16.9.14

PASTOREIO: DOM OU OFÍCIO?

Decorrente da discussão quanto à aceitação (ou não) do ministério pastoral feminino, está havendo um profícuo e intenso debate sobre o tema em nível denominacional. Mesmo que para alguns esse é um assunto superado, ainda é possível verificar a opinião de pessoas com diferentes enfoques: bíblico-teológico, sociológico e político.

Como a maioria do debate se dá em torno do papel da mulher em relação ao homem, o tema, por vezes, fica restrito entre os igualitaristas (que entende que tanto homem como mulher são iguais, não havendo distinção em termos de funções ou papéis) e os complementaristas (que entende que homem e mulher são distintos e cada um desempenha papéis diferentes). Dentro dessas duas concepções, o texto bíblico é invocado para dar base tanto ao conceito do igualitarismo como do complementarismo. Nesse sentido, os igualitaristas gostam de se utilizar de textos como Gl 3,28, por exemplo. Já os complementaristas se utilizam de textos onde a figura da mulher é colocada em segundo plano, em relação ao homem. Aqui os textos de 1Co 14,33b-36 e 1Tm 2,11-15 são os preferidos. Textos que expressam, de maneira contundente, o comportamento silencioso da mulher no culto.

Em relação aos dois textos usados pelos complementaristas, há um consenso de que ambos têm dificuldades quanto a uma exegese coerente e que, portanto, não podem ser taxativos. Em 1Co 14,33b-36 há uma disputa se a referida passagem é uma glosa ou interpolação ou ainda em que contexto Paulo está se referindo ao silêncio uma vez que em 1Co 11,5 as mulheres estão orando e profetizando. Já em 1Tm 2,11-15 não se pode definir, prontamente, que se trata de todas as mulheres,  podendo ser algo para aquelas que foram seduzidas pelos “falsos ensinos” e se desviaram (1Tm 5,15).

Aqui será dado um outro enfoque, embora os referidos textos e tantos outros que tocam o assunto de maneira direta ou indiretamente, devam ser estudados exegeticamente de maneira coerente e com o maior número de ferramentas disponíveis.

Partindo do pressuposto de que o Novo Testamento (NT) tem a sua diversidade intrínseca, é notável de que a eclesiologia de Paulo será diferente da eclesiologia dos Evangelhos e que será diferente da eclesiologia de Hebreus como também das pastorais. Não é possível ignorar que na eclesiologia paulina o foco está nos dons espirituais e a igreja é composta por profetas. Também não se pode ignorar que as listas de dons espirituais em Paulo não há distinção de gênero.

Sendo assim, é impreterível que se considere as diferentes eclesiologias presentes no NT e como elas se diferem em sua organização. Aqui estabelecemos a diferença entre a eclesiologia paulina e a eclesiologia nas pastorais.

Na eclesiologia paulina (as cartas de Paulo apenas) não é possível falar em ordenação (palavra que nem mesmo aparece no NT), porque os apóstolos não foram ordenados (assim como Paulo não foi), eles possuem autoridade devido aos critérios estabelecidos em Atos 1,21-22 e o próprio Paulo se considera um “fora de tempo”. A eclesiologia paulina não conhece uma designação oficial para o ministério pastoral. O que há são pessoas que possuem dons concedidos pelo Espírito Santo, capacitando pessoas para o serviço na comunidade. No caso de uma mulher ensinar ou profetizar na igreja não dava a ela o papel de liderança na comunidade. Isso pelo fato de que as comunidades paulinas reproduzem o status quo do seu tempo, ou seja, as mulheres não partilhavam dos mesmos direitos que os homens. Paulo por diversas vezes chama pessoas próximas a ele na tarefa missionária de colaboradores e colaboradoras (Rm 16,6 e 12), a sua autoridade apostólica em nenhum momento é diminuída ou esvaecida.

A eclesiologia paulina é uma igreja de profetas. Nas comunidades paulinas o profetismo era o elemento que mantinha a comunidade em torno de pessoas carismáticas e aptas a dirigir a atividade eclesial. A ênfase nos dons espirituais se deve pelo fato de que a comunidade se entendia como iguais em dignidade de todos com todos, por esse motivo a coesão, incluindo aí a pluralidade em manifestações tão recorrentes nos textos de Paulo onde ele lista a diversidade dos dons espirituais; era uma dádiva da manifestação do Espírito Santo. A comunidade é estruturada a partir do Espírito, ele é o doador da liderança carismático-profética que dirige a comunidade por meio da distribuição de dons.

Na eclesiologia das pastorais, a comunidade passa a ser uma instituição e não mais uma comunidade de iguais, a figura do Espírito Santo passa a ser obnubilada, não esquecida. Ele deixa de ser um “agente” propagador dos dons espirituais. O foco agora são os ministérios ordenados. Por isso a ênfase na imposição de mãos (1Tm 5,22; 2Tm 1,6).

Entre essas duas concepções quanto à organização eclesial (dons espirituais – Paulo ou ofício – “pastorais”), fica algumas perguntas: o ministério pastoral pode ser enquadrado como um ofício ou ele ainda depende de alguns dons espirituais para se realizar? Se ele for entendido como um ofício, o dom é intrínseco?

Não é tão simples resolver isso.

Ocorre que há no NT duas eclesiologias (as que foram elencadas aqui), em que os dons espirituais são o elemento condutor da comunidade. Em seguida a institucionalização que confere a uma pessoa a função pastoral.

De qualquer forma, e a que opinião possa ter, não é sensato ignorar essas duas eclesiologias que trazem em seu contexto diferentes maneiras de organização comunitária. 

12.9.14

A ORDEM DAS VIÚVAS

Que as chamadas “cartas pastorais” é objeto de disputa quanto a sua (não) autenticidade paulina é um fato.

Pesquisadores do Novo Testamento se dividem quanto à autoria das “cartas pastorais” que, aliás, levou esse nome a partir do século XVIII. Entre os pesquisadores há, por exemplo, D. A. Carson (Introdução ao Novo Testamento, Vida Nova, 1997) que sustenta a autoria paulina das “pastorais”. Em contraposição, W. G. Kümmel não aceita a autoria paulina das “pastorais” (Introdução ao Novo Testamento, Paulus, 1982). Vale a pena comparar os argumentos desses dois pesquisadores.

Hoje, a autoria paulina das “pastorais” continua sendo debatida, mas há consenso, principalmente na academia, de que as “pastorais” provavelmente seja fruto de discípulos de Paulo, portanto, um cristianismo que está adentrando o segundo século. Biblistas de destaque, tanto europeus, norte-americanos, latino-americanos e brasileiros (protestantes e católicos), vem sinalizando para as “pastorais” um período pós-paulino. Nesse sentido elas seriam pseudoepígrafas, pertencentes ao círculo de discípulos de Paulo que procuram lidar com problemas de ordem doutrinária nas comunidades da região de Éfeso.

As “pastorais” tomam como modelo eclesiológico as instituições do império romano. Nelas, está sendo retratado um período de institucionalização e a liderança reflete isso. Se antes a ênfase estava na liberdade e na profecia, onde tod@s podiam exercer os seus dons (contexto paulino), com as “pastorais” a liderança é centralizada no bispo ou presbítero. A fim de combater os “falsos” ensinos e os “falsos” mestres (1Tm 4,1-3), aparentemente de vertente gnóstica, as “pastorais” validam duas armas para conter os falsos ensinos e seus mestres: o clero (bispo/presbítero) e o credo (a sã doutrina).

É dentro desse contexto que a liderança feminina será deslegitimada. Não somente por adversidades externas (falsos ensinos), mas também dificuldades internas como, por exemplo, o status de ensinador(a) na comunidade que estava em disputa. Por esta razão a intimação de 1Tm 2,9-11 onde é, expressamente, solicitado que a “mulher não ensine”. Bem, se há esse pedido é porque há mulheres ensinando e elas não estão ficando caladas na comunidade. Elas estão exercendo liderança de alguma maneira. A julgar pelo texto, essa liderança não está sendo exercida beneficamente.

Parece que o contexto de 1Tm 2,9-11 está relacionado a uma disputa de poder quanto a liderança comunitária, e nessa disputa algumas mulheres estavam envolvidas. Se o(s) autor(es) está lidando com disputas quanto à liderança, principalmente no ensino, da comunidade, pedidos como “não aceites denúncia contra presbítero” (1Tm 5,19) devem ser considerados, uma vez que há na comunidade pessoas (alguém?) que estão querendo dominar a comunidade se impondo em relação ao presbítero. Uma das ferramentas que essas pessoas estariam utilizando para dominar e se impor seria o dinheiro. Talvez mulheres ricas, com status de poder dentro da comunidade, querem se impor e dominar a comunidade e, principalmente, os homens. Não por acaso que o texto de 1Tm 2,9-11, pede para que mulheres não estejam presentes na comunidade “com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso”. Se há essas mulheres no grupo, o ensino proposto é de que haja “contentamento” e não “lucro”, uma vez que o amor ao dinheiro “é a raiz de todos os males” (1Tm 6,6-10).

Se há mulheres querendo dominar a comunidade e a liderança masculina, há também mulheres que se dedicam à comunidade de maneira piedosa. Trata-se da ordem das viúvas que havia inclusive “inscrição” (1Tm 5,9-16).

As viúvas tinham um ministério na comunidade e isso deixa o autor(es) preocupado com esse grupo também, principalmente com as viúvas jovens. Fato é que há uma liderança feminina de viúvas na comunidade e o autor(es) não pode deslegitimar essa liderança como fez com as supostas mulheres ricas.

A lista de qualificações que se pede ao presbítero (bispo) e às viúvas é bem parecida:

1Tm 3,1-7                              1Tm 5,9-16
“esposo de uma só mulher”    “esposa de um só marido”
“irrepreensível”                     “recomendada pelo testemunho”
“criando os filhos”                 “tenha criado filhos”
“hospitaleiro”                        “exercitado hospitalidade”

Ocorre que havia uma ordem e, ao que tudo indica, não havia idade para pertencer a ela, contanto que fosse viúva. Elas exerciam uma liderança na comunidade e é isso que o autor(es) quer delimitar, ou seja, ele(s) está tendo problemas com mulheres ricas e olha a ordem das viúvas com certo cuidado a fim de limitar a atuação delas na comunidade, por isso os critérios que ele(s) procura estabelecer sendo um deles o principal, 60 anos idade mínima. Quanto às viúvas novas, o autor(es) pede que sejam rejeitadas, porque podem querer se casar novamente.

Assim como não há desempenho de funções para com o presbítero (bispo – 1Tm 3,1), apenas qualificações, a ordem das viúvas de igual modo, apenas qualificações morais e espirituais. Sendo assim, há indícios fortes aqui de que havia uma liderança feminina no contexto das “pastorais” que, provavelmente, se dedicavam a fazer visitas às famílias da comunidade bem como orações nas casas. Daí a preocupação do autor(es) quanto a essas visitas, principalmente de mulheres que estavam sendo seduzidas por falsos ensinos. No texto, há uma tentativa de limitar a atuação do ministério feminino estabelecendo uma idade mínima (60 anos), mas não há uma proibição em relação ao que exerciam, pelo contrário, havia certo incentivo para que fossem “mestras” (Tt 2,3).

Sendo assim, uma “ordem dos pastores” não há nas “pastorais”, mas uma ordem das viúvas sim, mesmo a contragosto.

8.9.14

ELAS NÃO CONTAM...

Indubitavelmente a ressurreição é um dos principais temas do Novo Testamento.

Embora o tema da ressurreição seja controverso, ou seja, não há unanimidade entre os pesquisadores quanto ao caráter da ressurreição, tanto entre teólogos católicos quanto protestantes, o tema segue sendo a principal força do cristianismo como religião. Não por acaso, de maneira nenhuma, que teólogos de diferentes posicionamentos, se debruçam no tema para dele fazer hermenêutica, seja a partir da perspectiva bíblica, científica, filosófica ou religiosa. Uma obra recente que procura tratar do tema, do ponto de vista histórico-teológico, é a do teólogo inglês N. T. Wright, A ressurreição do Filho de Deus (Academia Cristã e Paulus).

Ocorre que dentro do Novo Testamento já exista diversidade interpretativa quanto ao tema da ressurreição. A perspectiva neotestamentária acolhe, por exemplo, uma representação do ressuscitado em termos espiritualizante (Paulo), mas também concebe uma representação materializante (João).

Uma vez a ressurreição se configurando como um tema importante para a fé dos discípulos, o ser testemunha de tal “ocorrido” dá ao(s) testemunhador(es) a possibilidade de alimentar a fé de quem já caminhava com o Nazareno, e tinha nele a manifestação de Deus, como também dos futuros discípulos.

O ser testemunha da ressurreição se torna em elemento definidor na vivência comunitária: “a este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas” (At 2,32).

É dentro desse aspecto, que o testemunho apostólico se tornará fundamental para a comunidade de fé. Uma das tradições mais antigas da ressurreição, 1Co 15,3-8, traz as testemunhas da ressurreição que consta os apóstolos, mais de quinhentos irmãos, Tiago e o próprio Paulo, fora de tempo como ele diz.

Testemunhar a ressurreição é algo que todos gostariam de ter experimentado, sem dúvida, e alguns tiveram essa oportunidade privilegiada. Até porque esse testemunhar será um dos critérios para a composição do grupo apostólico (At 1,21-22).

Bem, ocorre que as narrativas da ressurreição de Jesus (nos evangelhos sinóticos e João), mostram que elas foram às primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus (Mt 28,1-8; Mc 16,1-7; Lc 24,1-10; Jo 20,11-18). Todas as narrativas, excetuando Marcos, traz a informação de que foram elas que levaram a notícia aos discípulos, e futuramente apóstolos, da ressurreição.

Se o testemunhar a ressurreição se tornou em um elemento de fé para a nascente comunidade; se o testemunhar a ressurreição, mais a frente, se transforma em critério para exercer a liderança na comunidade, por que as mulheres foram deslegitimadas?

E mesmo Paulo, que foi um “fora de tempo”, que se configura em liderança notável no cristianismo nascente, por que as mulheres que testemunham a ressurreição não foram nem mesmo mencionadas por ele (1Co 15,3-8)? Calvino, comentando esse texto em 1540, é específico: “ele não fornece uma lista completa, pois omite as mulheres. Portanto, quando diz que antes de todos apareceu a Pedro, devemos entender que ele (Pedro) é o primeiro entre os homens, de modo que a afirmação de Marcos (16,9) de que Jesus apareceu primeiro a Maria não é de forma alguma inconsistente”.

Aparentemente é um caso típico de diferentes tradições. Felizmente elas (as tradições), chegaram até nós de maneira paralela. Mesmo assim, essa desconformidade com o mesmo fundamento de fé (a ressurreição), possibilita a pensar de que as mulheres foram sendo gradativamente marginalizadas enquanto protagonistas da ressurreição. Esse processo começa com os critérios para substituir Judas no colégio apostólico e o primeiro deles é: ser homem (At 1,21). É claro que, para as mulheres, o primeiro critério anula os outros dois (ter acompanhado Jesus e terem sido testemunhas da ressurreição).

A tradição de que mulheres viram o ressuscitado se tornou texto em uma época (80-90 d.C.) em que as relações na comunidade de fé passava por um processo androcêntrico. Mesmo assim essas tradições nos deixam claro de que foram as mulheres que viram o sepulcro vazio e o anjo falou com elas, ou seja, uma hierofania, uma manifestação divina. Mais ainda, são elas que recebem de Jesus a incumbência de levar a notícia aos discípulos e futuros apóstolos quando a sua vitória sobre a morte. Mesmo assim elas ainda não contam.