16.9.16

A DOUTRINA DA ELEIÇÃO: CALVINISMO, ARMINIANISMO E O EQUILÍBRIO DA DOUTRINA BATISTA

Jorge Pinheiro dos Santos
Pastor auxiliar na Igreja Batista em Perdizes (SP); Professor na Faculdade Teológica Batista de São Paulo

A teologia da eleição

Há teologias, como a calvinista, que olham esta questão difícil da eleição a partir do infinito, de cima, exclusivamente. E há outras teologias, como a arminiana, que olham esta questão difícil da eleição apenas a partir do finito, de baixo.

Mas há uma outra maneira de olhar a questão da eleição, a partir da humildade do reconhecimento que estamos diante de um cruzamento do divino com o humano, do infinito com o finito, daquilo que está em cima com aquilo que está em baixo. E é exatamente esta perspectiva, humilde, bíblica e, por isso, doutrinária que orienta o pensamento batista nesta difícil questão.

A teologia da eleição segundo Lutero

Para entendermos a teologia da eleição no calvinismo e no arminianismo temos que começar a partir da visão de Lutero. A compreensão de Lutero tem por base a sua leitura da Carta de Paulo aos Romanos, e a partir daí de sua teologia da cruz. Segundo Walther von Loewenich, um especialista na vida e obra do reformador alemão, “a teologia da cruz é o princípio de toda a teologia de Lutero. Ela não pode ser limitada a um período particular de sua teologia”. (1) Nessa teologia, Deus vem até aqui embaixo e a expiação acontece quando Deus chega até o ser humano, que vive sob a ira da lei. Deus é satisfeito, aplacado, quando o movimento divino em direção ao humano resulta em fé. Ocorre, então, uma “alegre troca”: Jesus toma a natureza pecaminosa e entrega ao ser humano sua vida justa e imortal. E nessa teologia da cruz de Lutero está embutida a primeira compreensão que a Reforma fez da eleição de Deus.

Dessa maneira, para o reformador, o caminho cristão começa com o ato de ouvir o Evangelho, com o reconhecimento de nosso pecado, mas também da graça de Deus, em Cristo, derramado sobre nós. Continua no correr de nossa vida com a luta contra o pecado e, finalmente, quando debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, é a providência de Deus, manifesta na eternidade, através da eleição, que garante a esperança e nos dá conforto.

A teologia da eleição segundo Calvino

Calvino partiu dos mesmos textos de Lutero, principalmente da Carta de Paulo aos Romanos, mas inverteu a maneira de ver de Lutero. Se para Lutero, o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania de Deus e teologizar sobre ela e, por isso, a eleição deve ser vista como garantia de nossa esperança, principalmente nos momentos de dificuldades e sofrimentos, para Calvino a base da vida cristã é a escolha eterna de Deus. Assim, na teologia, não seria fim, mas começo e centralidade.

Tanto em seu Comentário sobre a Carta aos Romanos, como nas Instituições da Igreja Cristã, Calvino constrói uma teologia da eleição que tem por base a soberania de Deus. E olha a eleição sempre do “ponto de vista” de Deus, de cima, descartando uma leitura a partir da imago Dei e a possibilidade de escolha humana.

Segundo o teólogo batista Timothy George, (2) a doutrina da predestinação em Calvino pode ser definida em três palavras: absoluta, particular e dupla. É absoluta já que não está condicionada a nenhuma contingência finita, é particular no sentido que pertence a indivíduos e não a grupos. E, por fim, é dupla: Deus, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a vida eterna, e, para o louvor de sua justiça, outros para a perdição eterna.

A posição de Calvino, quando relaciona eleição e salvação, pode ser traduzida no seguinte silogismo: (1) A certeza da salvação depende do decreto eterno de Deus; (2) aqueles que creem foram escolhidos por Deus desde a eternidade; (3) se eu creio, logo serei salvo, porque fui escolhido.

A historiografia dos séculos 16 e 17 mostra que a doutrina da predestinação absoluta defendida por Calvino enfrentou séria oposição não somente nos meios teológicos, mas de pastores e crentes. Entre esses opositores podemos citar Erasmus, o movimento anabatista e dois fundadores do pensamento batista na Inglaterra: John Smyth e Guilherme Dell. Mas, historicamente, seu opositor mais conhecido foi Jacobus Arminius.

A teologia da eleição segundo Arminius

Já a doutrina da predestinação defendida por Jacobus Arminius (1560-1609) parte de uma perspectiva diferente: o papel da graça diante da depravação humana, a eleição condicional, a graça resistível, a expiação não limitada – Cristo morreu por todos – e a possibilidade de perda da salvação. Assim, para o arminianismo a eleição é condicionada pela fé.

Segundo Arminius, Deus em seu decreto escolheu seu Filho como Salvador para mediar a favor daqueles pecadores que se arrependem e creem em Cristo, e para administrar os meios eficientes e eficazes para a fé de cada um deles. Assim, para ele, Deus decreta a salvação e a perdição de pessoas em particular com base na onisciência divina da fé e perseverança de cada indivíduo.

A doutrina batista sobre eleição

A partir do que vimos, podemos dizer que existem três tendências no pensamento teológico em relação à doutrina da eleição, em especial à tensão existente entre a soberania de Deus e a liberdade de consciência e ação e ao uso pleno da razão por parte do ser humano.

A tendência chamada minimalista, que olha a questão de cima, a partir da soberania de Deus, e nega toda a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência chamada maximalista, que olha a questão de baixo, a partir de nossa humanidade, e não vê limitação à possibilidade do ser humano responder de forma livre ao chamado de seu Criador.

Mas há uma superação dialética dessa contradição, que defende que o ser humano pode e deve apoiar sua resposta à eleição e ao chamado de Deus em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão, embora tal processo deva ter como ponto de partida a revelação. Vamos analisar, então, o pensamento doutrinário batista:

Eleição é a escolha feita por Deus, em Cristo, desde a eternidade, de pessoas para a vida eterna, não por qualquer mérito, mas segundo a riqueza da sua graça. Antes da criação do mundo, Deus, no exercício de sua soberania divina e à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu, chamou, predestinou, justificou e glorificou aqueles que, no correr dos tempos, aceitariam livremente o dom da salvação. Ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os seres humanos. A salvação do crente é eterna. Os salvos perseveram em Cristo e estão guardados pelo poder de Deus. Nenhuma força ou circunstância tem poder para separar o crente do amor de Deus em Cristo Jesus. O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação”. (3)

Reconhecemos que existe uma tensão entre infinito e finito, entre o que está em cima e o que está embaixo. Mas, para nós batistas, a doutrina da eleição é uma síntese, que equilibra a tensão. Dessa maneira, segundo Sua graça imerecida, Deus opera a salvação em e através de Cristo, de pessoas eleitas desde a eternidade, chamadas, predestinadas, justificadas e glorificadas à luz de Sua presciência e de acordo com o livre arbítrio de cada um e de todos [Veja os seguintes textos: 1Pe 1.2; Rm 9.22-24; 1Ts 1.4; Rm 8.28-30; Ef 1.3-14].

E assim a doutrina batista apresenta seus quatro pontos: (1) Todos são eleitos; (2) Deus opera a salvação em e através de Cristo pelo favor imerecido de sua graça; (3) Deus é pré-ciente; (4) De acordo com o livre-arbítrio, desde a eternidade, Deus elege, chama, predestina, justifica e glorifica.

Nós batistas entendemos que salvação implica em regeneração, que é ato inicial em que Deus faz nascer de novo o pecador perdido. É obra do Espírito Santo, quando o pecador recebe o perdão, a justificação, a adoção de filho de Deus, a vida eterna e o dom do Espírito Santo. Neste ato de regeneração, o novo crente é batizado com o Espírito Santo e é por ele selado para o dia da redenção final, liberto do castigo eterno de seus pecados.

Assim, a partir da consistência ontológica do ser humano, somos levados à necessidade de uma análise antropológica para a teologia. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem Deus fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde os fatos natural e histórico transformam-se em alegoria.

O pressuposto fundamental dessa reflexão antropológica para a teologia é a imago Dei, que traduz a verdade de que a compreensão de Deus, através de seu Cristo, leva à compreensão do ser humano e de sua razão de existir.

Nesse sentido, por mais decaído que esteja o ser humano, ainda lhe resta a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo proposto pelo Criador.

Por isso, nós batistas consideramos que a missão do povo de Deus é a evangelização do mundo, visando a reconciliação do ser humano com Deus. É dever de todo discípulo de Jesus Cristo e das igrejas proclamarem, pelo exemplo e pelas palavras, a realidade do evangelho, fazendo novos discípulos de Jesus Cristo em todas as nações.

Notas

(1) Walther von Loewenich. A teologia da cruz de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 11-12.
(2) Timothy George. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 232.
(3) Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira. “Eleição”. In: Rumo e Prumo, Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, Seção São Paulo, dez. 2004, p. 26.

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