30.12.15

FAÇA NOVO O TEU ANO

Neste Ano Novo, se faça novo, reduza a ansiedade, regue de ternura os sentimentos mais profundos; imprima a seus passos o ritmo das tartarugas e a leveza das garças.

Não se mire nos outros; a inveja mina a autoestima, fomenta o ressentimento e abre, no centro do coração, o buraco no qual se precipita o próprio invejoso.

Espelhe-se em si mesmo, assuma seus talentos, acredite em sua criatividade, abrace com amor sua singularidade. Evite, porém, o olhar narcísico. Seja solidário: estenda aos outros as mãos e oxigene a própria vida. Não seja refém de seu egoísmo.

Cuide do que fala. Não professe difamações e injúrias. O ódio destrói a quem odeia, não o odiado. Troque a maledicência pela benevolência. Comprometa-se a expressar alguns elogios por dia. Sua saúde espiritual agradecerá.

Não desperdice a existência hipnotizado pela TV ou navegando aleatoriamente pela internet, naufragado no turbilhão de imagens e informações que não consegue sintetizar. Não deixe que a sedução da mídia anule sua capacidade de discernir e o transforme em consumista compulsivo. A publicidade sugere felicidade e, no entanto, nada oferece senão prazeres momentâneos.

Centre sua vida em bens infinitos, nunca nos finitos. Leia muito, reflita, ouse buscar o silêncio neste mundo ruidoso. Lá encontrará a si mesmo e, com certeza, um Outro que vive em você e que quase nunca é escutado.

Cuide da saúde, mas sem a obsessão dos anoréticos e a compulsão dos que devoram alimentos com os olhos. Caminhe, pratique exercícios, sem descuidar de aceitar as suas rugas e não temer as marcas do tempo em seu corpo. Frequente também uma academia de malhar o espírito. E passe nele os cremes revitalizadores da generosidade e da compaixão.

Não dê importância ao que é fugaz, nem confunda o urgente com o prioritário. Não se deixe guiar pelos modismos. Faça como Sócrates, observe quantas coisas são oferecidas nas lojas que você não precisa para ser feliz. Jamais deixe passar um dia sem um momento de oração.

Arranque de sua mente todos os preconceitos e, de suas atitudes, todas as discriminações. Seja tolerante, coloque-se no lugar do outro. Todo ser humano é o centro do Universo e morada viva de Deus. Antes, indague a si mesmo por que, às vezes, provocamos, nos outros, antipatia, rejeição, desgosto. Revista-se de alegria e descontração. A vida é breve e, de definitivo, só conhece a morte.

Guarde um espaço em seu dia a dia para conectar-se com o Transcendente. Deixe que Deus acampe em sua subjetividade. Aprenda a fechar os olhos para ver melhor.

(Frei Betto)

19.12.15

VIDA – O QUE DEVERIA SER E O QUE É

Assumir a vida com suas ambiguidades não é tarefa muito fácil. Fazer o processo da reflexão a partir da existência sem subterfúgios alienantes como, a meu ver, o dinheiro e, em alguns casos ou na maioria deles, a religião como fuga da realidade circundante é um desafio.
Quem se propõe a pensar a vida como ela é – como Nelson Rodrigues costumava dizer –, é o Qohélet (Eclesiastes), literatura sapiencial da Bíblia Hebraica que entrou no cânon judaico com muita desconfiança e descrédito. Um texto repleto de sentenças onde a acidez da vida se sobressai e o futuro é incerto e a atividade humana com todas as suas ocupações, principalmente o acumulo de riqueza é hebel, ou seja, puro vapor, passageiro e efêmero. O Qohélet busca por algo que possa ser tangível, só não trata da existência de Deus, no mais ele discuti com perspicácia as vicissitudes da vida. Ele não é profeta, muito menos moralista, é alguém que procura enxergar a discrepância entre o que foi ensinado e o que acontece de fato. Daí o seu pessimismo em relação aos discursos prontos de contentamento.
No caso de Nietzsche, a vida para ele é como Lulu Santos já profetizou: nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará. A vida vem em ondas como o mar, num indo e vindo infinito.
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche expõe três transformações que representa a passagem para encarar a vida de outra maneira: o camelo – corre carregado do peso existencial insuportável, trata-se da solidão, da angústia no deserto; o leão – a força, o desejo da liberdade do sentido, o tomar a vida pelas mãos; e o menino – metáfora da liberdade e da reconstrução, inocência, um começo, um brinquedo. Na metáfora do menino nasce um novo ser, em que a justiça, o amor, a vida, o lúdico estão presentes. Com a figura do menino, Nietzsche quer a realização de uma vida sem rancor pela vida, sem ciúme, é o dizer sim à vida e suas contingências, é amar a sua realidade em todas as suas manifestações para que possa se transformar em leão com a leveza do menino.
A contribuição de Qohélet e Nietzsche se dá a partir de um olhar para a vida com coragem e, ao mesmo tempo, com amor.
O Qohélet não está preocupado com a retribuição do bem ou do mal, ele está observando a vida e dela tira conclusões muito óbvias: porque o destino do homem é o destino dos animais, e a mesma desgraça os espera: como morre um, assim morre o outro. A morte é aniquilação, não retribuição. O Qohélet não espera recompensa para os supostos méritos em vida; todos tem o mesmo destino, ou seja, assim é a consequência da vida.
Em outro momento Qohélet faz uma leitura do mundo que para alguns soaria fatalista demais: vi debaixo do sol que não é dos ligeiros a carreira, nem dos fortes a batalha, nem tampouco dos sábios o pão, nem tampouco dos prudentes as riquezas, nem tampouco dos entendidos o favor, mas que o tempo e a oportunidade ocorrem a todos. Que também o homem não sabe o seu tempo; assim como os peixes que se pescam com a rede maligna, e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enlaçam também os filhos dos homens no mau tempo, quando cai de repente sobre eles. Aqui há, para usar uma linguagem nietzschiana, uma transvaloração da moral, ou seja, de que os justos sofrem e os maus são recompensados. A vida é para ser vivida com sua acidez que provoca angústias e desconforto, mas é neste sentido que se dá a vida como ela é, ou seja, não há nada de novo debaixo do sol, as coisas vem e vão, surge e desaparece, nasce e morre. Assumindo a vida com suas ambiguidades, o ser humano pode entender que todo o trabalho é para a sua boca e, no entanto, seu apetite nunca estará satisfeito.
O pessimismo é um recurso filosófico de Qohélet, uma vez que ele acentua o aspecto negativo da vida e não vê nenhum sentido positivo para o curso da história. Ele vê a vida e o elemento mais significativo dela, pelo menos no seu tempo, o trabalho e conclui: quando avaliei tudo o que minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há nenhum proveito no que se faz debaixo do sol. Para Qohélet a vida é cheia de futilidades e aspirações inúteis, ou seja, hebel – vento. Chegar a essa conclusão é, por si só, uma afirmação da vida.

31.10.15

A REFORMA, NOSSA REFORMA!

Há 498 anos, na cidade de Wittemberg, Martin Lutero pregou suas 95 teses. Esse evento é conhecido como ponto inicial da chamada Reforma Protestante. Partindo da perspectiva triunfalista da história, Lutero é tratado como o grande divisor d’águas e herói do protestantismo, e todo o processo da reforma do séc. XVI é visto como uma verdadeira epopeia. Dessa forma, e como é comum nas nossas datações comemorativas, fazem do dia 31 de outubro um illud tempus (tempo sagrado, tempo originário ou tempo mítico) e da Alemanha um axis mundi (centro do mundo mítico). Não quero desqualificar a participação do monge agostiniano, mas simplesmente sinalizar exatamente sua contribuição na história de longa duração para reforma da igreja cristã, a qual não começa e muito menos termina na Alemanha.

Para ser mais claro, o dia 31 de outubro foi como uma espuma na beira da praia precedida por ondas de ideias e movimentos religiosos da história da Igreja. Como bem disse Le Goff, “a Nova História mostra que esses ‘grandes acontecimentos’ são em geral apenas a nuvem – muitas vezes sangrentas – levantadas pelos verdadeiros acontecimentos sobrevindos antes desses, isto é, as mutações profundas da história”.

Atrás de Lutero temos, por exemplo, os Goliardos, que carnavalizavam, como diria M. Bakhtin, a igreja oficial com indisciplinas e sátiras. Nas costas luteranas temos outros como Guilhermo de Ockham, que já dizia, bem antes de Lutero, que a moralidade do ser humano não depende da sua própria ação, mas da aceitação da vontade de Deus/graça de Deus que pode santificar antes que haja o arrependimento. Em seu “Brevilóquio Sobre o Princípio Tirânico”, Ockham, por incrível que pareça, já questionava o poder papal e sua tradição. Como ilustração, também, cabe aqui o caso de Orleans, em 1022 d.C, quando 14 clérigos da alta hierarquia foram queimados por questionarem a graça do batismo, a eucaristia, a remissão dos pecados mortais e outros pontos importantes do Cristianismo medievo. O que falar dos Cátaros, um grupo de “hereges” proclamadores da centralidade do Novo Testamento para experiência da fé? Não podemos esquecer também dos Valdenses que deixariam qualquer reformado boquiaberto em relação à valorização das Escrituras. Devemos lembrar também dos Místicos – dos quais Lutero foi grandemente devedor – com suas regras e direta relação com o Deus da Bíblia. Na mesma lista temos Wycliffe, Huss e Savonarola que dispensam comentários.

Lutero foi uma ponta do iceberg, favorecido por contextos social, cultural, econômico e religioso propícios para o desencadeamento de ondas transformadoras iniciadas na Europa e expandidas para todo o mundo, criando não somente novos cristianismos (se assim posso dizer), mas também outras formas de pensar a vida e o homem na arte, na política, na economia etc.

Se em Lutero não temos o início da Reforma, muito menos encontramos nele o fim. O a posteriori do dia 31 contribuiu para a formulação do processo da Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria. Depois de 1517 a história da Igreja Cristã também foi presenteada com grupos de alas mais radicais e revolucionárias, como, por exemplo, os anabatistas, que inquestionavelmente continuaram o processo reformador.

Minha intenção não é negar o evento “Lutero”, mas colocá-lo no seu devido lugar, como um momento na linha histórica, muito grande por sinal, que ainda não tem o seu ponto final, pois a proposição de Gisbertus Voetius (1589-1676) ,“Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” (Igreja reformada, sempre se reformando) está muito viva, mesmo que fora de seu contexto, e deve ser levada até às últimas consequências.

Por isso, nós também estamos no bojo do "Semper Reformanda Est", porque o dia 31 de outubro de 1517 e os séculos posteriores não são o fim do processo. Existe ainda muita covardia em voltar às Escrituras por medo de perder o poder sobre as massas piedosas; insiste entre nós a negação, em vários contextos, da segurança unicamente na graça, por causa da presença de diversos tipos de legalismos; encontramos ali e acolá artifícios fracos ladeando a fé; ainda se preservam, em muitos níveis, objetos e rudimentos além do Cristo; e vários que canalizam a glória para si, utilizando os mais ardis artifícios do mundo evangélico. Exatamente por essas coisas sou cônscio de que os desafios ainda estão bem vivos e a Reforma em andamento.

(Kenner Roger Cazotto Terra)

8.10.15

UMA REFORMA QUE NÃO ACONTECEU: OS HOLANDESES NO BRASIL

Esse ano a Reforma Protestante completa 498 anos (31 de Outubro de 1517). A contagem regressiva para os 500 anos da Reforma Protestante está dada, um feito histórico que definiu os rumos do cristianismo e favoreceu mudanças em diferentes vertentes da sociedade. Indubitavelmente a Reforma abrigou aspectos que não são plausíveis, como as guerras religiosas, mas também favoreceu abertura de caminhos que o mundo contemporâneo ainda respira suas “conquistas”.

No Brasil a Reforma bateu à sua porta por duas ocasiões, antes da inserção definitiva do comumente denominado protestantismo(s) de missão.

A primeira se deu com a chegada dos huguenotes – calvinistas franceses. Na França as batalhas religiosas provocaram inúmeras mortes, como a mais sangrenta delas, conhecida como o massacre de São Bartolomeu. Além disso, as disputas e conflitos entre católicos e protestantes agravaram a instabilidade política e econômica do país. É dentro desse contexto que Nicolau Durand de Villegagnon chega à baía de Guanabara em 1555 com o sonho de fundar no Brasil a França Antártica. Tal empreitada não obteve êxito principalmente por disputas internas entre Villegagnon e os pastores, enviados e recomendados por Calvino, envolvendo questões doutrinárias como a transubstanciação, por exemplo. De um modo geral, as disputas entre os calvinistas franceses e Villegagnon envolviam prestígio pessoal e questões políticas.

A segunda presença de protestantes no país se deu com os holandeses.

Um país dominado pela Espanha, a Holanda também enfrentou conflitos envolvendo católicos e protestantes. Depois da Revolta dos Camponeses, os holandeses se revoltam contra o rei espanhol, Felipe II. Abraçam o calvinismo e a liberdade que almejavam, destituindo assim um sistema absolutista.

Nesse tempo, a Holanda é um país com ares de liberdade religiosa, recebendo grupos de outros países que buscavam vivenciar a fé fugindo da perseguição religiosa. Entre eles estão os anabatistas e depois os batistas (1609). Por esse tempo convivem luteranos, bem como anabatistas e calvinistas.

É dentro de um contexto de guerra, que os holandeses se lançam ao mar a fim de pilhar riquezas dos espanhóis. Assim, chegam ao Brasil em 1630. Estabelecem o comércio no país e dão enormes prejuízos aos espanhóis e portugueses quando capturam seus navios.

Os holandeses, ao que parecia, possuíam condições favoráveis para estabelecer uma colônia bem sucedida no Brasil. Dois motivos eram bem claros: comércio e propagação da fé reformada.

Uma vez no Brasil, há registros de tolerância religiosa entre reformados e católicos, com alguns excessos de ambos os lados, mas ainda assim os católicos poderiam exercer sua religião de maneira livre nos seus espaços. Diferente da posição portuguesa, que não admitia nenhuma outra expressão religiosa que não fosse católica.

Um dos principais objetivos dos holandeses reformados no Brasil foi à evangelização dos nativos. Para isso, enviavam líderes nativos para serem educados na Holanda a fim de voltarem e continuarem a propagação da fé reformada. Entre esses estão Pedro Poti, um dos líderes mais destacado nessa face de evangelização holandesa no país.

A reforma que não aconteceu de maneira concreta, contribuiu para o avanço da economia, ciências, artes e liberdade religiosa. Foram os primeiros a desenvolver literatura religiosa em três idiomas (holandês, tupi e português).

Um período de guerras e traições culminou na retirada dos holandeses em 1654. Quando os católicos procuram recristianizar o território até então ocupado pelos holandeses, se dão conta do projeto político, econômico, educacional e social que a pequena reforma deixou no território. O padre Antônio Vieira, chegando lá para tal trabalho, se depara com algo assim: “uma verdadeira Genebra de todos os sertões do Brasil, porque muitos dos índios pernambucanos foram nascidos e criados entre os holandeses”.

A proposta da reforma impetrada pelos holandeses deixaram os padres atônitos com o que viram. Os trajes com que se vestiam e a capacidade de ler e escrever. Além disso, o aspecto religioso era notório na fé reformada. Era outro modelo de inculturação, diferente do modus operandi dos portugueses.

Diferente dos huguenotes, os holandeses deixaram uma marca, favorecendo uma mentalidade cristã reformada entre os nativos do Brasil.

Em uma época onde a questão religiosa era tão impregnada com as demais áreas da vida em sociedade, sem a presença do secularismo contemporâneo, os holandeses no Brasil demonstraram o espírito reformado, deixando uma clara diferença entre os dois modelos de colonização e religião quando comparado ao português.

31.8.15

“EXAMINE-SE”– (CEIA EM 1CO 11)

É algo recorrente. Ceia (celebração da comunhão) como um momento de segregação. Segrega-se quem pode e quem não pode participar em cima de critérios que são passíveis de serem desqualificados.

O denominacionalismo criou formas distintas de celebrar a ceia (que prefiro chamar de comunhão). Cada denominação pratica a celebração de forma diferente e com conceitos variados. Como sacramento (Santa Ceia) e como memorial (Ceia do Senhor). O denominacionalismo também restringiu a participação na mesa da comunhão como mecanismo de censura para alguns grupos ou comportamentos. A Igreja Católica, por exemplo, está discutindo a participação ou não de divorciados na Eucaristia. No caso das igrejas históricas a censura se dá pelo medo e pela culpa. No momento da celebração há um pedido para que os que forem participar fiquem de pé. Logo já se percebe quem irá participar ou não. O irmão/irmã não tem nem mesmo “chance” de se levantar com os demais, se achar que não deve participar. Além disso, é feita uma leitura do texto de 1Co 11 onde se valoriza mais ainda o versículo 28: “examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice”. Aqui é colocado um peso moralista ao ponto de constranger os participantes a não comer e beber do que propriamente como um momento de celebração. Geralmente o “examine-se” se dá em cima de pecados, erros cometidos naquele dia ou semana.

Há algum impedimento para não participar da comunhão?

Talvez o batismo, lembrará alguém. Sim, o denominacionalismo nos ensinou que só participa da Ceia do Senhor que for batizad@. Há algum texto bíblico para isso? Não. Mas também é sabido que o batismo nas primeiras comunidades era algo inerente à caminhada com Cristo. Logo, é possível que todos que participavam da comunhão eram batizados ou logo foram. Algo bem específico está na Didaqué, onde há instrução quanto aos participantes da ceia de que deveriam ser batizados (“Ninguém coma nem beba de vossa Eucaristia, se não estiver batizado em nome do Senhor. Pois a respeito dela disse o Senhor: não deis as coisas santas aos cães”). Mas o contexto é de falsidade, onde havia um temor quanto aos verdadeiros membros da comunidade. No Novo Testamento (NT) não há nada em específico quanto na Didaqué (considerada a primeira formulação doutrinária dos primeiros cristãos).

Mas há algo em 1Co 11 que impede a participação na comunhão.

O que seria participar de maneira indigna? Participar de maneira descuidada, sem perceber que se trata da comunhão com Cristo e seu corpo (a igreja). O indigno é alguém que ainda não entendeu que a celebração da comunhão é participação na vida comunitária. Era o caso dos irmãos em 1Co 11. Muitos estavam comendo e bebendo (ficando bêbados mesmo, pois se tratava de vinho) sem esperar o outro, sem experimentar uma comunhão; sem perceber de que aquele momento era ajuntamento de uma gente que caminhava em comunidade.

A esses que assim faziam, o apóstolo pede para que se examine. Trata-se de ver algum pecado específico? A questão está no versículo 29: “discernir o corpo”. Para alguns se trata do corpo de Cristo mesmo, sendo possível pecar contra o seu sangue e corpo. O examine-se seria por não entender que se tratava dos símbolos da morte de Cristo. Aqui acompanho alguns comentaristas que entendem se tratar do corpo-igreja. O “examine-se” trata de uma postura quanto à participação. Não se trata de perfeição alcançada e aí sim participar da comunhão. Antes, trata-se de alguém que não entendeu o que é o ajuntamento do corpo de Cristo (a igreja, um tema desenvolvido por Paulo no capítulo 12). Daí que discernir (fazer um juízo correto sobre alguma coisa), é respeitar a comunidade reunida em torno da mesa; considerando que tal momento é propício para a celebração da comunhão com o outro. Assim, quem despreza os membros da comunidade menos favorecidos, também despreza a Cristo e ainda não entendeu a natureza de ser comunidade. Comer e beber na cultura do NT é algo bem diferente que comer e beber no contexto ocidental. Lá, não se trata de uma simples reunião entre amig@s, mas sim de relacionamentos; estreitamento de comunhão. Estar à mesa com o outro é mais que comida, é celebração de vida.

A questão do examina-se se dá quanto à compreensão do outro, não de si mesmo e as possíveis culpas geradas por um sistema religioso opressor. É celebração de vida; celebração de uma comunidade que já experimenta a realidade da ressurreição. Para isso ser possível, é preciso discernir quanto ao que se trata o ajuntamento da comunidade e isso se dá pelo exame, ou seja, perceber que a comunhão é com gente e o comer e beber é um meio para celebrar a presença de Cristo no meio da comunidade de fé.

Referências

BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008.
DIDAQUÉ: catecismo dos primeiros cristãos. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Estudos no Novo Testamento. São Paulo: Academia Cristã, 2006.
LOPES, Augustus Nicodemus. O culto espiritual: um estudo em 1Coríntios sobre questões atuais e diretrizes bíblicas para o culto cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.

26.8.15

NOVO TESTAMENTO: DIFICULDADES QUANTO A SUA "INSPIRAÇÃO"

Recorrentemente manuais de Teologia Sistemática (TS) afirmam que o Novo Testamento é inspirado. Palavra grega de difícil precisão (theopneustos) usada exclusivamente em 2Tm 3,16. Termo, sabidamente, grego, uma vez que a concepção helênica de theopneustos carrega um sentido extático.

A preocupação da TS com o Novo Testamento (NT), nesse sentido de inspiração, se dá em relação ao texto da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento). Entende-se que precisa de credibilidade para que o mesmo possa ter status de “revelação”. Se os textos do NT não forem inspirados, no sentido de Escrituras, o esboço teológico construído a partir dele poderia estar comprometido.

Definitivamente para a TS não se trata de um conjunto de textos que foram sendo concatenados com o tempo, sendo um dos propósitos, alimentar a caminhada de uma gente a partir da memória de Jesus e dos Apóstolos. Isso com todos os problemas advindos das traduções e cópias do NT, tema que a Crítica Textual debate.

Fato é que a palavra Escritura, num primeiro momento, não tem um sentido teológico. Quer apenas significar grafia ou escrever. O entendimento de “escritos sagrados” se dá no helenismo, com os registros dos templos ou livros de magia. Entrando aqui cartas e decretos do Imperador, por ser alguém “semidivino”.

Para a Bíblia Hebraica Escritura é katab, escrever. Depois haverá toda uma reflexão em torno da escrita como sagrada.

Quando a TS trata de inspiração das Escrituras coloca em igualdade o Antigo Testamento (Bíblia Hebraica) e os escritos (textos) do NT. Argumentam que “o Novo Testamento, à semelhança do Antigo, reivindica a virtude de ser Escritura Sagrada, escrito profético, e toda a Escritura e todos os escritos proféticos devem ser considerados inspirados por Deus”. Nesse enunciado há uma postura igualitária entre o Antigo e o Novo Testamento quanto à sua natureza de Escritura, agora com o sentido teológico definido. Outra questão é que o Novo Testamento reivindica, ou seja, não há algo tão claro, mas é algo implícito. Essa reivindicação se dá porque o texto do NT é profético.

Quando a TS trata de 2Tm 3,16, admite que se trata do Antigo Testamento. Isso porque todas as vezes que a palavra Escritura aparece no NT está se referindo exclusivamente à Bíblia Hebraica (AT) e não ao NT – “E, começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lc 24,27). Como não há outro termo para lidar com isso, recorre-se a 2Pe 3,16 a fim de validar o NT frente ao Antigo quanto à sua inspiração. Por mais que esse argumento seja levado em consideração, há um problema: apenas as “cartas de Paulo” seriam inspiradas? E os Evangelhos Sinóticos? E o Evangelho de João? Hebreus? Lucas e Atos dos Apóstolos?

Outro argumento se dá com o texto de 1Tm 5,18 onde parte do versículo está em Lucas 10,7. Isso ratifica de que há status de Escritura no Evangelho de Lucas. Se esse argumento servir para dar credibilidade ao Evangelho de Lucas, deveria haver outros textos que fizessem o mesmo com o restante do NT e, sabidamente, não há.

Quanto ao texto de 2Pe 1,20-21 não há consenso de que se trate do NT, apenas do Antigo Testamento e sua condição interpretativa.

Parece que o NT não reivindica uma condição de inspiração. Não se trata de um tema explícito em relação ao status do Antigo Testamento. Os textos que a TS trata para dar status de inspiração ao NT são discutíveis quanto ao seu alcance exegético.

A necessidade apologética de reivindicar inspiração para o NT não se sustenta dentro do NT. Uma necessidade dogmatizante não pode anular a construção literária do NT.

Os primeiros cristãos não tinham interesse em escrever algo “deles” porque tinham as Escrituras (AT). Outra razão, eles tinham a mensagem do Reino de Deus proclamada por Jesus. Além disso, as primeiras comunidades cristãs eram fortemente escatológicas, ou seja, esperavam o fim iminente de “todas as coisas”. Com isso, não havia uma preocupação em querer escrever algo como Escritura para as demais gerações.

Teologicamente o NT tem autoridade apostólica, ou seja, ele está “baseado” nos ensinos dos apóstolos. Essa concepção se dá, principalmente, em escritos tardios do NT (At 2,42; Ef 2,20 e 3,5; 2Pe 3,2).

22.7.15

E A IGREJA FICOU ASSIM... (MAS NÃO ERA PARA SER)

O movimento batista no Brasil tem a marca indelével do ethos dos batistas do sul dos Estados Unidos.

Aqui, imbuídos de um ímpeto missionário, trouxeram o evangelho e com ele o modo de evangelizar e doutrinar, além de ensinarem como cultuar (liturgia).

A eclesiologia batista tem (teve) a marca da presença batista estadunidense.

Uma eclesiologia centrada no culto-templo, no domingo e no pastor. Assim, nada ocorre fora do templo, e culto mesmo, apenas no templo; o domingo como dia sagrado, e profaná-lo é sacrilégio; o pastor é visto como sacerdote, embora o protestantismo tenha aparecido na história do cristianismo como defensor do sacerdócio universal de todos os crentes, algo que ficou na sua versão 1.0, lá e cá.

Algumas consequências dessa maneira de enxergar e viver igreja contribuiu para que pessoas entendessem igreja como um lugar (templo) e não gente. Levou a compreender que culto acontece apenas no templo e no domingo, fato que torna o pastor indispensável, uma vez que ele (único?) é qualificado para tal tarefa.

Em síntese, a igreja se transformou em um momento no fim de semana; uma tarefa que precisa ser desempenhada; um servir que virou sinônimo de fazer algo (onde?) na igreja-templo.

A presença de Ralph W. Neighbour Jr. em Presidente Prudente/SP, por ocasião da Semana Batista, foi interessante. Apesar de conhecê-lo como um mentor da Igreja em Células, ouvir a sua experiência eclesial como pastor batista e seus desafios em levar adiante os ideais comunitários do Novo Testamento foi revigorante.

O pastor Ralph é alguém que viveu os milímetros da denominação (Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos) e, portanto, conhece bem a teologia e o modus operandi dos batistas do sul dos EUA.

É alguém que sofreu um processo de desligamento de sua própria denominação por querer ensinar algo que, desde que o Novo Testamento é Bíblia para os cristãos, está lá, ou seja, uma igreja pautada em relacionamentos, não em estruturas, programas e eventos.

Em Presidente Prudente/SP, o pastor Ralph W. Neighbour Jr. falou de como as igrejas deixaram de lado o Novo Testamento. Essa fala foi contundente, principalmente porque os batistas acreditam ser um ramo do protestantismo histórico que propaga, com maior fidelidade, os ensinos da Bíblia, mas principalmente os do Novo Testamento.  

Com uma mensagem pautada em trechos fundamentais da eclesiologia neotestamentária, Ralph pontuou uma palavra que trouxe confronto para todos ali, principalmente para um público acostumado a ver igreja como pedra e cimento e ainda como promotora de eventos e programas.

Uma igreja onde o pastor é o responsável maior por trazer pessoas para a igreja-templo, Ralph deixou claro de que o Novo Testamento não ensina sobre o "aceitar Jesus" e muito menos o tal "Deus tem um plano para a sua vida". Antes, a principal mensagem do Novo Testamento para a igreja é ser corpo de Cristo.

De todas as falas do pastor Ralph, a mais impactante foi essa: “a igreja no seu sistema tradicional não produz nenhum cristão maduro”. Infelizmente isso ainda é um fato. 

8.7.15

LIBERTAS, OMNIUM: OS BATISTAS E A LIBERDADE RELIGIOSA

O Jornal Batista (CBB) de 05.07.2015 foi histórico.

Diante de um acontecimento desagradável com a menina Kaillane (11 anos) que sofreu agressão por estar saindo de uma cerimônia religiosa do candomblé, irmãos e pastores batistas fizeram uma manifestação contra a intolerância religiosa, repudiando não apenas o ato agressivo contra a menina Kaillane, como também qualquer discriminação e preconceito a religiosidade do outro. A manifestação ocorreu no Rio de Janeiro, cidade da Kaillane, e, além de outros pastores presentes, o Pr. João Luiz Sá Melo (pastor na Primeira Igreja Batista em Vila da Penha, bairro da menina Kaillane), marcou a sua presença nesse ato em prol a liberdade religiosa. O Jornal Batista dedicou uma edição para não só tratar desse tema, liberdade de crença, como também questões ligadas ao movimento LGBT, Ensino Religioso e Racismo. Definitivamente uma edição que representa a trajetória dos batistas e a defesa de seus princípios, entre eles a liberdade religiosa, para todos.

Os batistas, historicamente, surgem na Inglaterra do século XVII. Em meio à efervescência de movimentos emancipatórios que tem na filosofia de John Locke, por exemplo, um discurso libertário, os batistas têm traços constituídos por princípios, sendo que, em meio a princípios teológicos, os principais princípios são político-filosóficos.

Somos filhos do liberalismo inglês.

O liberalismo é uma reação ao absolutismo.

Um dos principais expoentes do liberalismo político foi, indubitavelmente, John Locke.

Na Inglaterra o apogeu do absolutismo se deu com o rei Henrique VIII, que com o apoio do Parlamento inglês, que na sua maioria eram burgueses, concentrou o poder nas mãos do rei.

Nesse cenário político, Locke foi um ferrenho defensor da liberdade civil e religiosa. Para ele “os homens são todos, por natureza, livres, iguais e independentes, e ninguém pode ser despossuído de seus bens nem submetido ao poder político sem seu consentimento”.

Os batistas são herdeiros desse pensamento e, como tal, em seus princípios a liberdade religiosa (para si mesmo, num primeiro momento como recurso de sobrevivência) e a separação entre Igreja e Estado se tornam duas lutas que custaram vidas, entre elas a de Thomas Helwys. Arguto para o seu tempo, Helwys foi um defensor da liberdade religiosa e, por isso, enfrentou o rei.

Isso nos mostra de como os batistas não podem abrir mão de sua gênese, daquilo que fizeram os ancestrais enfrentar a prisão e a morte. O autor de Uma breve declaração do mistério da iniquidade endereçou seu texto ao rei Tiago I e por isso a prisão foi sua última “casa”. Razão para isso? Em um regime absolutista nenhum rei gostaria de ver alguém propagando ideias como essas: “o rei é um homem mortal, e não Deus [...] não tem poder sobre as almas imortais dos seus súditos”.

Helwys defendeu até o último momento de sua vida a liberdade religiosa para todos: “que sejam heréticos, turcos, judeus ou o que quer que sejam, não compete a qualquer poder terreno puni-los na menor medida que seja”. Helwys morre em uma prisão em 1616.

Não podemos ser apenas tolerantes com a religião do outro. Há uma diferença entre liberdade religiosa e tolerância religiosa. É Walter B. Shurden quem esclarece isso: “a tolerância religiosa é apenas uma concessão; a liberdade religiosa é um direito”.

A manifestação envolvendo batistas no Rio de Janeiro está perfeitamente dentro do movimento batista em prol da liberdade religiosa na história.

É preciso, honestamente, reconhecer e lutar para que cada um tenha o seu direito garantido de viver a sua fé e religiosidade. Não é possível, principalmente entre os batistas que priorizam os seus princípios, respeitar e fazer respeitar a religião do outro.

Com isso não se afirma que nenhuma religião está fora da crítica ética e teológica, nem mesmo a nossa. Mas não é concebível a partir de uma perspectiva de liberdade religiosa o falar mal da outra religião por ser religião, insultando seus pressupostos. Dentro de um Estado democrático e republicano, cabe à crítica, a avaliação argumentativa, a pesquisa das estruturas religiosas, mas não cabe a dicotomia religiosa onde um acha que a sua religião é melhor do que a do outro.  

Como batistas que tem uma tradição em defesa da liberdade do indivíduo e religiosa, poderíamos ser protagonistas não apenas em situações como da menina Kaillane, mas em um Estado democrático de direito levantar essa bandeira o mais alto que puder. 

15.6.15

ENSINO RELIGIOSO: IMPLICAÇÕES A PARTIR DA PLURALIDADE RELIGIOSA

O Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma Audiência Pública hoje (15.06.2015) para tratar da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de n.º 4439, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR), e que questiona o Ensino Religioso (ER) confessional – aquele vinculado a uma religião específica nas escolas da rede oficial de ensino do país. A PGR defende que o ensino religioso deve ser ministrado de forma laica, sob um contexto histórico e abordando a perspectiva das várias religiões. Há quem seja contrário a presença do ER nas escolas por entender que a religião está presente nas diferentes esferas do espaço público.

De fato um tema controverso e dinâmico.

Afinal, é possível ensinar religião? Como lidar com a diversidade de religiosidades existentes na sala de aula? São questões válidas quando um tema tão polissêmico como é a religião é proposto em sala de aula. Mesmo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) indicando o que se pretende com o ER em sala de aula – culturas e religiões, escrituras sagradas, teologias, ritos e ethos –, não é consenso quanto ao conteúdo do ER nas escolas públicas. Quando os PCNs traz o conceito de religião, ele está se referindo às tradições religiosas ou/e grupos religiosos?  

O termo religião nos PCNs abarca aquilo que corresponde à história das religiões: símbolos, costumes, crenças, doutrinas, presença no mundo. Esse tratamento da religião que os PCNs propõem pode ser trabalhado pelo professor(a) do ER com um olhar objetivo, lógico e verificador? É uma exigência isonômica que ultrapassa as condições teóricas e epistemológicas do professor(a). O fato de pretender apresentar o modus operandi das religiões, suas diferenças, suas teologias, suas expressões e seus elementos peculiares, na tentativa de ensinar religião mais próxima da neutralidade (se é que isso seja possível), traz o desafio de conhecer todas as religiões que irá ensinar o que, representa por si só, já se dá em um grande obstáculo.

Isso acarreta uma extrema dificuldade por serem as religiões entre si e internamente, contraditórias. Elas trazem propostas diferentes e a neutralidade não seria obtida como pretende os PCNs. É nesse sentido que Iuri Andréas Reblin chama atenção: 

É impossível somar todas as religiões e engarrafá-las num mesmo recipiente, pois elas têm propostas diferentes, às vezes, propostas que ‘conflitam’ diretamente umas com as outras. Não é possível dizer que Jesus é igual a Buda que é igual a Alá, pois não são. Há em jogo aqui a questão da identidade, da alteridade, da diversidade e, sobretudo, da relação que se estabelece entre esses elementos. Além disso, existem as vertentes ortodoxas dentro das religiões que brigam pela ‘ortopodia’ (ou o ‘caminho correto’) de se conduzir o percurso de fé.

Outra dificuldade se dá em relação ao diálogo inter-religioso e ao ecumenismo. Como o professor(a) poderá trabalhar as religiões e o diálogo entre elas em sala de aula se nem mesmo as próprias religiões resolveram essa dificuldade do diálogo inter-religioso? Entre as igrejas cristãs, o ecumenismo ainda é um tema que suscita diálogo e sofre retrocessos em diferentes denominações cristãs.

Em relação aos alun@s, como trabalhar a diversidade de expressões religiosas e suas identidades marcadas pelo ambiente familiar e, em muitos casos, pela comunidade religiosa que o alun@ é oriundo? É uma relação imbricada, multifacetada e que demanda traquejo pedagógico. “Não é possível ensinar o conteúdo das religiões como se fossem ‘caixinhas’ separadas umas das outras, porque os conteúdos dessas religiões se inter-relacionam no dia a dia das pessoas” (REBLIN). Aliada a essa dificuldade mensurável, há que se considerar que é vedado, pela Constituição e pela LDB, o proselitismo. Assim, como ensinar sobre religião visto que não é possível (e nem permitido) ensinar a vivência da fé?

Eis um tema com diferentes enfoques e que favorece a diversidade epistemológica e política. 

30.5.15

UMA IGREJA “TRADICIONALMENTE” BATISTA. SERÁ?

Saiu no jornal denominacional do Estado de São Paulo. O título da reportagem: “uma igreja tradicionalmente batista”.

Na referida reportagem a igreja se “orgulha” em ser tradicionalmente “batista” por entender algumas questões que, na sua visão, as igrejas batistas não fazem ou não são mais do jeito que essa igreja é. Daí a ênfase no “tradicionalmente”, por entender que há outras igrejas coirmãs que não são “tradicionalmente” batistas. Por isso a necessidade de serem distinguidos, diferenciados em relação às igrejas que são batistas, mas não são tradicionalmente batistas.

O que define o “ser” batista? O que uma igreja batista deveria ter e fazer? Há um parâmetro para uma Igreja ser de fato Batista? Existe uma norma, um código doutrinário que a define como Batista? Sim existe, mas isso não é uma régua eliminatória que exclui outras comunidades que não entende e não veja da mesma forma.

Para a igreja da reportagem, que se define como uma igreja tradicionalmente batista, ser batista é:

Permanecer ao longo do tempo como uma igreja realmente batista, na pregação bíblica, na preservação e busca da música sacra com excelência na letra e melodia, [...] a escola (leia-se EBD) funciona sem inovações, seguindo a agenda tradicional, que é muito eficiente, com a abertura tradicional de antigamente, em que são recitados o tema e o texto básico, e os aniversariantes são chamados à frente. São utilizadas as revistas da denominação.

Para essa igreja que se proclama tradicionalmente batista a sua definição do ser batista passa, exclusivamente, pelo modus operandi da estrutura eclesiástica.

Não apenas essa igreja, mas igrejas e pastores tem reivindicado o “tradicionalmente” para dizer que não é igual às outras igrejas. Como um sinal de identidade, igrejas como essas da reportagem buscam uma definição identitária e, se for possível (e é), desqualificar outras comunidades que não prezem pelos mesmos valores e comportamentos defendidos por uma igreja “tradicionalmente” batista.

Se o que seja “antigo” funciona como sinal de vitalidade e coerência, os batistas ingleses são os tradicionais, pois o movimento batista surge na Holanda/Inglaterra tendo sua gênese no movimento liberal inglês, eles participam dos anseios e perspectivas de sua época, ou seja, liberdade religiosa e separação entre Igreja e Estado. Esse ímpeto por liberdade levou o filósofo inglês John Locke a dizer que “os batistas foram os primeiros proponentes de uma liberdade absoluta, justa e verdadeira liberdade, liberdade igual e imparcial”. Esse intenso debate em torno da liberdade notabilizou os batistas como um grupo que lutou – a priori para a sua própria sobrevivência – contra absolutismos e posturas dogmáticas. E isso teve consequências para a sua eclesiologia, entendendo que esta deveria ser congregacional, ou seja, igrejas livres e autônomas sem vínculo com a igreja oficial. Os batistas ingleses são partidários desses ideais. Assim, seguindo uma lógica de que o antigo é o tradicional, uma igreja tradicionalmente batista deveria lutar pela liberdade em todas as esferas, política, social e teológica. Não poderia haver nenhuma tutela em termos de controle eclesiológico, político ou teológico que determinasse a dinâmica de uma comunidade.

Se a igreja da referida reportagem quer ter (e continua tendo) uma seleção musical que agrade a sua membresia; uma “escola” que siga a “agenda tradicional”, uma agenda que apenas a igreja entende, não há problema algum.

A questão é colocar a igreja como uma autêntica representante da denominação e trazer para si a marca de uma igreja que seja realmente batista por fazer e entender coisas do cotidiano de uma comunidade e seu comportamento cúltico e ético.

Sendo assim, não há nenhuma igreja que seja tradicionalmente batista.

Os batistas são fruto do seu tempo e são chamados a serem relevantes para esse tempo, assim como foram os batistas ingleses e os norte-americanos e tantos outros batistas espalhados pelo mundo. Reivindicar uma “continuidade” com o movimento batista tendo como critério maneiras de ver o culto, a liturgia e a maneira de aplicar o ensino religioso, não dá legitimidade para dizer que seja uma igreja diferentemente de outras por entender e fazer as coisas dessa ou de outra forma.

A grande marca do ser batista é a liberdade. 

17.5.15

ERA PARA SER ASSIM...

No Evangelho de Mateus há um convite para que outros possam seguir Jesus e o ápice desse convite é o capítulo 28 e seus versículos finais.

Logo no capítulo 9, 35-38, o Jesus mateano dá o tom:

Jesus ia passando por todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando as boas novas do Reino e curando todas as enfermidades e doenças.

Ao ver as multidões, teve compaixão delas, porque estavam aflitas e desamparadas, como ovelhas sem pastor.

Então disse aos seus discípulos: “A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Peçam, pois, ao Senhor da seara que envie trabalhadores para a sua seara”.

Jesus na sua caminhada preferiu a companhia dos mal cheirosos; das mulheres marginalizadas conhecidas como “pecadoras”; ele se sentava com gente que outro teria dificuldade de comer junto, cobradores de impostos e gente que ninguém gostaria de cumprimentar na rua. Esse era Jesus...

Ele pede para que outras pessoas (discípulos e discípulas) se juntem a ele, porque a “seara é grande”.

O seu principal foco era:

- Ensinar: ele ensinava sobre Deus, qual deveria ser a relação com ele, diferente dos fariseus e saduceus; ele ensinava sobre os relacionamentos interpessoais, de como deveria ser uns com os outros; ele ensinava sobre o perdão, condição imprescindível para a vida, e o amor como elemento norteador da vida.

- Anunciar: o reino de Deus, porque as relações com o reino de Deus era diferente de tudo aquilo que aquele povo compreendia. Se eles eram ensinados que havia um que era maior que o outro, no reino de Deus isso não acontecia. Se a eles eram ensinados que há privilégios para uns e outros não, no reino de Deus isso não existia. Ele focou sua caminhada em anunciar o reino de Deus.

- Libertar: a cura é sinal de libertação, de trazer as pessoas à vida; de dar condições para que vivam novamente e para isso era preciso haver saúde, alimentação, convívio.

Para essa tarefa, para essa missão, Jesus chama os seus discípulos no capítulo 10,1a:

         Chamando seus doze discípulos, deu-lhes autoridade

Ele chama esses homens (e mulheres) para acompanha-lo, para prosseguir na mesma missão que ele tem.

Ao chamar, Jesus não dita normas a serem seguidas; ele não estabelece um código doutrinário; ele não faz promessas. Ele faz questão de deixar claro que o seguimento significa ter uma relação profunda e pessoal com ele.

Ele chama para que essas pessoas continuassem o que ele começou, por isso ele os “envia” (10,5); diz para não ficar presos a estruturas financeiras (10,9-13); pedem para que eles se parecessem com ele (10,24-25).

Era para ser assim...

Quando chega o capítulo 28,18-20, há uma continuação da missão de Jesus, agora para todos.


Então, Jesus aproximou-se deles e disse: “Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”.


Jesus tem autoridade – que no evangelho de Mateus significa algo outorgado por Deus (9,6). Essa autoridade ele dá aos seus primeiros discípulos (10,1a).

Agora, ele dá essa autoridade a todos que se tornaram (e vierem a ser) discípulos dele, ou seja, que irão continuar a missão que ele começou e agora ele espera que os que se tornarão discípulos e discípulas continuem a fazer:

- Indo (e não ide), enquanto caminha, na vida do dia a dia, façam discípulos;
- Coloquem esses discípulos em comunhão (batismo);
- Ensine esses discípulos àquilo que vocês ouviram, aprenderam e vivenciaram.

Era para ser assim...

O que Jesus queria e o que fizemos do que ele queria?

Jesus                                       Nós
Indo (todos)                           Só missionários que vão
Fazer discípulos                     Fazer membros de igreja
Comunhão (batismo)              Batismo é assumir a estrutura da igreja
Ensinar                                   Doutrinar (classe de doutrina)

Não era para ser assim...

Em que momento deixamos (ou será que ainda não aprendemos?) de ser discípulos de Jesus?

28.4.15

PREDESTINAÇÃO E SALVAÇÃO

Em Cristo, Paulo centraliza todo o processo salvífico.

Embora surjam textos como desde a fundação do mundo, o fato é que o aparecimento de Cristo na história fez com que a comunidade olhasse para trás e concluíssem que de fato Deus estava no conduzindo. Mas isso não significaria nada se ele não estivesse atuando no tempo. A comunidade compreende que foi na ação histórica de Deus que se deu a sua eleição.

E essa eleição não determinou o seu curso nem suprimiu a história, mas dá à comunidade o fundamento de sua experiência no tempo como algo prioritário para Deus, quer dizer, sua eleição/predestinação, pois ela tem a sua origem na vontade salvífica de Deus — “nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e manifestada agora pelo aparecimento de nosso salvador Cristo Jesus” (2Tm 1,9-10).
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Mas é no tempo que ela se concretiza, porque foi agora que se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas. É no agora que se recebe a reconciliação através de Cristo. A história estava caminhando para um alvo divino, e neste alvo os gentios estavam incluídos.

É aqui que entra o conceito de justificação e reconciliação de Paulo. A justificação e a reconciliação seriam algo individual ou coletivo?

Os dois conceitos estão extremamente ligados. Porque um diz respeito à absolvição de todo o pecado; outro à restauração de um relacionamento com Deus. São dois conceitos teológicos que se dão no passado.

Para o apóstolo, é uma dádiva de Deus em Cristo que foi comunicada a todos (judeus e gentios). Porque o alvo não seria o indivíduo, mas uma nova humanidade.

O pecado não é mais barreira de divisão entre Deus e o ser humano, porque “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5,19). A reconciliação é um ato histórico, em Cristo, e coletivo. Sendo assim, Deus não quis reaver os pecados cometidos antes do aparecimento de Cristo na história, mas agora, com ele e sua obra, há a possibilidade de decisão (At 17,30).

Uma vez que a reconciliação e a justificação são iniciativas de Deus no aspecto coletivo, seria a predestinação algo individual?

Uma vez que a justificação e a reconciliação são bênçãos proporcionadas por Deus em Cristo de caráter coletivo e histórico, a predestinação do mesmo modo é algo dado num momento histórico com um fim exclusivamente soteriológico.

Neste sentido, a salvação é uma proposta divina à humanidade, é o sim de Deus em Cristo (2Co 1,19-20). Uma vez sendo essa resposta afirmativa à sua proposta, todas as bênçãos espirituais são realizadas plenamente. E o propósito da predestinação é concluído (Rm 8,29-30; Ef 1,4-5).

Assim como a eleição no Antigo Testamento (Bíblia Hebraica) visou o povo de Israel (Dt 7,7; 14,2), a predestinação no Novo Testamento nunca é individual, mas coletiva — a Igreja, a comunidade dos santos. Não é por acaso que a Igreja primitiva tinha ideia de constituir a raça eleita, um povo santo (1Pd 2,9).

A predestinação não poderia ser algo puramente determinista e selecionista.