20.5.08

CONFLITOS: DISCERNIMENTO E PROCEDIMENTO

Uma reflexão a partir do evangelho de Mateus

Este não é um daqueles textos que pretende dar receitas para lidar com problemas e conflitos dentro da igreja. Até porque cada comunidade tem a sua dinâmica e seu capital de bom senso e maneiras diferentes de lidar com situações conflituosas. Esta é uma reflexão em torno do Evangelho de Mateus que tenta entender a maneira pela qual esta comunidade tratou as adversidades no convívio comunitário.

O Evangelho de Mateus é um dos poucos textos do Novo Testamento que têm uma característica tipicamente judaica, outro é a carta de Tiago. O Evangelho é de um período em que não havia ainda uma distinção entre "cristãos" e "judeus", ou seja, é inverossímil admitir uma animosidade entre os dois grupos. Portanto, o Evangelho de Mateus é um texto construído dentro do universo religioso judaico e seu autor(es) indubitavelmente era judeu e estava lidando com uma comunidade judaica que compreendeu em Jesus o Messias. Se situarmos Mateus depois de 70 d.C. (o mais provável, ano da destruição de Jerusalém) teremos um texto que procura lidar com a identidade judaica e a liderança espiritual de um povo que acabara de perder, novamente, seu referencial religioso, o templo.

A questão é que a comunidade de Mateus não era a única pós-70 a reivindicar a liderança espiritual, havia outros judeus que pretendia fazer o mesmo. A esses o autor se refere como "escribas e fariseus". Neste período não há um judaísmo, mas judaísmos por haver uma rivalidade entre a comunidade de Mateus e os outros segmentos judaicos que não postulavam Jesus como referencial teológico. Esse outro judaísmo é legalista e detém elementos sociais em seu controle, por isso a distinção entre os "escribas" (7,29) e os escribas da comunidade (13,52); a sinagoga "deles" (12,9) e a sinagoga da comunidade (13,54). Isso porque a comunidade mateana crer praticar o judaísmo no seu sentido mais verdadeiro. Quer ter voz ativa, e, em torno de Jesus, quer ser a fiel interprete da lei (Mt. 5,17).

A tensão é dupla para Mateus: fora da comunidade dificuldades com os "escribas e fariseus"; dentro da comunidade dificuldades e conflitos entre irmãos (gr. adelphos). Mateus se divide entre conflitos fora e dentro da comunidade e seu texto está envolto nessas duas temáticas. Quando o autor(es) de Mateus quer se dirigir aos de "dentro" ele usa, geralmente, a palavra irmão.

O Sermão da Montanha, como ficou conhecido, é dirigido para os irmãos no intuito de instruir, consolar, encorajar, ensinar, exortar a comunidade que precisa "brilhar para que os outros glorifiquem a Deus". Mateus quer instruir a comunidade quanto ao trato, a convivência, a solidariedade, o amor, o perdão, a vivência com Deus e para isso ele qualifica a comunidade como uma irmandade - 5,22-24, 47.

O texto que nos interessa aqui é o capítulo 7 versos 1 à 6. O texto do cisco no olho que muita gente gosta de usar em nossas igrejas mas não entendem o seu significado plenamente. Interessante notar que nesses seis versículos aparece a palavra irmão três vezes - é para a comunidade mesmo.

Dirigindo para a igreja (Mateus se apropria do termo mais a frente para diferenciar da "sinagoga") o texto tem duas finalidade: primeira - estabelecer a tolerância nos relacionamentos dentro da comunidade; segundo - identificar quem é quem dentro da comunidade (v. 16-20). Mateus parte do fato de que há "bons" e "ruins" (se é que podemos usar essa dicotomia) e que portanto é preciso lidar com ambos, porque todos estão passíveis de cometer erros. Em algum momento poderá surgir cisco/argueiro nos olhos e o falhar é uma possibilidade que não isenta ninguém. O problema, para Mateus, não é tanto o errar, mas a forma de se tratar quem erra. O modo como cuidar daquele que por algum momento falhou.

Foi comum para a comunidade de Mateus e continua sendo comum em nossas igrejas ter pessoas que se apossa de uma autoridade e de uma pretensa moralidade que lhes dão o direito de apontar o defeito, o erro, a falha do outro, porque por algum momento ela não se encaixa no seu universo "pecaminoso". Sempre haverá alguém disposto a medir sua "santidade" em cima do erro alheio. É precisamente com estes que Mateus esta falando.

A sobrevivência da comunidade dependia necessariamente da convivência entre irmãos. Era extremamente importante acentuar padrões de tolerância e maneiras de se tratar falhas no discipulado (18,15-17). A esses que não compreendiam a magnitude da vivência comunitária, Mateus usa pela primeira vez um termo direcionado exclusivamente para os "fariseus e escribas" (6,2 e 5) para qualificar esse comportamento julgatório - hipócritas.

É quase, se não totalmente, impossível ter uniformidade dentro de uma comunidade. Sempre haverá aqueles que não irão concordar com certas medidas e continuarão agindo da mesma maneira porque, até então, não entenderam a centralidade de Jesus para a Igreja e a sua forma amorosa de agir. Infelizmente a esses irredutíveis, Mateus chega a ser indelicado. Refiro-me ao verso solitário do capítulo 7, o 6. Não esta em Marcos e nem mesmo na fonte Q (Lucas), apenas em Mateus. Já se tentou deslocar o verso de seu contexto e entendê-lo como uma recomendação aos que não querem ouvir o evangelho e que portanto deveriam ser tratados como "cães e porcos". Nada disso. O texto é para aqueles que estão dentro da comunidade. Para aqueles em que não haverá qualquer tipo de mudança na maneira de pensar e agir para com os irmãos. Por algum momento esses irmãos perderam o foco do que é ser comunidade. O verso 6 é um conselho para se evitar, não perder tempo, afastar, porque o esforço de aproximação e o alento estendido pode ser um desperdício. E corre-se ainda um risco de ser "pisoteado". Qualquer semelhança com algumas situações vivenciadas na igreja hoje não é mera coincidência. Quando foi a última vez em que se tentou resolver um conflito e foi atingido por ele? Dispensou-se atenção, companheirismo e solidariedade e o retorno não foi do jeito que se imaginou? Mateus esta dizendo: isso é coisa de pessoas que pretende viver em comunidade.

O que fazer então? Mateus responde: observando os frutos (v. 16-20). E mesmo assim não é tarefa da comunidade determinar ou julgar que tipo de árvore ou fruto é. Afinal de contas, todos são passíveis de erros e acertos, amor e ódio, tolerância e intolerância, perdão e falta dele. No final o que nos define mesmo dentro da comunidade é a nossa capacidade de lidarmos com nossas falhas e crescermos com elas. Sem julgar ou condenar, mas apenas amar, porque é desta forma que o Deus Eterno age, ama tanto bons quanto maus (5,43-48). Simplesmente ama. Inexplicavelmente ama. E alguns pode até discordar de que as coisas não é tão simples assim, mas não importa ele ama quem julgamos que não merece ser amado. Por isso o conselho de Mateus é: cuidado com o discernir e o proceder diante dos conflitos que inevitavelmente irão surgir.

APASCENTANDO OVELHAS OU ENTRETENDO BODES?

Este foi o tema de um artigo de um dos maiores pregadores e pastores batistas na Inglaterra - Charles Spurgeon. Ele fez história com a sua igreja, Tabernáculo Metropolitano, e seu ministério junto a escola para jovens com vocação ao ministério pastoral.

Spurgeon vivenciava em seu tempo a dificuldade de alguns "cristãos" que não gostavam de serem apascentados, mas entretidos. Em seu artigo ele chega a ser irônico quando fala que Jesus não mandou Pedro ir atrás de quem não queria segui-lo por não entender a natureza do Reino de Deus. "Eu não escuto [Jesus] dizer: corre atrás deste povo Pedro, e diga-lhes que teremos um estilo diferente de culto amanhã; algo curto e atrativo, com uma pregação bem pequena. Teremos uma noite agradável para eles. Diga-lhes que, por certo, gostarão. Seja rápido Pedro, nós devemos alcançá-los de qualquer jeito!" Com isso Spurgeon queria dizer que ele não trairia o evangelho de Cristo para entreter aqueles "cristãos" que se parecia mais com bode do que com ovelha.

Parece que não foi somente na época de Spurgeon que a figura de Cristo não era mais suficiente. Como dizem os historiadores, "a história sempre se repete", e estamos vendo o mesmo desafio que Spurgeon teve - apascentar ou entreter?

O fato é que a cruz de Cristo e a maneira do nazareno viver não chama mais atenção. Vivemos em um universo religioso pirotécnico - o show da fé. É preciso aparecer, mexer, sentir, chorar, gritar, pular, sem essas expressões não se comprova a "presença de Deus".

Os "cristãos de hoje", ou os bodes, procuram entretenimento para "aumentar a fé". É preciso ver "milagres" para que, de fato, tenha fé. Bem, se fé é algo que depositamos em Deus por meio de Cristo, e essa experiência só é possível por meio da fé, ou seja, não vemos Jesus Cristo e muito menos Deus, mas cremos, agora estão dizendo que é necessário ver alguma coisa para "aumentar a fé?"

Os bodes, aqueles que procuram entretenimento, são autênticos consumidores religiosos. Onde têm um movimento, se encontra um que busca entreter a sua fé. Isso porque ele não consegue entender que a sua fé é entre ele e Deus, e por isso sai em busca de mediações para "aumentar a fé".

O lado decepcionante de quem busca o entretenimento da fé, é que sempre estará em busca de algo, e quando não encontrar mais perceberá que não tinha "fé". Já para aqueles que se apropriaram da experiência com Deus por meio da fé em Cristo Jesus, e que, portanto, a figura de Cristo basta, estes estarão sempre revivendo o caminho da cruz e a presença do ressuscitado no meio da sua Igreja - quer milagre maior do que este?

Apascentando ovelhas.

19.5.08

QUANDO O PASTOR NÃO É O ÚNICO PASTOR DAS OVELHAS

Estamos presenciando uma avalanche de programas tidos como "evangélicos" na televisão brasileira. Há uma rede de televisão que em certo dia da semana começa às 6h da manhã e vai até às 14h da tarde com programação evangélica. Tem de tudo um pouco e para todos os gostos. A verdade, é que os evangélicos estão tendo oportunidade na televisão brasileira como nunca teve - aliás, diga-se de passagem, algum tempo atrás, para uma certa denominação, televisão era coisa do "diabo", tida como o "baal eletrônico". Hoje é uma questão de afirmação no "mercado" religioso.

O fato é que os programas "evangélicos" (e católicos - uma reação ao crescente número de programas evangélicos obrigou a Rede Vida de Televisão a expandir seu sinal para o resto do país, porque até então, 1996, era um canal fechado) estão aí divulgando seus encontros, reuniões, congressos, cultos, pastores "cheios do poder" pregando e arrebanhando pessoas; é o "mover de Deus", o tempo do avivamento; é hora de dizer que o Brasil será (ou é) uma nação evangélica... e o discurso exclusivista não pára. Recentemente foi realizada uma pesquisa para saber quem ficava mais tempo no ar. O resultado, não surpreendeu. Ganhou um certo missionário que não sai da TV.

Não resta dúvida de que a TV é um meio de comunicação importante para a propagação do evangelho neste país. Mas o que estamos vendo é a pretensão de alguns (como já estamos presenciando a obsessão de um certo grupo sectário, que detém uma das maiores rede de televisão, buscando, a qualquer custo, a "liderança" na mídia) em construir impérios - começando com a opulência dos grandes templos, canais de TV e a recente proliferação de políticos para garantir a "sobrevivência" do povo cristão no país. O pior disso tudo, é que a legitimação envolve a manipulação do sagrado com chavões conhecidos como: "Deus nos chamou para sermos cabeça e não calda". Enquanto isso... no lado dos "míseros mortais" e retrógrados midiáticos, há a necessidade de cuidar para que os "pregadores televisivos" não afete a comunidade com modismos e crendices vindas pelo cubo "mágico".

Certo dia estava fazendo turismo na TV quando passei em um canal onde um certo programa, que na verdade é um show, dessa igreja que tem em todo lugar, de fato internacional, chamou a minha atenção uma senhora que estava dando seu "testemunho". Ela dizia que contribuía com todos esses "pastores televisivos" inclusive sendo "patrocinadora" do determinado programa. Mas o que realmente prendeu a minha atenção foi aquela senhora, piedosa até, dizer que colaborava com a Junta de Missões Mundiais há muito tempo e que, atualmente, sustentava um missionário no campo. Presumi de que a senhora, possivelmente, era batista. E era mesmo, pois no final ela confirmou. E bastou isso para o "testemunho" se encerrar por ali.

Esse é um exemplo de que nenhum pastor está isento de ter a(s) sua(s) ovelha(s) pastoreada por "outro pastor". E se não foi, poderá ser questionado sobre certas questões que o "missionário" disse; o pastor sem papas na língua falou; o "homem" do avivamento "profetizou"... Somando ainda a deficiência doutrinária e denominacional, que muitos dos membros de nossas igrejas têm, temos pessoas confusas e em crise porque a igreja da qual faz parte não faz isso ou aquilo.

Há, ainda, os que não se submetem a autoridade do pastor porque o "pastor televisivo" prega melhor; ele sim tem "unção"; é o "homem de Deus". O pastor deixa de ter credibilidade para certas pessoas que acompanham o programa do pastor tal, e se por um acaso ele, em seu sermão dominical, dizer algo parecido com o que disse o "pastor televisivo" é porque esta copiando, mesmo que não assista o tal programa.

O pastor está envolvido em uma questão dupla: a sua integridade pastoral e a identidade denominacional da qual faz parte e precisa zelar. Por um lado o tido "mercado religioso" quer obrigá-lo a se enquadrar no que está fazendo sucesso. Quando isso não ocorre (e seria bom que não ocorresse mesmo), as mensagens do pastor sobre concerto de vida, vida com Deus, arrependimento não é aceita. Afinal de contas não é mais isso que se ouve por aí. Não existe cristianismo desinteressado, mas utilitário. Os fundamentos da Reforma estão sendo solapados por uma mensagem triunfalista que tem como base a experiência individual que confirma o "mover" de Deus quando desejos, na sua maioria de consumo, são atendidos.

O pastor não está sozinho na sua árdua, mais prazerosa, tarefa de pastorear o rebanho. Há "outros" que estão 24h colocando os mais bizarros conceitos e práticas na cabeça de um povo, que por natureza, não gosta muito de refletir, mas pegar tudo pronto.

A era do teatro, templo e mercado não produzirá mais homens como o pastor Martin Luther King (assassinado em 1968). Alguém que marcou a sua época com ideais igualitários e princípios cristãos. E só para citar um exemplo latino-americano, dom Oscar Ranulfo Romero (assassinado em 1980) mártir de uma luta contra a opressão em San Salvador. Homens que marcaram profundamente não pelo "sucesso", mas pela vivência de vida e ideais humanitários e espirituais.

Pastores foram chamados para pastorear, e não precisa, necessariamente de holofotes para marcar as pessoas com o ministério. O maior desejo do pastor é ver Cristo sendo formado na Igreja (Gl. 4,19).

CONVIVÊNCIA

Alguém já definiu convivência como viver em comum, ter familiaridade.

Mas o que é viver em comum? Comum é o mesmo que dizer que o que ocorre com um pode muito bem ocorrer com o outro e isso nos torna seres comuns. A nossa comu-nidade (uma unidade comum) se dá em três dimensões básicas - planetária, humana e eclesial. A planetária - porque habitamos o mesmo planeta; a humana - porque somos de uma mesma espécie e isso nos define como seres semelhantes, e querendo ou não, o que nos torna semelhantes são, exatamente, as semelhanças que temos uns com os outros, como a capacidade de amar, odiar, rir, chorar, se alegrar, sofrer... Talvez isso seja viver em comum, ou seja, conviver. Porque o tu não é tão diferente do eu.

Estamos condenados pela nossa existência humana a conviver com os seres humanos. E só há possibilidade de se reconhecer como humano, ou seja, de que sou isso e não outra coisa, e que portanto estamos, todos, passíveis de erros e acertos, sentimentos nobres e maléficos, no outro. Porque o outro não é diferente, e por não ser diferente torna-se semelhante e é esta semelhança, que, de forma inexorável e de maneira inevitável, nos sentenciam a conviver, uma maneira comum de viver a vida.
A convivência só é possível quando se reconhece e compreende de que somos feitos da mesma coisa e que portanto isso nos torna familiares.

Se somos feitos da mesma coisa temos virtudes, defeitos, patologias, sentimentos... E se tenho isso o outro também têm! Mas o grande problema, e uma das barreiras para a convivência, é não aceitar no outro aquilo que há em nós. A isso a psicologia profunda chama de projeções - é a capacidade de projetar ou transferir para o outro aquilo que vai no íntimo da personalidade como sentimentos e frustrações. Vê-se no outro aquilo que não gostaria de ver em si mesmo, atribuindo ao outro aquilo que não quer admitir para si. Alguém que, por exemplo, não conseguiu perdoar uma pessoa por um erro que cometeu têm a tendência de não acreditar em ninguém que esteja pedindo perdão. Esta é uma barreira psicológica à concretização da convivência porque em vez da tolerância a intolerância, a cooperação a competição, o amor o ódio, o altruísmo o egoísmo, o perdão o rancor e a mágoa.

Somos feitos para a convivência. Se olharmos para a epopéia de Gênesis 2,18 ("não é bom que o homem esteja só") veremos que ao ser humano foi lhe dado a dimensão da convivência. Agora ele não apenas vive, mas convive - vive em comum com o outro com defeitos e qualidades, erros e acertos. O eu tem um eco no tu, e isso nos define como irmãos.

Está aí o grande diferencial da Igreja - proporcionar a convivência entre os humanos, esta é a dimensão eclesial. E para a Igreja a fonte da convivência é o próprio Cristo. Uma vez batizados e participantes da comunidade de fé a convivência é estabelecida porque todos estão nele.