29.4.19

OS BATISTAS E A “NOVA” PREVIDÊNCIA

Sem dúvida alguma a Previdência Social se constitui um tema sensível e delicado para se discutir. O debate em torno da reforma da Previdência, ou como o governo vem chamando de “Nova Previdência”, é inadiável e imprescindível para o país e seu futuro a médio e longo prazo. Que as regras e a condução orçamentária previdenciária precisam ser reavaliadas, não há dúvida. A PEC 06/2019 enviada ao Congresso Nacional já passou por um das comissões mais importantes da Câmara dos Deputados, a CCJ, e foi considerada “constitucional”. Até o momento não se abriu o sigilo da Previdência, mostrando de fato os números e os recorrentes déficits que a equipe econômica do governo alega. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), cobrou o governo quanto à abertura do sigilo da Previdência, ou seja, abrir os números é condição necessária para tratar o tema da reforma. Em vez de fazer isso, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, decretou o sigilo de pareceres técnicos que embasam o próprio texto de reforma enviada ao Congresso Nacional pelo governo. Esse fato acende o sinal amarelo. Quais as razões para impedir o acesso aos números? A expectativa é que na Comissão Especial da reforma da Previdência esses números, de fato, apareçam para que a discussão tenha condições de acontecer com mais embasamento. A CPI da Previdência no Senado Federal que aconteceu em 2017, demonstrou que não há déficit, mas sim grandes devedores ao sistema, além de ter seus recursos destinado à outros órgãos do governo.  

Ainda que essa discussão sobre a reforma da Previdência seja um tanto técnica, o atual texto enviado pelo governo ao Congresso Nacional tem sérias questões discutíveis. Um deles, que saltam aos olhos do leitor mais atento, se refere ao BPC (Benefício de Prestação Continuada). “Pela proposta, a partir dos 60 anos, os idosos receberão apenas 400,00 reais de BPC. A partir de 70 anos, o valor sobe para um salário mínimo. Atualmente, o BPC é pago para pessoas com deficiência, sem limite de idade, e idosos, a partir de 65 anos, no valor de um salário mínimo. O benefício é concedido a quem é considerado em condição de miserabilidade, com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo”. O governo quer manter o texto a qualquer custo, mesmo admitindo que algo assim sofrerá mudanças na Comissão Especial da reforma da Previdência. Ou seja, o governo até admiti rever o texto no caso do BPC, mas foi o governo que elaborou algo tão maléfico. Quando o governo formula algo assim, diz muito que não está nem um pouco preocupado com os mais pobres. O governo diz que cortará privilégios, mas não diz quais os privilégios e como fará isso. A sua maior preocupação não se dá com o bem estar e a eficiência da seguridade social daqueles que mais precisam dela, os pobres. A sua obsessão é economizar algo em torno de mais de 1 trilhão de reais em 10 anos em cima de pessoas. Para quê economizar essa quantia? Quem seriam os beneficiados, o povo? Há dúvidas quanto à isso.

O fato é que a preocupação do governo até o momento com a “nova Previdência” é economizar dinheiro com gente, e gente pobre. É claro que todos nós gostaríamos de ver o país crescendo economicamente e sendo alvo de investimentos e a reforma da Previdência contribui e muito para que isso aconteça. Mas ao que parece, os menos favorecidos, os desprivilegiados da sociedade brasileira, irá pagar a conta. No Brasil não há estabilidade no trabalho e isso implica em que a maioria dos trabalhadores não terão suas aposentadorias integrais, porque é praticamente impossível contribuir por 45 anos com a Previdência. Além disso, o governo está colocando a contribuição mínima de 20 anos (hoje é de 15 anos), o que torna a possibilidade de se aposentar por tempo de contribuição nula, apenas por idade. A proposta do governo é de 62 anos para mulheres e de 65 anos para homens. No caso das mulheres, que exercem uma vida laboral maior que os homens, essa idade mínima é um acinte, na falta de outra palavra.

Diante desse quadro, o que os Batistas têm a dizer?

Quando na reforma da Previdência do governo Michel Temer (MDB/SP), as Igrejas Históricas emitiram um Pronunciamento se posicionando contra a reforma. A CNBB fez o mesmo à época e acaba de emitir uma Nota Oficial questionando pontos sensíveis da “nova Previdência” em tramitação no Congresso Nacional, mantendo o mesmo posicionamento quando na proposta do governo Michel Temer.

Agora o “jogo” mudou. É outro governo e muitos batistas expressaram apoio irrestrito ao então candidato à Presidência da República, o senhor Jair Bolsonaro (PSL/RJ). Houve pastores que, pela primeira vez em campanhas majoritárias para presidente, colocou um candidato no púlpito e lhe deu a palavra. Os batistas ao longo da sua história, prezou pela isonomia em temas nacionais, mas nos últimos três anos ficou recorrente entre os batistas apoio à candidatos. O presidente da CBB, apareceu em vídeo conclamando os batistas a orarem e fazerem jejum quando o STF estava julgando a possibilidade ou não de prisão em segunda instância, o que favoreceria um candidato à presidente nas eleições de 2018.

Podemos esperar que essas mesmas lideranças denominacionais emitirão suas opiniões quanto à proposta do governo para a Previdência Social?

Os batistas ainda que tenha a separação de Igreja e Estado como um dos Princípios mais caros da sua história, não se omite quanto a ética social. Na Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (CBB), há o item “XVI – ORDEM SOCIAL”. Ali diz claramente que o “cristão tem o dever de participar em todo esforço que tende ao bem comum da sociedade em que vive”. O texto traz a palavra “esforço”, ou seja, é preciso fazer algo quando necessário para que o “bem comum da sociedade” seja levado em consideração. Além disso, o texto reforça algo que está ficando cada vez mais escasso no país, a justiça social. Por isso reitera enfaticamente: “Como cristãos, devemos estender a mão de ajuda aos órfãos, às viúvas, aos anciões, aos enfermos e a outros necessitados, bem como a todos aqueles que forem vítimas de quaisquer injustiça e opressões”. Qualquer desavisado iria considerar essa declaração “esquerdista” porque traz as palavras “injustiça” e “opressão”. Palavras que se tornaram subversivas e indicadoras de “socialismo” no atual contexto polarizado em que vive o país, onde o ódio cegou o entendimento de muitos, principalmente irmãos. Acontece que a Declaração Doutrinária da CBB foi elaborada em 1986, e a nossa Constituição cidadã foi promulgada em 1988. Portanto, a Constituição que vigora no país garante esses direitos aos necessitados e a Declaração Doutrinária da CBB antecipou isso profeticamente. Agora os batistas estão envolvidos na reelaboração de uma “nova” Declaração Doutrinária, o que entendo ser desnecessária. Parece que essa preocupação com o “revisionismo” se dá, infelizmente, com a questão da homoafetividade. Haverá alguma alteração para melhor no item “Ordem Social”? Não sei. Veremos em 2020 quando a CBB se reunirá em Goiânia/GO para tratar do tema.

Os batistas, comprometidos com o reino de Deus, têm a tradição e a oportunidade de dizer profeticamente que o que está proposta aí com a “nova Previdência” fere de morte os menos favorecidos. Além da tradição, os batistas têm texto denominacional (a Declaração) que diz expressamente qual a missão com os mais pobres: estender as mãos para ajudar o órfão, a viúva e vítimas de injustiça e opressão. Nesse sentido, os batistas estão consoante com os profetas do Antigo Testamento, mas, principalmente, estão seguindo as pegadas do Nazareno – “Bem aventurado os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6).

15.4.19

OS 100 DIAS DE UM IDIOTA NO PODER

A eleição de Jair Bolsonaro foi um protesto da população brasileira. Um protesto financiado e produzido pela elite colonizada e sua imprensa venal, mas, ainda assim, um “protesto”. Para a elite o que conta é a captura do orçamento público e do Estado como seu “banco particular” para encher o próprio bolso. A reforma da previdência é apenas a última máscara desta compulsão à repetição.

Mas as outras classes sociais também participaram do esquema. A classe média entrou em peso no jogo, como sempre, contra os pobres para mantê-los servis, humilhados e sem chances de concorrer aos privilégios educacionais da classe média. Os pobres entraram no jogo parcialmente, o que se revelou decisivo eleitoralmente, pela manipulação de sua fragilidade e pela sua divisão proposital entre pobres decentes e pobres “delinquentes”.
Juntos, a guerra social contra os pobres e entre os pobres, elegeu Bolsonaro e sua claque.

Foi um protesto contra o progresso material e moral da sociedade brasileira desde 1988 e que foi aprofundado a partir de 2002. Estava em curso um processo de aprendizado coletivo raro na história da sociedade brasileira. Como ninguém em sã consciência pode ser contra o progresso material e moral de todos, o pretexto construído, para produzir o atraso e mascará-lo como avanço, foi o pretexto, já velho de cem anos, da suposta luta contra a corrupção.

A “corrupção política”, como tenho defendido em todas as oportunidades, é a única legitimação da elite brasileira para manipular a sociedade e tornar o Estado seu banco particular. A captura do Estado pelos proprietários, obviamente, é a verdadeira corrupção que, inclusive, a “esquerda” até hoje, ainda sem contra discurso e sem narrativa própria, parece ainda não ter compreendido.

Agora, eleição ganha e Bolsonaro no poder, começam as brigas intestinais entre interesses muito contraditórios que haviam se unido conjunturalmente na guerra contra os pobres e seus representantes. Bolsonaro é um representante típico da baixa classe média raivosa, cuja face militarizada é a milícia, que teme a proletarização e, portanto, constrói distinções morais contra os pobres tornados “delinquentes” (supostos bandidos, prostitutas, homossexuais, etc.) e seus representantes, os “comunistas”, para legitimar seu ódio e fabricar uma distância segura em relação a eles. Toda a sexualidade reprimida e toda o ressentimento de classe sem expressão racional cabem nesse vaso. O seu anticomunismo radical e seu anti-intelectualismo significam a sua ambivalente identificação com o opressor, um mecanismo de defesa e uma fantasia que o livra de ser assimilado à classe dos oprimidos. Olavo de Carvalho é o profeta que deu um sentido e uma orientação a essa turma de desvalidos de espírito.

A escolha de Sérgio Moro foi uma ponte para cima com a classe média tradicional que também odeia os pobres, inveja os ricos, e se imagina moralmente perfeita porque se escandaliza com a corrupção seletiva dos tolos. Mas apesar de socialmente conservadora, ela não se identifica com a moralidade rígida nos costumes dos Bolsonaristas de raiz que estão mais perto dos pobres. Paulo Guedes, por sua vez, é o lacaio dos ricos que fica com o quinhão destinado a todos aqueles que sujam a mão de sangue para aumentar a riqueza dos já poderosos.

Os 100 dias de Bolsonaro mostram que a convivência desses aliados de ocasião não é fácil. A elite não quer o barulho e a baixaria de Bolsonaro e sua claque que só prejudicam os negócios. Também a classe média tradicional se envergonha crescentemente do “capitão pateta”. Ao mesmo tempo sem barulho nem baixaria Bolsonaro não existe. Bolsonaro “é” a baixaria.
Sérgio Moro, tão tolo, superficial e narcísico como a classe que representa, é queimado em fogo brando já que o Estado policial que almeja, para matar pobres e controlar seletivamente a política, em favor dos interesses corporativos do aparelho jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade nem a elite nem a seus políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um fantoche patético em busca de uma voz.

O resumo da ópera mostra a dificuldade de se dominar uma sociedade marginalizando, ainda que em graus variáveis, cerca de 80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda podre das classes populares foi útil para vencer o PT. Mas ele é tão grotesco, asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível. A idiotice dele e de sua claque no governo é literal no sentido da patologia que o termo define. Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas uma percepção distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo pulsões e afetos que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota de verdade no comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma classe média sem compromisso com a população nem com a sociedade como um todo. Esse é o dilema dos 100 dias do idiota Jair Bolsonaro no poder.

Jessé Souza
Sociólogo
Professor titular na Universidade Federal do ABC