30.9.16

PUREZA DOUTRINÁRIA: A VOCAÇÃO DA CBB?

A Convenção Batista Brasileira (CBB) está promovendo uma revisão na sua Declaração Doutrinária de 1986. A fim de ter a participação de membros de Igrejas Batistas filiadas à CBB, a mesma está solicitando sugestões para o texto doutrinário. É claro que a palavra final será dada por uma comissão que tem o poder do veto, fazendo uma análise sistematizadora com o intuito de avaliar a possibilidade, ou não, de agregar ao texto doutrinário a sugestão enviada.

A Declaração Doutrinária da CBB de 1986 surgiu depois que os batistas brasileiros se viram diante do fenômeno do movimento carismático da década de 1960-1980. Diante disso, se apressaram na formulação de uma Declaração Doutrinária que protegesse o grupo de possíveis desvios, como foi o caso da “doutrina do Espírito Santo”. Até então, estava em vigor “A Confissão de Fé dos Batistas Brasileiros”, toda baseada na “Confissão de Fé de New Hampshire”, adotada pela CBB em 1916 por influência de Zacarias Taylor que colocara a Confissão de New Hampshire como norma doutrinária para a sua igreja local, apenas.

À época, a CBB entendeu que alterando o texto doutrinário era o mesmo que se proteger de problemas futuros. Não se tratava de uma preocupação comunitária, mas doutrinária-ideológica com o claro objetivo de preservar o grupo maior, dando a ele um aspecto de pureza teológica.

Essa nova proposta da CBB em alterar o texto doutrinário (Declaração Doutrinária da CBB de 1986), se dá no mesmo modus operandi das décadas de 1960-1980, ou seja, se proteger dos novos desvios que surgiram nos últimos anos entre os batistas como, por exemplo, o aparecimento de apóstolos como um título supremo de autoridade conferido por um colégio “apostólico” externo à denominação; ameaças de caráter legislativo quanto à configuração da família nuclear; a ordenação de mulheres ao ministério pastoral; a discussão quanto ao recebimento ou não de homossexuais como membros. Apenas para mencionar alguns temas, embora tenha suspeitas de que este último seja o principal motivo para tal revisão, uma vez que a CBB percebeu que a sua decisão excludente no caso da Igreja Batista do Pinheiro (Maceió/AL), não encontra legitimidade teológica e política diante da atual Declaração Doutrinária.

Para aqueles que conhecem a tradição batista, não é necessário lembrar de que os batistas, na sua gênese, tiveram dificuldades em produzir tratados de fé. Alberto Yamabuchi, quando olha para a origem dos batistas, é contundente em afirmar que “os batistas tendem a desprezar até mesmo a formulação oficial de credos, confissões ou declarações de fé” (1). Mesmo com essa característica, os batistas produziram declarações doutrinárias a fim de estabelecer certa coesão na tentativa de preservar a identidade denominacional (2). Assim, a pluralidade é contestada por um discurso teológico com pretensões hegemônicas, reivindicando uma narrativa sem aberturas para o contraditório, é o caso, novamente, do que agora está se chamando de revisão da atual Declaração Doutrinária.

A pluralidade é uma marca do movimento batista. Mesmo os missionários norte-americanos tendo o domínio da narrativa de fundação, os batistas brasileiros não se submeteram, em sua minoria, ao discurso colonizador produzido e sustentado pelos missionários. Pelo contrário, “a diversidade e as divergências se constituíram o centro dessa denominação” (3).

Antes de ser uma reflexão bíblica e teológica que responda aos anseios da comunidade (embora não tenha conhecimento de que alguma Declaração ou Confissão tenha essa dimensão), a Declaração Doutrinária da CBB pretende ser um mecanismo institucional, a fim de ser o principal instrumento demarcatório de posições entre os batistas brasileiros. Mesmo que essa atual sofra alterações, como de fato irá acontecer, a Declaração Doutrinária da CBB não detém o controle da pluralidade entre os batistas brasileiros, mesmo havendo vozes que falam pela instituição, afirmando que a Declaração Doutrinária da CBB é “o documento que expõe o que os batistas brasileiros creem” (4). Afirmações como essa, ferem o princípio da liberdade entre os batistas, onde nem todos se veem contemplados em suas posições teológicas no documento. A Declaração Doutrinária da CBB, não funciona, precisamente, como um mecanismo de uniformidade doutrinária. Antes os princípios são cotados como fundamentais para o modo de ser batista e não o sistema doutrinário, uma vez que os batistas não têm, na sua história, “nenhum credo ou confissão que possa ser considerado como definitivo para a maioria dos batistas” (5).

A existência da CBB se expressa na sua “Filosofia”, quando diz: “Convenção Batista Brasileira resulta da reflexão que os batistas brasileiros fazem sobre os princípios bíblicos que sustentam a existência, a natureza e os objetivos da Convenção, como entidade que: (a) Promove o inter-relacionamento fraterno e cooperativo das igrejas a ela associadas; (b) Apoia o fortalecimento e a multiplicação das igrejas; (c) Se interessa pelo progresso e crescimento espiritual e social dos membros das igrejas; (d) Respeita a autonomia das igrejas cooperantes; (e) Administra zelosamente as entidades e instituições que cria, às quais atribui a execução de seus objetivos, programas e determinações; (f) Obedece aos padrões bíblicos de relacionamento com a sociedade, o Estado e outras igrejas”. Essas deveriam ser suas exclusivas razões. É importante salientar de que a Declaração Doutrinária não está elencada na abertura da “Filosofia da CBB”.

Quando a CBB propõe alterar/revisar o texto doutrinário, levando em consideração os últimos acontecimentos em que se envolveu, outra tentativa não é, senão, se municiar contra possíveis imprevistos que decorrem da natureza do sistema batista, ou seja, a liberdade (com todas as ambiguidades e implicações que a palavra, naturalmente, abriga). Assim, outra coisa não seria do que reafirmar o discurso de pureza, com o intuito de demarcar fronteira ad intra, delimitar abordagens, configurar enrijecimentos para um futuro que, inevitavelmente, indica dois caminhos: abertura ou fechamento diante do real e suas dimensões comunitárias.

Por trás dessa revisão no texto doutrinário, está, mais uma vez, a tentativa de marcar uma postura de pureza doutrinária. É Zygmunt Bauman que sintetiza as reais intenções de um discurso que reivindica a pureza como elemento de confronto: “A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro” (6).

Seria otimismo ingênuo esperar que a CBB, em sua revisão do texto doutrinário, não ignore a conjuntura social e seus desafios comunitários, políticos, teológicos e sociais que tem mais a ver com vida do que, propriamente, com texto doutrinário? O futuro dirá...

Notas

(1) YAMABUCHI, Alberto Kenji. O debate sobre a história das origens do trabalho batista no Brasil: uma análise das relações e dos conflitos de gênero e poder na Convenção Batista Brasileira dos anos 1960-1980. Tese de Doutorado. (Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo). São Bernardo do Campo: UMESP, 2009, p. 106.
(2) SILVA, Roberto do Amaral. Princípios e doutrinas dos batistas: os marcos de nossa fé. 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP, 2007, p. 26.
(3) ARAÚJO, João Pedro Gonçalves. Batistas: dominação e dependência. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, 109.
(4) FERREIRA, Ebenézer Soares. Explicações sobre a declaração doutrinária da CBB. In: FERREIRA, Ebenézer Soares (Org.). Comentários à declaração doutrinária da Convenção Batista Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo de Colheita, 2009, p. 9.
(5) HEWITT, Martin D. Raízes da tradição batista. São Leopoldo: IEPG, 1993, p. 11.
(6) BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 14. 

16.9.16

A DOUTRINA DA ELEIÇÃO: CALVINISMO, ARMINIANISMO E O EQUILÍBRIO DA DOUTRINA BATISTA

Jorge Pinheiro dos Santos
Pastor auxiliar na Igreja Batista em Perdizes (SP); Professor na Faculdade Teológica Batista de São Paulo

A teologia da eleição

Há teologias, como a calvinista, que olham esta questão difícil da eleição a partir do infinito, de cima, exclusivamente. E há outras teologias, como a arminiana, que olham esta questão difícil da eleição apenas a partir do finito, de baixo.

Mas há uma outra maneira de olhar a questão da eleição, a partir da humildade do reconhecimento que estamos diante de um cruzamento do divino com o humano, do infinito com o finito, daquilo que está em cima com aquilo que está em baixo. E é exatamente esta perspectiva, humilde, bíblica e, por isso, doutrinária que orienta o pensamento batista nesta difícil questão.

A teologia da eleição segundo Lutero

Para entendermos a teologia da eleição no calvinismo e no arminianismo temos que começar a partir da visão de Lutero. A compreensão de Lutero tem por base a sua leitura da Carta de Paulo aos Romanos, e a partir daí de sua teologia da cruz. Segundo Walther von Loewenich, um especialista na vida e obra do reformador alemão, “a teologia da cruz é o princípio de toda a teologia de Lutero. Ela não pode ser limitada a um período particular de sua teologia”. (1) Nessa teologia, Deus vem até aqui embaixo e a expiação acontece quando Deus chega até o ser humano, que vive sob a ira da lei. Deus é satisfeito, aplacado, quando o movimento divino em direção ao humano resulta em fé. Ocorre, então, uma “alegre troca”: Jesus toma a natureza pecaminosa e entrega ao ser humano sua vida justa e imortal. E nessa teologia da cruz de Lutero está embutida a primeira compreensão que a Reforma fez da eleição de Deus.

Dessa maneira, para o reformador, o caminho cristão começa com o ato de ouvir o Evangelho, com o reconhecimento de nosso pecado, mas também da graça de Deus, em Cristo, derramado sobre nós. Continua no correr de nossa vida com a luta contra o pecado e, finalmente, quando debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, é a providência de Deus, manifesta na eternidade, através da eleição, que garante a esperança e nos dá conforto.

A teologia da eleição segundo Calvino

Calvino partiu dos mesmos textos de Lutero, principalmente da Carta de Paulo aos Romanos, mas inverteu a maneira de ver de Lutero. Se para Lutero, o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania de Deus e teologizar sobre ela e, por isso, a eleição deve ser vista como garantia de nossa esperança, principalmente nos momentos de dificuldades e sofrimentos, para Calvino a base da vida cristã é a escolha eterna de Deus. Assim, na teologia, não seria fim, mas começo e centralidade.

Tanto em seu Comentário sobre a Carta aos Romanos, como nas Instituições da Igreja Cristã, Calvino constrói uma teologia da eleição que tem por base a soberania de Deus. E olha a eleição sempre do “ponto de vista” de Deus, de cima, descartando uma leitura a partir da imago Dei e a possibilidade de escolha humana.

Segundo o teólogo batista Timothy George, (2) a doutrina da predestinação em Calvino pode ser definida em três palavras: absoluta, particular e dupla. É absoluta já que não está condicionada a nenhuma contingência finita, é particular no sentido que pertence a indivíduos e não a grupos. E, por fim, é dupla: Deus, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a vida eterna, e, para o louvor de sua justiça, outros para a perdição eterna.

A posição de Calvino, quando relaciona eleição e salvação, pode ser traduzida no seguinte silogismo: (1) A certeza da salvação depende do decreto eterno de Deus; (2) aqueles que creem foram escolhidos por Deus desde a eternidade; (3) se eu creio, logo serei salvo, porque fui escolhido.

A historiografia dos séculos 16 e 17 mostra que a doutrina da predestinação absoluta defendida por Calvino enfrentou séria oposição não somente nos meios teológicos, mas de pastores e crentes. Entre esses opositores podemos citar Erasmus, o movimento anabatista e dois fundadores do pensamento batista na Inglaterra: John Smyth e Guilherme Dell. Mas, historicamente, seu opositor mais conhecido foi Jacobus Arminius.

A teologia da eleição segundo Arminius

Já a doutrina da predestinação defendida por Jacobus Arminius (1560-1609) parte de uma perspectiva diferente: o papel da graça diante da depravação humana, a eleição condicional, a graça resistível, a expiação não limitada – Cristo morreu por todos – e a possibilidade de perda da salvação. Assim, para o arminianismo a eleição é condicionada pela fé.

Segundo Arminius, Deus em seu decreto escolheu seu Filho como Salvador para mediar a favor daqueles pecadores que se arrependem e creem em Cristo, e para administrar os meios eficientes e eficazes para a fé de cada um deles. Assim, para ele, Deus decreta a salvação e a perdição de pessoas em particular com base na onisciência divina da fé e perseverança de cada indivíduo.

A doutrina batista sobre eleição

A partir do que vimos, podemos dizer que existem três tendências no pensamento teológico em relação à doutrina da eleição, em especial à tensão existente entre a soberania de Deus e a liberdade de consciência e ação e ao uso pleno da razão por parte do ser humano.

A tendência chamada minimalista, que olha a questão de cima, a partir da soberania de Deus, e nega toda a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência chamada maximalista, que olha a questão de baixo, a partir de nossa humanidade, e não vê limitação à possibilidade do ser humano responder de forma livre ao chamado de seu Criador.

Mas há uma superação dialética dessa contradição, que defende que o ser humano pode e deve apoiar sua resposta à eleição e ao chamado de Deus em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão, embora tal processo deva ter como ponto de partida a revelação. Vamos analisar, então, o pensamento doutrinário batista:

Eleição é a escolha feita por Deus, em Cristo, desde a eternidade, de pessoas para a vida eterna, não por qualquer mérito, mas segundo a riqueza da sua graça. Antes da criação do mundo, Deus, no exercício de sua soberania divina e à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu, chamou, predestinou, justificou e glorificou aqueles que, no correr dos tempos, aceitariam livremente o dom da salvação. Ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os seres humanos. A salvação do crente é eterna. Os salvos perseveram em Cristo e estão guardados pelo poder de Deus. Nenhuma força ou circunstância tem poder para separar o crente do amor de Deus em Cristo Jesus. O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação”. (3)

Reconhecemos que existe uma tensão entre infinito e finito, entre o que está em cima e o que está embaixo. Mas, para nós batistas, a doutrina da eleição é uma síntese, que equilibra a tensão. Dessa maneira, segundo Sua graça imerecida, Deus opera a salvação em e através de Cristo, de pessoas eleitas desde a eternidade, chamadas, predestinadas, justificadas e glorificadas à luz de Sua presciência e de acordo com o livre arbítrio de cada um e de todos [Veja os seguintes textos: 1Pe 1.2; Rm 9.22-24; 1Ts 1.4; Rm 8.28-30; Ef 1.3-14].

E assim a doutrina batista apresenta seus quatro pontos: (1) Todos são eleitos; (2) Deus opera a salvação em e através de Cristo pelo favor imerecido de sua graça; (3) Deus é pré-ciente; (4) De acordo com o livre-arbítrio, desde a eternidade, Deus elege, chama, predestina, justifica e glorifica.

Nós batistas entendemos que salvação implica em regeneração, que é ato inicial em que Deus faz nascer de novo o pecador perdido. É obra do Espírito Santo, quando o pecador recebe o perdão, a justificação, a adoção de filho de Deus, a vida eterna e o dom do Espírito Santo. Neste ato de regeneração, o novo crente é batizado com o Espírito Santo e é por ele selado para o dia da redenção final, liberto do castigo eterno de seus pecados.

Assim, a partir da consistência ontológica do ser humano, somos levados à necessidade de uma análise antropológica para a teologia. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem Deus fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde os fatos natural e histórico transformam-se em alegoria.

O pressuposto fundamental dessa reflexão antropológica para a teologia é a imago Dei, que traduz a verdade de que a compreensão de Deus, através de seu Cristo, leva à compreensão do ser humano e de sua razão de existir.

Nesse sentido, por mais decaído que esteja o ser humano, ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo proposto pelo Criador.

Por isso, nós batistas consideramos que a missão do povo de Deus é a evangelização do mundo, visando a reconciliação do ser humano com Deus. É dever de todo discípulo de Jesus Cristo e das igrejas proclamarem, pelo exemplo e pelas palavras, a realidade do evangelho, fazendo novos discípulos de Jesus Cristo em todas as nações.

Notas

(1) Walther von Loewenich. A teologia da cruz de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 11-12.
(2) Timothy George. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 232.
(3) Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira. “Eleição”. In: Rumo e Prumo, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, Seção São Paulo, dez. 2004, p. 26.

6.9.16

JOVENS! SOIS FORTES

Uma leitura de 1João 2,12-14

É comum a seleção de alguns versículos para “dizer” algo que o texto não está dizendo. Assim, tira-se o texto (versículo) do seu contexto imediato a fim justificar uma atitude, ação ou discurso. Isso, num primeiro momento, é “normal”, quando se leva em consideração a capacidade de leitura de quem faz isso. Um exemplo dessa apropriação indevida de alguns textos (versículos) é o caso de Mateus 7,6: fala sobre dar aos “cães o que é santo”, não lançando “aos porcos” pérolas. Já ouvi algo assim sobre esse texto: ele serve para “evangelizar” pessoas fora da igreja e, quando não ouvirem, não gastar “tempo” com eles, pois assim estaria dando o evangelho (santo) aos cães (não convertidos ainda), o mesmo com as “pérolas”.

Outro texto (versículo) que comumente entra para essa coleção de apropriação indevida a fim de justificar uma atitude, ação ou discurso, é 1Jo 2,13: Pais, eu vos escrevo porque conheceis aquele que é desde o princípio. Jovens, eu vos escrevo porque vencestes o Maligno. Quantos sermões já ouvi em cima desse versículo nos encontros de jovens. Vários! Cada um dando a sua “explicação” quanto aos “jovens” e o “Maligno” no texto. Claro, o “Maligno” sendo interpretado como “diabo” ou “satanás”.

A carta de 1Jo está dentro de um contexto muito triste e dolorido para as comunidades joaninas, ligadas ao Evangelho de João. A carta tem origem a partir de um cisma, ou seja, a comunidade estava em processo de divisão por razões que, ao longo da carta, ficamos sabendo, como problemas teológicos e relacionais. Não por acaso que o texto de 1Jo 2,19 é enfático: Esses anticristos saíram do meio de nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas era preciso que ficasse claro que nem todos eram dos nossos. Há disputas de poder dentro da comunidade e um grupo permanece fiel a proposta do Evangelho. 

Um desses problemas, são pessoas que se entendiam investidas de poder, transformando a comunidade em hierarquias, algo que o Evangelho de João sempre rechaçou!

Um dos maiores temas de 1Jo é o amor e a resistência em tempos difíceis. O capítulo dois está reforçando o amor, quando a comunidade segue o exemplo de Jesus. Amar é o principal e fundamental mandamento da comunidade. Aqui, há dois caminhos o amor ou o ódio, escolhendo esse último, haverá tropeço e escuridão.

A resistência se dá com o mundo, que aqui, como no Evangelho de João, tem sentido negativo, ou seja, significando uma sociedade injusta, não comprometida com a vida, em total oposição ao projeto de Deus, por isso que os anticristos pertencem ao mundo. A luta seria contra a malignidade do mundo, ou seja, é uma luta contra o desamor e a inverdade. É uma luta contra o ódio. O Maligno se dá com a falta de amor para com o próximo, sendo ele uma característica do mundo – “meus irmãos, não vos admireis se o mundo vos odeia. Nós sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1Jo 3,13-14).

Em 1Jo 2,12-14, há uma compreensão quanto aos participantes da comunidade que estão enfrentando esses problemas, principalmente com o mundo. Nesses versículos há uma espécie de compreensão da vida em Cristo, envolvendo participantes da comunidade. Eles são os filhinhos, os pais, os jovens e as crianças. Há uma disputa quanto a compreensão desses grupos se são faixas etárias ou níveis de compreensão dos participantes da comunidade. Além dessa dificuldade, se são ou não grupos etários, alguns especialistas no texto de 1Jo entendem que se trata de líderes (presbíteros ou diáconos) da comunidade, os pais e os jovens. Há um consenso de que filhinhos são os membros da comunidade. Assim, é provável que pais e jovens se tratem de níveis de maturidade espiritual e não classificação por faixa etária. Paulo Roberto Garcia, professor de Novo Testamento e especialista em comunidades primitivas, em aula, demonstrou, a partir da exegese do texto de 1Jo, que pais e jovens não se configuram como faixas etárias, mas sim estados de maturidade espiritual. Dessa forma, pais e jovens, incidem em níveis de compreensão e maturidade no Evangelho.

Aos pais porque conheciam; aos jovens, porque estão adiantados na caminhada com o Evangelho, mas ainda não estão completamente maduros, mas são possuídos por uma força que os capacitam a enfrentar e suportarem o impacto da crise em que a comunidade se encontra com o cisma, por isso a palavra de Deus permanece neles e as tentações do Maligno não oferece perigo, pois já venceram por meio da força da (1Jo 5,4 – e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé). Assim, o mundo-maligno não exerce fascínio sobre esse grupo de irmãos (jovens), pois estão no caminho do Evangelho, mesmo diante de incertezas quanto ao futuro da comunidade, como é o caso de 1Jo.