Foi respeitado por conservadores e progressistas porque soube dialogar com ambos a partir das suas ideias e convicções.

O cenário Batista está vendo surgir quem se auto intitula de “conservadores”, mas são, de fato, “fundamentalistas”, não aceitando a diversidade do modo de ser Batista. Advogam possuírem o único modo de ser Batista, julgando que os demais precisam se submeter às suas interpretações, do contrário o expurgo é a solução. Parecem desconhecer o éthos dos Batistas e de como a diversidade é inerente ao seu sistema denominacional.

Conservadores sabem o que significa ser Batista; fundamentalistas julgam ter a única interpretação para os Batistas. Na história dos Batistas sempre houve conservadores e progressistas. Ambos, não obstante as tensões e conflitos, se trataram com certo respeito porque sabiam o significa do ser Batista. Assim, Isaltino Gomes Coelho Filho era conservador, mas não fundamentalista; David Malta era progressista para o seu tempo e foi reitor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil por longos anos; Ebenézer Soares Ferreira é conservador, mas não fundamentalista; Irland Pereira de Azevedo é conservador, mas não fundamentalista. A lista poderia continuar.