12.9.14

A ORDEM DAS VIÚVAS

Que as chamadas “cartas pastorais” é objeto de disputa quanto a sua (não) autenticidade paulina é um fato.

Pesquisadores do Novo Testamento se dividem quanto à autoria das “cartas pastorais” que, aliás, levou esse nome a partir do século XVIII. Entre os pesquisadores há, por exemplo, D. A. Carson (Introdução ao Novo Testamento, Vida Nova, 1997) que sustenta a autoria paulina das “pastorais”. Em contraposição, W. G. Kümmel não aceita a autoria paulina das “pastorais” (Introdução ao Novo Testamento, Paulus, 1982). Vale a pena comparar os argumentos desses dois pesquisadores.

Hoje, a autoria paulina das “pastorais” continua sendo debatida, mas há consenso, principalmente na academia, de que as “pastorais” provavelmente seja fruto de discípulos de Paulo, portanto, um cristianismo que está adentrando o segundo século. Biblistas de destaque, tanto europeus, norte-americanos, latino-americanos e brasileiros (protestantes e católicos), vem sinalizando para as “pastorais” um período pós-paulino. Nesse sentido elas seriam pseudoepígrafas, pertencentes ao círculo de discípulos de Paulo que procuram lidar com problemas de ordem doutrinária nas comunidades da região de Éfeso.

As “pastorais” tomam como modelo eclesiológico as instituições do império romano. Nelas, está sendo retratado um período de institucionalização e a liderança reflete isso. Se antes a ênfase estava na liberdade e na profecia, onde tod@s podiam exercer os seus dons (contexto paulino), com as “pastorais” a liderança é centralizada no bispo ou presbítero. A fim de combater os “falsos” ensinos e os “falsos” mestres (1Tm 4,1-3), aparentemente de vertente gnóstica, as “pastorais” validam duas armas para conter os falsos ensinos e seus mestres: o clero (bispo/presbítero) e o credo (a sã doutrina).

É dentro desse contexto que a liderança feminina será deslegitimada. Não somente por adversidades externas (falsos ensinos), mas também dificuldades internas como, por exemplo, o status de ensinador(a) na comunidade que estava em disputa. Por esta razão a intimação de 1Tm 2,9-11 onde é, expressamente, solicitado que a “mulher não ensine”. Bem, se há esse pedido é porque há mulheres ensinando e elas não estão ficando caladas na comunidade. Elas estão exercendo liderança de alguma maneira. A julgar pelo texto, essa liderança não está sendo exercida beneficamente.

Parece que o contexto de 1Tm 2,9-11 está relacionado a uma disputa de poder quanto a liderança comunitária, e nessa disputa algumas mulheres estavam envolvidas. Se o(s) autor(es) está lidando com disputas quanto à liderança, principalmente no ensino, da comunidade, pedidos como “não aceites denúncia contra presbítero” (1Tm 5,19) devem ser considerados, uma vez que há na comunidade pessoas (alguém?) que estão querendo dominar a comunidade se impondo em relação ao presbítero. Uma das ferramentas que essas pessoas estariam utilizando para dominar e se impor seria o dinheiro. Talvez mulheres ricas, com status de poder dentro da comunidade, querem se impor e dominar a comunidade e, principalmente, os homens. Não por acaso que o texto de 1Tm 2,9-11, pede para que mulheres não estejam presentes na comunidade “com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso”. Se há essas mulheres no grupo, o ensino proposto é de que haja “contentamento” e não “lucro”, uma vez que o amor ao dinheiro “é a raiz de todos os males” (1Tm 6,6-10).

Se há mulheres querendo dominar a comunidade e a liderança masculina, há também mulheres que se dedicam à comunidade de maneira piedosa. Trata-se da ordem das viúvas que havia inclusive “inscrição” (1Tm 5,9-16).

As viúvas tinham um ministério na comunidade e isso deixa o autor(es) preocupado com esse grupo também, principalmente com as viúvas jovens. Fato é que há uma liderança feminina de viúvas na comunidade e o autor(es) não pode deslegitimar essa liderança como fez com as supostas mulheres ricas.

A lista de qualificações que se pede ao presbítero (bispo) e às viúvas é bem parecida:

1Tm 3,1-7                              1Tm 5,9-16
“esposo de uma só mulher”    “esposa de um só marido”
“irrepreensível”                     “recomendada pelo testemunho”
“criando os filhos”                 “tenha criado filhos”
“hospitaleiro”                        “exercitado hospitalidade”

Ocorre que havia uma ordem e, ao que tudo indica, não havia idade para pertencer a ela, contanto que fosse viúva. Elas exerciam uma liderança na comunidade e é isso que o autor(es) quer delimitar, ou seja, ele(s) está tendo problemas com mulheres ricas e olha a ordem das viúvas com certo cuidado a fim de limitar a atuação delas na comunidade, por isso os critérios que ele(s) procura estabelecer sendo um deles o principal, 60 anos idade mínima. Quanto às viúvas novas, o autor(es) pede que sejam rejeitadas, porque podem querer se casar novamente.

Assim como não há desempenho de funções para com o presbítero (bispo – 1Tm 3,1), apenas qualificações, a ordem das viúvas de igual modo, apenas qualificações morais e espirituais. Sendo assim, há indícios fortes aqui de que havia uma liderança feminina no contexto das “pastorais” que, provavelmente, se dedicavam a fazer visitas às famílias da comunidade bem como orações nas casas. Daí a preocupação do autor(es) quanto a essas visitas, principalmente de mulheres que estavam sendo seduzidas por falsos ensinos. No texto, há uma tentativa de limitar a atuação do ministério feminino estabelecendo uma idade mínima (60 anos), mas não há uma proibição em relação ao que exerciam, pelo contrário, havia certo incentivo para que fossem “mestras” (Tt 2,3).

Sendo assim, uma “ordem dos pastores” não há nas “pastorais”, mas uma ordem das viúvas sim, mesmo a contragosto.

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