17.11.14

“AS FORÇAS CONTRÁRIAS À IGREJA”

O preletor toma a palavra e, diante de um auditório diversificado em termos de “conteúdo” teológico, abre a sua fala dizendo: “há duas grandes forças que atrapalham a igreja de hoje, o liberalismo teológico e a pós-modernidade”. O tema da preleção era: “A igreja e o mundo contemporâneo”. Julguei que o preletor, no mínimo, pudesse dominar os conceitos de que estava disposto a falar, mas logo ficou patente de que apenas reproduzia o que outros já falaram, ficando evidente que nem ao menos leu os autores que estava se propondo a criticar.

Quando se coloca que há “forças” contrárias à igreja, fica subtendido que há uma “disputa” por espaços, para usar uma metáfora da física, ou seja, há o atrito que para acontecer é preciso haver um “corpo em repouso” e um “corpo em movimento”. Nesse caso não se sabe se é a igreja que está em repouso (o que pode ser comprovado em alguns temas) ou se é a sociedade que está em movimento e, por consequência, haveria uma espécie de atrito com a igreja e sua tranquilidade celestial.

Uma dessas “forças”, na concepção do palestrante, é o liberalismo teológico. Regra geral para se rotular um liberal é quando alguém não está de concordo com alguma doutrina presente na teologia sistemática de tendência conservadora, assim é “tachado” de liberal. O liberal é alguém que não acredita na Bíblia, dizem... É alguém que não prega expositivamente a Bíblia, é alguém que não “planta” igreja e muito menos investe em missões, porque tudo isso é coisa de “fundamentalista”, liberal apenas deseja desconstruir o que se crer e ajudar outras pessoas a “perder a fé”, como se fé, essa dimensão que faz parte da estrutura antropológica do ser humano, pudesse ser perdida. Quando há uma disputa quanto a interpretação do texto bíblico, como se este fosse unívoco, logo o outro que não concordo com a, em geral, literalidade do texto, é um liberal.

Quando o palestrante traz o nome de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) como um dos pioneiros no movimento do liberalismo teológico, percebe-se logo que seus apontamentos não eram fruto de uma leitura do teólogo alemão. Antes de fundamentar os eixos centrais do liberalismo teológico, não foi possível ouvir as reais motivações do movimento, que é concomitante com o liberalismo político (John Locke) e econômico (Adam Smith), ou seja, o liberalismo teológico é filho de uma época, assim como o fundamentalismo nos Estados Unidos. Ambos tomam a modernidade e seus referenciais, principalmente a ciência, como ponto de diálogo. No caso do fundamentalismo com o objetivo de confrontar os pressupostos do liberalismo teológico. Em outra vertente, a neo-ortodoxia (Karl Barth) procurou estabelecer outros pressupostos para o diálogo com a modernidade, diferente do liberalismo teológico e há alguns desavisados que rotulam Barth de liberal

Outra “força” contrária à igreja levantada pelo palestrante foi a pós-modernidade.

Havendo uma gigantesca dificuldade em definir o que seja a “pós-modernidade”, tendo em vista a discussão entre teóricos quanto o status do nosso tempo – onde até mesmo alguns alegam que não há condições de nomear –, há uma consciência de que o termo pós-modernidade não é unânime. Há quem prefira falar em hipermodernidade (Gilles Lipovetsky), hiper-realidade (Jean Baudrillard) e modernidade líquida (Zygmunt Bauman). Algo concreto, entre os teóricos da cultura, é de que pelo menos os últimos 100 anos, e mais acentuadamente o final do século passado, tem sido caracterizado por cosmovisões e comportamentos diferentes do período que se convencionou chamar de modernidade. Seria mais fácil colocar a questão como desdobramentos de uma “Nova Cultura”, um termo que José Comblin faz uso. Quando se assume a pós-modernidade como única chave de leitura da contemporaneidade corre-se o risco de levantar equivocadas concepções, como aconteceu. Uma delas foi à ideia de que hoje a sociedade não quer pensar mais, apenas sentir. Uma falácia, quando se leva em consideração a produção científica e o aumento de estudantes tendo acesso ao ensino superior.

Quando o palestrante alega que a sociedade resiste à igreja contemporânea, ele não levou em consideração os últimos censos do IBGE que apontam o crescimento dos evangélicos no país em mais de 22,2%.

Faltou uma abordagem quanto aos sem-igreja que tem crescido substancialmente e um dos fatores, apontado por pesquisas tem sido o fundamentalismo. Outro ponto, que precisava ser abordado, é a influência da teologia da prosperidade em igrejas históricas. Pessoas não estão buscando saber quem são os teóricos do liberalismo teológico, elas estão vivenciando uma escatologia sem céu. Dizem: “o melhor desta terra é meu”. Um slogan mais que divulgado no movimento evangélico e suas vertentes.

13.11.14

E PEDRO ENTROU NO MEIO...

Uma leitura de João 20,1-18

O Evangelho de João é fascinante. Um texto polissêmico onde a diversidade de origens é patente. A função do redator no texto permite alocar e deslocar estruturas do texto e assim perceber a configuração e os entrelaçamentos de textos em outros textos.

É o caso de João 20,1-18. Uma unidade de texto que contempla duas narrativas e o redator, no versículo 2, faz a abertura dessa “unidade”.

Aqui um exercício a partir desse texto e sua polissemia...

O texto tem material de Maria Madalena, do redator, de Pedro e do discípulo amado.

Segue João 20,1-18, dividido entre os três.

Maria Madalena
Redator
Discípulo amado e Pedro
(1) No primeiro dia da semana, bem cedo, estando ainda escuro, Maria Madalena chegou ao sepulcro e viu que a pedra da entrada tinha sido removida. (11) Maria, porém, ficou à entrada do sepulcro, chorando. Enquanto chorava, curvou-se para olhar dentro do sepulcro (12) e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. (13) Eles lhe perguntaram: “Mulher, por que você está chorando?” “Levaram embora o meu Senhor”, respondeu ela, “e não sei onde o puseram”. (14) Nisso ela se voltou e viu Jesus ali, em pé, mas não o reconheceu. (15) Disse ele: “Mulher, por que está chorando? Quem você está procurando?” Pensando que fosse o jardineiro, ela disse: “Se o senhor o levou embora, diga-me onde o colocou, e eu o levarei”. (16) Jesus lhe disse: “Maria!” Então, voltando-se para ele, Maria exclamou em aramaico: “Rabôni!” (que significa Mestre). (17) Jesus disse: “Não me segure, pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês”. (18) Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: “Eu vi o Senhor!” E contou o que ele lhe dissera.
(2) Então correu ao encontro de Simão Pedro e do outro discípulo, aquele a quem Jesus amava, e disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o colocaram!”

(3) Pedro e o outro discípulo saíram e foram para o sepulcro. (4) Os dois corriam, mas o outro discípulo foi mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. (5) Ele se curvou e olhou para dentro, viu as faixas de linho ali, mas não entrou. (6) A seguir Simão Pedro, que vinha atrás dele, chegou, entrou no sepulcro e viu as faixas de linho, (7) bem como o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus. Ele estava dobrado à parte, separado das faixas de linho. (8) Depois o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, também entrou. Ele viu e creu. (9) (Eles ainda não haviam compreendido que, conforme a Escritura, era necessário que Jesus ressuscitasse dos mortos.) (10) Os discípulos voltaram para casa.





A tradição de Maria Madalena nas narrativas da ressurreição é algo indubitável. Nos Evangelhos Sinóticos as mulheres estão presentes e Maria Madalena é uma delas (Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,10), mas apenas no Evangelho de João Maria Madalena aparece, sem a companhia de outras mulheres, tal o seu protagonismo. Até que houve tentativas em obnubilar a figura dela, mas não foi possível. O cristianismo primitivo teve na sua gênese o testemunho de mulheres quanto ao marco inicial da fé.

O referido texto (Jo 20,1-18) pode ser lido como:

- Uma disputa de liderança, Maria Madalena, o discípulo amado e Pedro. Daí, o redator estaria procurando colocar a todos debaixo do mesmo sol.
- Ou ainda, uma tentativa do redator em conciliar a comunidade joanina com a comunidade petrina (representando aqui a “Grande Igreja”).

É possível haver uma “disputa” entre lideranças, mas é possível haver também o trabalho do redator em agrupar narrativas, independentes, procurando dar coesão e legitimidade à autoridade petrina, sem, contudo, menosprezar a figura de Maria Madalena e do discípulo amado.

Dessa forma, João 20,1-18 não pode ser considerado um texto coerente, no sentido de ser uma mesma unidade. São duas narrativas diferentes: a primeira os versículos 1 e 11-18 e a segundo os versículos 3-10, com o redator fazendo a ligação com o versículo 2.

Houve uma inserção dos versículos de 3 a 10 dentro da perícope de Maria Madalena que originalmente, são os versículos de 1 e 11-18. Essa segunda narrativa apresenta coesão, existindo uma ligação dos fatos com o versículo primeiro. Enquanto que a segunda não tem ligação com a narrativa de Maria Madalena. O versículo 2 foi inserido estrategicamente pelo redator, para fazer a junção entre as duas perícopes.

Uma vez a comunidade joanina, precisando de apoio para sobreviver aos ataques dos cristãos-gnósticos (cisma reconhecido em 1João), foi razoável uma troca de interesses. Essa é a perspectiva do exegeta Raymond E. Brown.

Uma vez se incorporando a “Grande Igreja”, que passava por um processo de institucionalização, tendo Pedro como principal representante, a comunidade joanina passa a adotar a hierarquização da comunidade quando incorporada à “Grande Igreja”. Por outro lado, a “Grande Igreja” adota a cristologia alta (do logos) da comunidade joanina adequando-a a cristologia sinótica. Esse capítulo e, em especial o capítulo 21 do Evangelho de João, nítida interpolação no evangelho, é uma maneira do redator alinhar a comunidade joanina ao representante sênior da “Grande Igreja”, Pedro.

Não por acaso, Pedro é o primeiro a inspecionar e entrar no sepulcro no capítulo 20, mas é o discípulo amando quem vê e crê. Pode haver aqui, representada pela corrida dos discípulos, a ideia de que há uma rivalidade e competição entre as lideranças, como também, a partir das perícopes juntas, a hipótese de um agrupamento em torno de uma liderança hegemônica, Pedro.

Sendo assim, os versículos 3 ao 10, a narrativa de Pedro e do discípulo amado, se configura como uma narrativa inserida, posteriormente, com o propósito de adequação da comunidade joanina ao parâmetros político-eclesiais da “Grande Igreja”.

Se admitida à hipótese de que o autor de 1João seja o mesmo redator do Evangelho de João (opinião de Helmut Koester), há, portanto, fortes indícios de uma adequação da comunidade joanina à “Grande Igreja” sendo o capítulo 20,1-18 um conjunto de narrativas onde, propositalmente, o redator alocou Pedro no meio da narrativa de Maria Madalena quando da redação final do Evangelho de João, reconhecendo a autoridade de Pedro (o que essa figura representa) alinhando assim às igrejas petrinas.

* Uma pesquisa quanto ao papel de Maria Madalena no capítulo 20: Cf. SILVA, Francisca Rosa da. Maria Madalena e as mulheres no cristianismo primitivo. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo). São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.