29.12.16

QUANDO A FÉ SE CONVERTE EM DOUTRINA

Uma mera abordagem da fé em Calvino e Paulo

Quando Calvino fala sobre nas Institutas, essa é umas das principais definições: “Um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus para conosco, fundada na verdade da promessa dada gratuitamente em Cristo, revelada a nossas mentes e selada em nossos corações pelo Espírito Santo”. Nessa definição, é tratada como um conhecimento, mais ainda firme e certo. Conhece à Deus por meio dessa que, mediante o Espírito Santo, é revelada na mente e selada no coração. Para Calvino, portanto, a não é uma capacidade humana, ela é obra e realização do Espírito Santo, ou seja, é um dom sobrenatural do Espírito Santo. Não é algo inato ao ser humano. Antes pode ser uma resposta humana genuína pela qual os eleitos ingressam na sua nova vida em Cristo.

Ainda nas Institutas, Calvino afirma: “Nós só somos levados a Cristo e seu reino, em genuína e verdadeira fé, em virtude do Espírito do Senhor”. Isto significa que, além de objeto da fé, Deus é também aquele que nos conduz à mesma. É impossível, de acordo com o pensamento de Calvino, que alguém tenha genuína fé em Deus, mediante seu Filho, sem que tenha sido conduzido ao mesmo por Deus, mediante seu Espírito. Nesse sentido não há nenhuma mediação humana para a graça, obviamente. Se houvesse algo assim, o sistema de Calvino teria dificuldades, quando admitisse que a é algo que oriunda do ser humano e que, portanto, é algo inato a qualquer ser humano. É claro que ele precisa dizer que a que tem como alvo Deus, é o mesmo Deus que a suscita no coração e na mente daquele que, uma vez predestinado, foi eleito para ser salvo.

Os intérpretes de Calvino, quando colocados diante da perspectiva de em Paulo, gostam de utilizar a expressão “Espírito da fé”. Assim, no sistema de Calvino, a é dada por Deus a quem ele deseja. Isto é, ela tem origem não no homem, mas no Criador. A fé, na perspectiva calvinista, não é fruto do esforço humano, não deriva das capacidades inatas do homem em crer piamente em algo. Tampouco decorre de alguma habilidade adquirida e desenvolvida ao longo da vida de quem quer que seja. Para Calvino, a verdadeira só existe quando decorre de Deus, que além de ser seu autor, é o seu objeto maior.

Está claro que para Calvino e seus intérpretes, a não pode, em hipótese alguma, ser algo do ser humano. É Deus que espera nele e, ele mesmo, concede essa para que o eleito creia nele. O ciclo é fechado em Deus e não há possibilidade de abertura. Nesse sistema é sinônimo de eleição, não há uma sem a outra. Para o sistema de Calvino, isso é perfeito. Não há problema algum.

Quando olhamos a pela perspectiva paulina, encontramos dificuldades com o sistema calvinista. Primeiramente a que Paulo trata está ligada dialeticamente à Lei. Os seus maiores embates em torno do tema () foi em relação à Lei e, como decorrência disso, a salvação não pela Lei, mas pela graça. Por essa razão, o uso de Abraão por Paulo em Romanos. Em Gálatas o maior problema de Paulo será com a Lei versus em Cristo. Outra questão, a , em Paulo, está ligada à Cristo e não, necessariamente, à Deus (Rm 3,22-25). Isso está tão claro em Romanos, que Paulo liga a à graça (4,16).

Quando trata da e o Espírito Santo, ponto que Calvino acentua, Paulo pergunta em Gálatas: “Será em virtude da prática da lei que recebestes o Espírito, ou por terdes escutado a mensagem da fé?”. A é pré-requisito para a presença do Espírito Santo e não o contrário (Gl 3,13-14). Se o Espírito é recebido pela , onde será que fica a ? Obviamente a não é algo meritório pela qual o Espírito Santo é recebido, mas também não é nula da participação humana. Por essa razão que a não é algo imutável, antes ela (a ) precisa crescer, desenvolver.

É claro que Calvino e seu sistema doutrinário tem a necessidade, como todo e qualquer sistema que tem na doutrina o seu ponto de início e fim, de fechar a questão. Os sistemas doutrinários estão aí para dizer o que é Deus e o que ele não é. Nesse sentido, a não é outra coisa senão um ponto dentro de um sistema que emudece a voz e a consciência.

Continuar a leitura...

MORRIS, Leon. “Fé”. In: HAWTHORNE, Gerald F. et. al. (Orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008, p. 536-543.

BARTH, Karl. “A eleição de Deus em graça”. In: BARTH, Karl. Dádiva e louvor. 3ª ed. São Leopoldo: Sinodal, 2006, p. 237-255.

9.12.16

ESSA TAL AUTONOMIA...

Uma reação ao artigo de Lourenço Stelio Rega

Vez ou outra o assunto surge nos meios de comunicação da Denominação, especialmente no “O Jornal Batista – CBB”. A autonomia da Igreja Local e sua relação com a Denominação. Essa relação, defendida por uma grande maioria, se dá a partir da cooperação denominacional. Há quem não goste muito dessa “tal autonomia” e propaga uma espécie de “intervenção” denominacional na Igreja Local quando julga necessária, com ou sem consentimento. Como o sistema batista se fundamenta em alguns Princípios, isso não seria possível, mesmo com manobras estatutárias, dando uma impressão de que a Denominação dispõe de certos mecanismos de ingerência na Igreja Local.

Bom, dessa vez o pastor Lourenço Stelio Rega (Doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP e Diretor Geral da Faculdade Teológica Batista de São Paulo), na sua coluna semanal no “O Jornal Batista – CBB”, traz o assunto quanto a autonomia da Igreja Local e sua interdependência (11.12.2016 – Estudos sobre a igreja (15): a igreja como comunidade autônoma e interdependente). É sempre bom tocar nesse assunto, principalmente porque há uma necessidade de se compreender os fundamentos da tradição batista quanto ao seu modo de subsistência.

Com o intuito de ampliar o debate, porque esse deve ser um dos principais anseios de um autor, algumas questões chamam atenção no texto de Rega:

- O autor fundamenta a autonomia da Igreja Local a partir do Novo Testamento e para isso dá inúmeras referências, principalmente no livro de Atos dos Apóstolos;
- Chama atenção para a tarefa cooperativa, presente na realidade das igrejas primitivas neotestamentária, sendo uma necessidade premente para a continuação de projetos comuns às igrejas hoje;
- Procura dissuadir da ideia de que “autonomia” é sinônimo de “independência”. Para isso, lembra do trabalho de Edgar Morin como um dos principais teóricos da Teoria da Complexidade. Trazendo o filósofo francês, o autor quer dar balizamento filosófico ao que está propondo, ou seja, dizendo que no atual contexto o isolamento traz malefícios e não benefícios ao todo.

A partir disso, o autor traz a figura da Convenção, dando a entender que não se trata apenas da Convenção Batista Brasileira (nível nacional), mas também da Convenção Estadual (nível regional), quanto a relação autonomia e interdependência (lê-se autonomia da Igreja Local e interdependência com a Convenção).

Com isso, o autor explicita: “A Convenção é a solução que as nossas Igrejas Batistas têm para a realização das nossas aspirações comunitárias”. Será mesmo? Se pensarmos no aspecto missionário nas esferas mundial e nacional, isso pode se configurar uma realidade, uma vez que a atividade missionária no contexto batista tem um forte apelo. Mas quando o autor traz “aspirações comunitárias” ele não pode estar falando apenas no aspecto da Igreja Local, uma vez que a Convenção não se projeta para dentro dos muros de uma Igreja Local, mas sim para além dos seus muros. Se for assim, essa afirmação de que ela (a Convenção) é “realização das nossas aspirações comunitárias” não se sustenta. É sabido que há igrejas com uma autonomia financeira e logística que realizam trabalhos voltados para o seu contexto imediato (bairro, cidade e estado e, até mesmo, países) que, em nada, dependem de recursos da Convenção. O contrário é perceptível: são essas igrejas que, cooperantes, sendo que algumas não são, sustentam projetos denominacionais financeiramente. Além disso, não é novidade alguma, que a administração das convenções, como também da CBB, enfrenta dificuldades financeiras por, entre outros fatores, má gestão e decisões equivocadas em conselhos e reuniões deliberativas que formam um painel de discussões sem objetivos claros e previamente definidos.

O autor não menciona, em relação as igrejas do Novo Testamento, de que a cooperação acontecia entre igrejas. Portanto, não havia um controle exercido por algum centro homogêneo como quer ser as instituições. Não por acaso que as igrejas neotestamentárias enfrentaram conflitos quanto a gerência eclesiástica. Por essa razão, os batistas não dispõem de um órgão centralizador hierárquico que detém o poder de decisão monocrático.

Infelizmente a Convenção insiste em ser “Igreja”, não sendo. Ela se constitui em uma organização para-eclesiástica. A rigor ela não deveria possuir nem mesmo uma Declaração Doutrinária, mesmo com o discurso de que expressa a “vontade” da maioria dos batistas brasileiros. Como bem frisa o autor, “não podemos aplicar à Convenção e a toda sua estrutura princípios eclesiológicos que, por sua própria origem e natureza, só podem ser aplicados à Igreja Local”. Mas na prática não é isso que se verifica. Ela funciona como uma “Grande Igreja” que detém o controle do discurso correto seja ele doutrinário, moral ou político, entendendo que cabe a ela (a Convenção) decidir quem fica e quem sai. Mesmo a Filosofia da CBB dizendo qual é a sua real finalidade, ou seja, a “Convenção Batista Brasileira resulta da reflexão que os batistas brasileiros fazem sobre os princípios bíblicos que sustentam a existência, a natureza e os objetivos da Convenção, como entidade que: (a) Promove o inter-relacionamento fraterno e cooperativo das igrejas a ela associadas; (b) Apoia o fortalecimento e a multiplicação das igrejas; (c) Se interessa pelo progresso e crescimento espiritual e social dos membros das igrejas; (d) Respeita a autonomia das igrejas cooperantes; (e) Administra zelosamente as entidades e instituições que cria, às quais atribui a execução de seus objetivos, programas e determinações; (f) Obedece aos padrões bíblicos de relacionamento com a sociedade, o Estado e outras igrejas”. Essas deveriam ser suas exclusivas razões. É importante salientar de que a Declaração Doutrinária não está elencada na abertura do texto-base da “Filosofia da CBB”.

O autor, que vem se especializando em “Planejamento Estratégico” em relação à Convenção, aliás, tema que trabalha desde a década de 1990, é enfático em afirmar que “os princípios que temos que aplicar a esta estrutura, portanto, localizam-se no campo da gestão estratégica e não no campo eclesiológico, mesmo porque os Batistas não têm uma hierarquia eclesiástica”. Seria salutar se isso fosse comprobatório! Se a Convenção quer ser a mobilização das igrejas com estratégias definidas, ela não pode insistir em ser “Igreja”. Se o alcance da Convenção não chega ao “campo eclesiológico”, a sua função não contempla a pretensão de “fiscalizar” e “punir” igrejas que não estejam dentro da sua idealização de “Igreja”, cabendo outros fóruns e espaço para isso, sempre tendo a reflexão bíblica e os Princípios Batistas como mecanismo legitimador de diálogo e cooperação.