21.12.11

A GLOBALIZAÇÃO GOSPEL ­– O CASO DO “FESTIVAL PROMESSAS” DA REDE GLOBO

Globalização é a palavra do momento na conjuntura mundial. Nas palavras de Renato Ortiz (sociólogo brasileiro), globalização significa “produção, distribuição e consumo de bens e serviços”. Este processo se estende para aspectos políticos, econômicos – uma das principais vertentes – e culturais. Mas o mais impressionante na esfera da globalização é o segmento midiático. A capacidade de influenciar e gerar comportamentos a partir da mídia. Em resumo, a globalização midiática proporcionou o surgimento de uma sociedade que valoriza o espetáculo, o show. O consumismo é patrocinado pela mídia e são duas forças que operam juntamente. Uma não vive sem a outra.
No dia 18 de Dezembro foi ao ar o “Festival Promessas” da Rede Globo. Para alguns foi o ápice do “evangelho” no Brasil; para outros não houve “evangelho”; alguns entenderam como “providencia divina” o fato da “poderosa” Rede Globo mostrar pela primeira vez um show tido como “evangélico”, logo ela (Globo) que sempre marginalizou qualquer notícia veiculada pelos “evangélicos”. Foi de Deus, exclamariam alguns. É Deus usando ímpios para levar adiante o evangelho, diriam outros.

É fato que a religiosidade tida como “evangélica” tende a espiritualizar tudo, não poderia ser diferente com isso, daí a explicação mais razoável: o que aconteceu foi a “mão de Deus” agindo. Não quero fazer aqui está leitura, não sou tão otimista assim.

A globalização é isso. Ninguém detém um monopólio por muito tempo. A globalização não está interessada em dogmas, doutrinas, denominações, isso não gera lucro. O interesse é de mercado mesmo. Acontece que a Rede Globo está atenta aos últimos dados do IBGE e viu que na sociedade brasileira um segmento cristão não católico está tendo um crescimento expressivo nas últimas décadas. Assim como refrigerante, cerveja e celular, religião também vende, dá lucro, e como dá. E não vale aqui o espantado com isso porque os neopentecostais ensinaram muito bem como funciona o marketing desse produto chamado indevidamente de “evangelho”.

Ocorre que é sempre um problema quando uma linguagem tida como secreta – as dos evangélicos não midiáticos, ou seja, os que não detêm uma rede de televisão ou programas de TV – veem seu discurso ser transformado em linguagem coloquial como “entra na minha casa, entra na minha vida”. Antes com um discurso hermético que somente os iniciados na religião aprendiam como “Deus de vitória” e coisas assim, vê-se agora transformado em algo comum, onde todos podem ter acesso sem precisar frequentar alguma igreja! Esfumaçou a distancia do sacro santo ambiente igrejeiro do profano e perdido mundo “jaz no maligno”. Isso deve ser um incomodo e tanto. Antes a emissora do BBB e das novelas que faz campanha abertamente a favor da cidadania homossexual é a agora a TV “usada por Deus para propagar o evangelho”. Antes o televiso Silas Malafaia “descia o cassete” – no seu próprio linguajar – na Rede Globo. Agora, ambos, estão de olho no crescente “mercado gospel”. Como as coisas mudam. Incrível.

Não estou nem um pouco interessado se é o homem dos R$ 900,00 e da “unção financeira” ou a Rede Globo que querem abocanhar a porcentagem de “evangélicos” no Brasil. Isso é simplesmente negócio, apenas isso. É venda. É lucro. É mercado. E quem faz com que isso seja assim são as pessoas que pensam que comprando o CD, o DVD ou o livro do fulano estarão mais próximas de Deus!

Não é Deus que “abriu” as portas para o “louvor e adoração” na Rede Globo. É apenas dinheiro.

Não sei, mas acho que se Jesus estivesse aqui ele faria o mesmo com tudo isso como fez no templo de Jerusalém quando expulsou os cambistas que exploravam o povo com a venda de oferendas. Infelizmente isso não será possível. Enquanto isso viva a globalização gospel.

20.12.11

DO PALÁCIO DE HERODES À MANJEDOURA DE JESUS – UMA METÁFORA DO NATAL

Nessa época do ano ficamos mais sensíveis às coisas. Parece que olhamos para a nossa condição humana e percebemos que as coisas poderiam ser melhores. Pena que isso só ocorre neste período.

Esse sentimento é o espírito de Natal. Embora a data não seja essa, e há quem acredite piamente que Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro, a tradição cristã comemora um dia, mas não é o dia, como algo exato, mas a lembrança do menino Jesus.

As narrativas do Natal nos evangelhos de Mateus (Mt) e Lucas (Lc) quer sempre nos ensinar algo. Não é apenas o relato de um nascimento, mas algo a mais. É fato que as duas narrativas (Mt e Lc) não são idênticas. Se alguém estiver procurando nelas fatos históricos, no sentido cartesiano de pensar, está equivocado. Os textos não querem ser prova de nada, pelo contrário, querem evocar uma celebração – a graça de Deus se manifestou a todos e começou inofensivamente num menino, Jesus. Portanto, nas narrativas, os autores teologizaram em torno do nascimento cada um com um enfoque teológico diferente. Enquanto Mt olha para José, Lc vê Maria; enquanto em Mt José e Maria moram em Belém, em Lc eles vão para Belém; enquanto Mt coloca Jesus a caminho do Egito – por uma questão comparativa que o autor faz entre Moisés e Jesus –, Lc Jesus volta para Nazaré. Em Mt são os “magos”; em Lc são os “pastores”.

Interessante notar que ambos, Mt e Lc, colocam um fundo político na narrativa. Em Lc vemos a sua preocupação com os desfavorecidos, com os marginalizados, com os oprimidos pelo sistema político (representado pelos romanos), social (a divisão de classes entre os judeus) e religioso (o templo de Jerusalém como dominador do imaginário religioso). Ele tem um olhar todo especial para as mulheres, é por isso que logo no início de seu texto, Lc coloca como protagonistas Maria e Isabel. Numa cultura em que mulher não tinha nenhum valor, quer político, social, econômico ou religioso, Lc dá proeminência às mulheres. Não é por acaso que o texto de Lc 1, 31-53 está o que ficou conhecido como o “Cântico de Maria” ou o Magnificat. O anúncio do nascimento de Jesus, na teologia de Lc, provocou uma renovação de esperanças e forças; era a concretização dos sonhos do povo de Israel. Lc coloca na boca de Maria uma canção subversiva, contestatória, revolucionária. O nascimento de Jesus passa a significar a inversão dos valores, outrora considerados corretos; o nascimento passa a significar a redistribuição dos bens. Para Lc o nascimento de Jesus é um protesto, da parte de Deus, contra o abuso do necessitado pelo rico; é, ao mesmo tempo, a libertação dos oprimidos e dos fracos. O “Cântico de Maria” significa a quebra de barreiras e preconceitos contra a mulher e o início da igualdade nas relações de gênero. Ocorre o surgimento de novas relações, não mais baseadas na exploração e no descaso pelo outro, mas na equidade. Se outrora o orgulho, aquele que se considera acima dos outros, detinha o poder, ele é destronado; se outrora os poderosos/ricos menosprezavam e condenavam o pobre ao descaso, agora ele é esvaziado de sua arrogância. Os humildes, aqueles que, no entender de Lc, não almejam o poder, são exaltados. É uma leitura politizada.

No caso de Mt a figura política é Herodes. O capítulo 2 Mt usa como construção literária um recurso conhecido como midraxe – é a explicação de um texto bíblico feita livremente com alegorias, imagens, comparações e até mesmo fantasias. Mt quer equiparar Jesus à Moisés e para isso ele, habilidosamente, constrói um texto em que Jesus e Moisés são semelhantes. Assim como o Faraó procurou matar crianças no Egito e Moisés é poupado milagrosamente, Herodes faz o mesmo; assim como Moisés vai para o Egito, Jesus tem o mesmo caminho; assim como Moisés sobe ao Monte Sinai e recebe os Dez Mandamentos, Jesus profere as dez (contando com o versículo 12) bem-aventuranças no monte.

No capítulo 2, Mt está colocando propositadamente a figura de Herodes, o Grande, em contraste com o menino rei Jesus – “nos dias do rei Herodes”. Há um conflito aqui entre dois reis que são distantes em propósito e diferentes em condições.

Herodes – este vivia os meandros da política. Estava acostumado com o jogo de poder. A sua busca era expandir sua riqueza e influência na conturbada região. Gabava-se de ser “amigo” do imperador romano e todos que eram contra ou representava alguma ameaça ao seu domínio ele procurava eliminar. Por conta disso matou os três filhos e a esposa. Herodes governava a partir de construções e embelezamento de cidades, inclusive foi financiador da reforma do templo de Jerusalém.

Herodes representa a inveja, o interesse próprio, o poder simplesmente por ter. Ele é o ícone da nossa sociedade em que as relações são estabelecidas pelo interesse.

Quando os “magos” procuram um rei que não seja ele, prontamente ele quer encontrar o menino a fim de mata-lo. Mt faz uma criança suplantar o notório e poderoso Herodes; ele faz uma flor parar um canhão; ele faz uma luz, ainda tão pequena, dissipar as densas trevas. A opulência do castelo de Herodes não foi suficiente diante da manjedoura. Há outro rei, exclama os “magos”, e este não é Herodes e mais, os presentes são para ele.

A manjedoura quer dizer Deus conosco. Um Deus que veio nos mostrar que a ordem das coisas pode mudar. A manjedoura é sinal de simplicidade, amor, acolhimento, visitação. O palácio gélido de Herodes é sinal de poder, sem graça, de força, sem autoridade, de ostentação de uma sociedade que busca nas relações de poder e na riqueza se encontrar.

A pergunta dos “magos” continua válida para a nossa sociedade: onde está o recém-nascido nisso tudo?

19.12.11

A SALVAÇÃO É MESMO PELA GRAÇA?

Estou conversando com a comunidade sobre a graça de Deus. Inevitavelmente um dos assuntos que envolvem a graça é a Salvação.

A graça que foi tema central na Reforma Protestante parece que virou apenas retórica na igreja e sua prática foi reprimida pelo farisaísmo que vemos presente em tantas pessoas que frequentam igreja.

A pergunta, a salvação é mesmo pela graça, é válida, uma vez que boa parte das pessoas que frequentam a igreja tem uma concepção equivocada da salvação.

O texto de Efésios 2,4-9 é clássico: “salvação é pela graça e não por obras, para que ninguém se glorie”. Infelizmente para algumas pessoas o que antecede a salvação não é a graça, mas o comportamento. Jesus diz: “venha como estás”, a igreja diz: “nem tanto, conserte-se primeiro”.

Outro equivoco é a ideia de que a salvação é individual. Sempre ouvi dizer que a salvação é algo individual. Essa afirmação só serviu para acentuar a individualidade das pessoas no quesito santificação. Elas dizem: “deixa o fulano, a salvação é individual mesmo”. Que tolice. Não há um só versículo bíblico que afirme esse conceito singular de salvação.

A salvação é desenvolvida na história, e sempre envolveu um povo e não indivíduos. Deus chama o povo de Israel e não Moisés especificamente. Deus elegeu o povo de Israel não pele seu mérito, pois não tinha nenhum (Dt 7,7-8). Com a igreja Deus predestina[1] para o “louvor da sua gloriosa graça”. A oferta da salvação é sempre coletiva – “porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens” (Tt 2,11) – a aceitação do ser humano que é individual, pois envolve fé.

Aquele terrorismo que se faz com a salvação que pode ser e deixar de ser salvo a qualquer momento é descabido. Salvação envolve uma comunidade – “Cristo é o cabeça da igreja, que é o seu corpo, do qual ele é o Salvador” (Ef 5,23) –, portanto não há como ser cristão individual. Não se vive cristianismo isolado. Isso porque o cristianismo não se resume em ter comunhão apenas com Deus, mas ter comunhão com Deus e com o próximo. É salvo quem faz parte de um povo salvo, quem está ligado ao corpo de Cristo.

A salvação pela graça de Deus tem como consequência a ruptura com o pecado, o pecado do qual fala Paulo, aquele que escraviza o gênero humano e submete a Criação a dores. É uma salvação da culpa e um canto de liberdade. É uma salvação de si mesmo, do egoísmo, do medo.

Não é uma batalha diária em que se autocondena por quaisquer falhas. Salvação é a certeza do amor de Deus agindo em nós; envolve esperança, vida e paz. Aqueles que vão à igreja (templo) para serem salvos estão enganados. A igreja (gente) é o encontro dos salvos.



[1] Para mais detalhes sobre a História da Salvação a partir da predestinação, ver meu artigo: Predestinação como parte da História da Salvação. Disponível em: http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/06/01Predestinacao.pdf

5.12.11

A GRATUIDADE DA GRAÇA NA COMUNIDADE: UMA EXPOSIÇÃO DE MATEUS 18

Na Memorial em Iporanga estamos refletindo sobre a graça de Deus. Gostaria de compartilhar uma dessas mensagens a partir do evangelho de Mt capítulo 18 (leia o texto).

Se apropriando do evangelho de Mateus, que juntamente com Tiago são explicitamente judaico-cristãos, mais especificamente o capítulo 18 (cap. 18), faço uma leitura do texto olhando para a comunidade mateana que reflete a fé em Jesus como o Messias e procura resolver seus problemas internos.

É uma comunidade que enfrenta problemas externos (os fariseus, principalmente) e internos (a própria comunidade). Quando o autor quer falar a sua comunidade ele mesmo nos dá uma chave de leitura, utilizando a palavra irmãos (gr. adelfoz). O cap. 18 é conhecido como o “discurso comunitário”, o centro da experiência eclesial no evangelho de Mt. O ponto central do discurso é a graça de Deus fechando o capítulo com os versículos 21ss.

Na comunidade que vivência a graça de Deus não há maior ou menor. Daí a pergunta dos discípulos não serem condizentes com o real sentido de ser comunidade: “quem é o maior no reino dos céus?” A criança é metaforicamente utilizada para dizer: na comunidade da graça de Deus não deve haver reivindicação de prioridade, de superioridade, de posição. Antes deve haver humildade, franqueza, respeito, consideração.

Mais a frente o autor de Mt utiliza a palavra pequeninos. Quem são os pequeninos? São os fracos da comunidade; são os que necessitam de atenção. Traduzindo para uma linguagem coloquial, são os irmãos que tem dificuldades em frequentar os encontros da comunidade; dificuldades em fazer uma leitura atenta da Bíblia; são aqueles que possuem debilidades em sua fé, e quem não as tem? São aqueles em que não se pode contar muito. Para com esses pequeninos o cuidado deve ser dobrado. É melhor morrer do que fazer um desses tropeçar no caminho do discipulado.

O autor do evangelho de Mt usa até mesmo uma linguagem apocalíptica para defender os pequeninos da comunidade. Utiliza-se de fogo, inferno. Quando ele fala de mão, pé, olho é uma linguagem simbólica para exemplificar as ações dentro da comunidade (vs. 8-10). Sem dúvida a questão do imaginário infernal como julgamento definitivo está presente no evangelho de Mt, mas aqui no cap. 18 está se dirigindo à comunidade. Aqui é configurada uma situação em que o membro da comunidade se afastou do seu maior objetivo, a própria comunidade. Para Mt é o falso irmão, e o “fogo” (símbolo tão controverso no Novo Testamento) é a frustração angustiante de que está afastado do que Deus deseja para a comunidade. Nesse caso, o texto não está falando de gente que não conhece a Cristo, mas sim de pessoas que dizem ter tido uma experiência com ele. Esse é o mesmo caso no cap. 25 versos 41-42, o julgamento final levará em conta a atuação ao próximo, e aqueles que não corresponderam quanto a essa prática, o destino será o inferno. Ele encerra a questão dos pequeninos contado a parábola da ovelha perdida, ou seja, deixa a noventa e nove no aprisco e sai a procura daquele que se perdeu. Tudo isso para dizer: não deixem que suas pequenas coisas afastem ou façam perecer os pequeninos da comunidade.

E quanto aos erros que toda comunidade tem? Mt irá regulamentar isso a partir do vs 15: “se teu irmão pecar contra ti...”. O roteiro é apresentado: primeiro entre as partes envolvidas, depois se não houver solução duas pessoas, persistindo, a igreja, recusando ouvir a igreja, tratar como alguém que nunca teve ou perdeu o senso de comunidade (gentio/publicano). Mas o foco maior mesmo está na boca de Pedro: “até quantas vezes devo perdoar, sete vezes?” O perdão na comunidade não é uma questão de contabilidade. Assim como Deus que nos libera perdão numa rotação máxima, deve ser a comunidade para com os erros do próximo. Mais uma vez Mt encerra contando a parábola conhecida como “credor incompassivo”. Uma grande dívida foi perdoada (o Pai e sua infinita graça) e mesmo assim aquele homem decidiu cobrar uma ínfima quantia de outro.

A graça na comunidade é assim: ela nos nivela, não existindo maior ou menor, todos como crianças; a graça exige cuidado para com os pequeninos (fracos) da comunidade e perdão para os erros que com certeza aparecem na comunidade. Essa é a graça de ser dependente da graça de Deus e de ser comunidade.