13.11.14

E PEDRO ENTROU NO MEIO...

Uma leitura de João 20,1-18

O Evangelho de João é fascinante. Um texto polissêmico onde a diversidade de origens é patente. A função do redator no texto permite alocar e deslocar estruturas do texto e assim perceber a configuração e os entrelaçamentos de textos em outros textos.

É o caso de João 20,1-18. Uma unidade de texto que contempla duas narrativas e o redator, no versículo 2, faz a abertura dessa “unidade”.

Aqui um exercício a partir desse texto e sua polissemia...

O texto tem material de Maria Madalena, do redator, de Pedro e do discípulo amado.

Segue João 20,1-18, dividido entre os três.

Maria Madalena
Redator
Discípulo amado e Pedro
(1) No primeiro dia da semana, bem cedo, estando ainda escuro, Maria Madalena chegou ao sepulcro e viu que a pedra da entrada tinha sido removida. (11) Maria, porém, ficou à entrada do sepulcro, chorando. Enquanto chorava, curvou-se para olhar dentro do sepulcro (12) e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. (13) Eles lhe perguntaram: “Mulher, por que você está chorando?” “Levaram embora o meu Senhor”, respondeu ela, “e não sei onde o puseram”. (14) Nisso ela se voltou e viu Jesus ali, em pé, mas não o reconheceu. (15) Disse ele: “Mulher, por que está chorando? Quem você está procurando?” Pensando que fosse o jardineiro, ela disse: “Se o senhor o levou embora, diga-me onde o colocou, e eu o levarei”. (16) Jesus lhe disse: “Maria!” Então, voltando-se para ele, Maria exclamou em aramaico: “Rabôni!” (que significa Mestre). (17) Jesus disse: “Não me segure, pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus e Deus de vocês”. (18) Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: “Eu vi o Senhor!” E contou o que ele lhe dissera.
(2) Então correu ao encontro de Simão Pedro e do outro discípulo, aquele a quem Jesus amava, e disse: “Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o colocaram!”

(3) Pedro e o outro discípulo saíram e foram para o sepulcro. (4) Os dois corriam, mas o outro discípulo foi mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. (5) Ele se curvou e olhou para dentro, viu as faixas de linho ali, mas não entrou. (6) A seguir Simão Pedro, que vinha atrás dele, chegou, entrou no sepulcro e viu as faixas de linho, (7) bem como o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus. Ele estava dobrado à parte, separado das faixas de linho. (8) Depois o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, também entrou. Ele viu e creu. (9) (Eles ainda não haviam compreendido que, conforme a Escritura, era necessário que Jesus ressuscitasse dos mortos.) (10) Os discípulos voltaram para casa.





A tradição de Maria Madalena nas narrativas da ressurreição é algo indubitável. Nos Evangelhos Sinóticos as mulheres estão presentes e Maria Madalena é uma delas (Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,10), mas apenas no Evangelho de João Maria Madalena aparece, sem a companhia de outras mulheres, tal o seu protagonismo. Até que houve tentativas em obnubilar a figura dela, mas não foi possível. O cristianismo primitivo teve na sua gênese o testemunho de mulheres quanto ao marco inicial da fé.

O referido texto (Jo 20,1-18) pode ser lido como:

- Uma disputa de liderança, Maria Madalena, o discípulo amado e Pedro. Daí, o redator estaria procurando colocar a todos debaixo do mesmo sol.
- Ou ainda, uma tentativa do redator em conciliar a comunidade joanina com a comunidade petrina (representando aqui a “Grande Igreja”).

É possível haver uma “disputa” entre lideranças, mas é possível haver também o trabalho do redator em agrupar narrativas, independentes, procurando dar coesão e legitimidade à autoridade petrina, sem, contudo, menosprezar a figura de Maria Madalena e do discípulo amado.

Dessa forma, João 20,1-18 não pode ser considerado um texto coerente, no sentido de ser uma mesma unidade. São duas narrativas diferentes: a primeira os versículos 1 e 11-18 e a segundo os versículos 3-10, com o redator fazendo a ligação com o versículo 2.

Houve uma inserção dos versículos de 3 a 10 dentro da perícope de Maria Madalena que originalmente, são os versículos de 1 e 11-18. Essa segunda narrativa apresenta coesão, existindo uma ligação dos fatos com o versículo primeiro. Enquanto que a segunda não tem ligação com a narrativa de Maria Madalena. O versículo 2 foi inserido estrategicamente pelo redator, para fazer a junção entre as duas perícopes.

Uma vez a comunidade joanina, precisando de apoio para sobreviver aos ataques dos cristãos-gnósticos (cisma reconhecido em 1João), foi razoável uma troca de interesses. Essa é a perspectiva do exegeta Raymond E. Brown.

Uma vez se incorporando a “Grande Igreja”, que passava por um processo de institucionalização, tendo Pedro como principal representante, a comunidade joanina passa a adotar a hierarquização da comunidade quando incorporada à “Grande Igreja”. Por outro lado, a “Grande Igreja” adota a cristologia alta (do logos) da comunidade joanina adequando-a a cristologia sinótica. Esse capítulo e, em especial o capítulo 21 do Evangelho de João, nítida interpolação no evangelho, é uma maneira do redator alinhar a comunidade joanina ao representante sênior da “Grande Igreja”, Pedro.

Não por acaso, Pedro é o primeiro a inspecionar e entrar no sepulcro no capítulo 20, mas é o discípulo amando quem vê e crê. Pode haver aqui, representada pela corrida dos discípulos, a ideia de que há uma rivalidade e competição entre as lideranças, como também, a partir das perícopes juntas, a hipótese de um agrupamento em torno de uma liderança hegemônica, Pedro.

Sendo assim, os versículos 3 ao 10, a narrativa de Pedro e do discípulo amado, se configura como uma narrativa inserida, posteriormente, com o propósito de adequação da comunidade joanina ao parâmetros político-eclesiais da “Grande Igreja”.

Se admitida à hipótese de que o autor de 1João seja o mesmo redator do Evangelho de João (opinião de Helmut Koester), há, portanto, fortes indícios de uma adequação da comunidade joanina à “Grande Igreja” sendo o capítulo 20,1-18 um conjunto de narrativas onde, propositalmente, o redator alocou Pedro no meio da narrativa de Maria Madalena quando da redação final do Evangelho de João, reconhecendo a autoridade de Pedro (o que essa figura representa) alinhando assim às igrejas petrinas.

* Uma pesquisa quanto ao papel de Maria Madalena no capítulo 20: Cf. SILVA, Francisca Rosa da. Maria Madalena e as mulheres no cristianismo primitivo. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo). São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.

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