23.12.10

NATAL: O NASCIMENTO DAS INVERSÕES

Uma leitura de Lc 1, 31-53

É uma ótima época para presentear, comprar presente, festejar, comer, estar à mesa com a família e os amigos. A nossa cultura consumista conseguiu desvirtuar e transformar todas as comemorações religiosas em comércio. A páscoa deu lugar ao “coelhinho” o natal ao “papai Noel”. Tudo gira em torno de mercadoria, até Deus não escapa a isso.

Quando olhamos para as narrativas do nascimento nos evangelhos de Mateus (Mt) e Lucas (Lc), observamos o quanto os autores teologizou em torno do nascimento de Jesus. Embora não seja o objetivo discutir os enfoques teológicos de cada um, é interessante comparar as duas narrativas apenas para fim de constatação. Enquanto Mt se interessa por José, Lc por Maria; em Mt José e Maria moram em Belém, para Lc José foi para Belém por causa de um recenseamento; Mt faz Jesus ir para o Egito, em Lc Jesus volta para Nazaré; Mt coloca os “magos” como coadjuvantes, em Lc são os pastores. Isso mostra a particularidade de cada autor/comunidade e seu objetivo com a narrativa, cada um tentando buscar seu referencial teológico e comunitário. No evangelho de Mateus Jesus é apresentado como o novo Moisés, e por isso ele vai para o Egito, assim como Moisés, e Herodes manda matar criancinhas recém-nascidas assim como o Faraó; já Lucas quer mostrar a entrada da salvação na história – “Hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor”. Lc não está preocupado em verificar fatos históricos e exatos. É mais um estilo literário, uma linguagem artística, uma narração livre com o fim de edificar e iluminar as vidas de seus leitores/ouvintes.

Se atendo, especificamente, no evangelho de Lucas, vemos a sua preocupação com os desfavorecidos, com os marginalizados, com os oprimidos pelo sistema político (representado pelos romanos), social (a divisão de classes entre os judeus) e religioso (o templo de Jerusalém como dominador do imaginário religioso). Ele tem um olhar todo especial para as mulheres. Logo no início de seu texto, Lc coloca como protagonistas Maria e Isabel. Numa cultura em que mulher não tinha nenhum valor, quer político, social, econômico e religioso, Lc dá proeminência às mulheres.

No texto de Lc 1, 31-53 está o que ficou conhecido como o “Cântico de Maria” ou o Magnificat. O anúncio do nascimento de Jesus, na teologia de Lc, provocou uma renovação de esperanças e forças; era a concretização dos sonhos do povo de Israel. Lc coloca na boca de Maria uma canção subversiva, contestatória, revolucionária. O nascimento de Jesus passa a significar a inversão dos valores, outrora considerados corretos; o nascimento passa a significar a redistribuição dos bens. Para Lc o nascimento de Jesus é um protesto, da parte de Deus, contra o abuso do necessitado pelo rico; é, ao mesmo tempo, a libertação dos oprimidos e dos fracos.

O “Cântico de Maria” significa a quebra de barreiras e preconceitos contra a mulher e o início da igualdade nas relações de gênero. Ocorre o surgimento de novas relações, não mais baseadas na exploração e no descaso pelo outro, mas na equidade. Se outrora o orgulho, aquele que se considera acima dos outros, detinha o poder, ele é destronado; se outrora os poderosos/ricos menosprezava e condenava o pobre ao descaso, agora ele é esvaziado de sua arrogância. Os humildes, aqueles que, no entender de Lc, não almejam o poder, são exaltados.

Para Lc o natal é contestação da situação de exploração econômica, social e religiosa. O nascimento do Messias é um nivelador das relações humanas; é a inversão daquilo que se considerava correto; é o desmantelamento de estruturas de poder que oprime e marginaliza pessoas.

Como seria bom se o natal de Lc fosse comemorado hoje.

10.12.10

HOMENAGEM AOS FORMANDOS DO 3º ANO 2010

A vida é feita de etapas. Ontem vocês estavam saindo do Ensino Fundamental, hoje vocês conquistam o Ensino Médio. Muitas coisas mudaram neste período, hoje, mais maduros, vocês estão sendo convocados a fazer a diferença.

O que esperar de uma das melhores turmas do 3º ano que já tive oportunidade de trabalhar nesta Escola? Gostaria que esse meu discurso, que tenho o privilegio de proferir a vocês, fosse a minha última aula. Uma aula em que não vou pedir “silêncio turma”, ou solicitar para alguém ler um texto e nem se sentar. Mas uma aula sobre esperança, sobre desejar sorte, e vocês terão, sobre como ser diferentes, e vocês serão, e fazer a diferença, e vocês farão.

O que valeu a pena neste tempo que passamos juntos não foram, somente, os textos lidos, os filósofos estudados, a bronca dada, a nota conquistada, os apertos de mãos, a amizade cultivada. O que valeu a pena mesmo foi o momento em que uma ideia, uma frase, um pensamento foi interiorizado e, a partir disso, ajudou vocês a ver a vida de outra maneira. O que valeu a pena mesmo foi aquele momento que ninguém sabe quando ele vai chegar. O descobrimento de que sabe, de que conhece. Momento esse que o professor, por mais que seja bom, não consegue forjar no aluno se ele não estiver disposto. E vocês estavam.

A educação nunca pode ser vista como um objeto, mas como uma autopromoção do aluno. Tratei vocês não como um objeto em que se depositam fórmulas, teses, leituras, mas como pessoas dotadas de individualidade, capacidade criativa, energia e espírito crítico. Como dizia Nietzsche, educar é ensinar a ver. E foi isso que procurei fazer. É por isso que a educação nunca poderá ser reduzida a ter um bom emprego, ela sempre será mais que isso, será a construção de indivíduos, será a contribuição na formação de cidadãos. Escola nunca poderá ser uma gaiola onde se prende os alunos, porque os alunos são como pássaros, em busca do voo cada vez mais alto. Educação ensina a treinar os olhos, tornando-os aguçados e críticos para que, desta forma, seja possível fazer uma leitura correta da realidade que está à volta.

Como alunos inteligentes que são, e aprenderam a arte de ver, gostaria de dar uma última aula a vocês com um conteúdo que não está na grade de disciplinas escolares, mas que todos nós somos capazes de aprender.

Eu diria...

Cultivem a excelência no que se propuserem a fazer, não se contentem em serem simplesmente bons; não sejam medíocres ao ponto de achar que sabem apenas o necessário e que está bom assim, deem passos largos, busquem algo que esteja além, ousem sonhar!

Exerçam a cidadania; assumam as responsabilidades de serem construtores de uma cidade melhor, um Estado melhor, de um país melhor. Exercer a cidadania é buscar aprender a fazer a diferença, é quebrar paradigmas, é ousar modificar mentalidades; sejam revolucionários! Usem a capacidade de vocês para fazer o bem ao próximo, mas também para contribuir para que as coisas não fiquem sempre do mesmo modo. Tenha opinião própria sobre os assuntos, não se deixem ser manipulados por ninguém.

Estudem. Moramos num país que, no ranking educacional mundial, é o quinquagésimo terceiro. Há milhares de pessoas analfabetas e ainda outras mil semianalfabetas. É por isso que temos pessoas, sem o Ensino Médio, que podem tirar sua Carteira de Habilitação e deputado semianalfabeto pode ser eleito. Não se contentem apenas com o Ensino Médio, está noite é apenas mais uma etapa de colação de grau e que outras noites como essa seja possível para cada um de vocês.

A escola é assim...

Uns gostaram de vir, mas não souberam aproveitar bem o momento que passaram aqui; outros não viam a hora de sair, não aguentavam mais, o que é compreensível também. Mas alguns aproveitaram o momento, porque perceberam que sem a escola a vida não seria como é, e esses deixarão saudades.

Alguns sentimentos cabem aqui...

Saudade: dos momentos de risadas, brincadeiras e trabalhos.

Esperança: que muitos de vocês sejam ímpares na sociedade de hoje; verdadeiros cidadãos que deem orgulho para está cidade.

Gostaria de encerrar com uma frase de Cecília Meireles: “Há pessoas que nos falam e nem as escutamos; há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossa vida e nos marcam para sempre”.

A recíproca é verdadeira no caso de vocês.

Boa sorte a todos!

8.12.10

POR UMA ECLESIOLOGIA PÚBLICA

A eclesiologia protestante sempre foi ad intra. Uma igreja marcada pelo apego ao templo com uma visão maniqueísta do mundo, onde preservar os “bons costumes” foi confundido com a completa omissão para com a sociedade. A maneira reducionista de entender, pregar e vivenciar a mensagem do evangelho teve como fatores importantes o pré-milenismo e o fundamentalismo. Assimila-se a cultura estadunidense e esquece-se da cultura brasileira, criando uma concepção eclesiológica em que separa os justos (quem frequenta a igreja) dos injustos (os pecadores que estão no “mundo”).

Dentro da discussão, ainda recente no Brasil, sobre teologia pública, se faz necessário uma eclesiologia pública onde as principais matrizes do evangelho como missão, Reino de Deus, política e pastoral se tornem relevantes para a sociedade com mediações pastorais que contemplem as mazelas do cotidiano de uma cidade/sociedade.

A partir de constatações de que os movimentos eclesiológicos não comportam uma dimensão pública, pelo contrário, a visibilidade que a mídia proporciona para alguns grupos religiosos não abrange a sociedade, mas apenas indivíduos, com um discurso hedonista e exclusivista, formando pessoas que privatizam a fé e a fazem refém de um individualismo radical, não possibilitando a inserção dos cristãos no espaço público, temos como resultado disso uma igreja intimista, voltada para as carências pessoais e míope com relação a sua volta, se esquivando das exigências do evangelho que propõe uma pastoral comprometida com a cidade/sociedade, e não apenas com as pessoas que habitam as quatro paredes de um templo.

A tarefa é árdua, mas extremamente necessária, fomentar uma eclesiologia que seja pública, ou seja, uma eclesiologia dinâmica com recursos teóricos e uma práxis relevante.

A igreja que o protestantismo de missão deixou para os brasileiros é uma igreja com uma ligação com a cultura religiosa norte-americana, menos estável e em constante ebulição, com tendência para manter confronto com a cultura brasileira. Essa igreja tem no seu discurso um forte apelo individualista, ou seja, olha apenas para o indivíduo entendendo que a sua “conversão” melhora a sociedade. A igreja que os missionários nos deixaram é uma igreja com um fundamentalismo bíblico exagerado e um puritanismo extremo que contribuiu para que ela negasse a sociedade, compreendendo igreja como um reduto daqueles que aguardam os “céus”. Essa mentalidade é vista, principalmente, nos cancioneiros das igrejas protestantes. Cânticos que representam uma teologia da espera e isola a igreja do seu entorno.

A eclesiologia pública pretende definir a atuação da igreja na sociedade civil, procurando ampliar sua ação em realidades públicas. Conforme Jürgen Moltmann, “não existe identidade cristã que não tenha relevância pública”.

Para a igreja ter esta dimensão de atuação no espaço público, é preciso, antes de tudo, ter uma clara noção de cidadania. Uma eclesiologia que fomente a condição de cidadãos participantes do processo democrático da cidade aos seus membros.

1.12.10

QUEM EU SOU PARA O POVO?

Comecei trabalhar com a igreja sobre as imagens de Jesus que temos hoje. Não sendo muito especifico, apenas levantei algumas hipóteses de como Jesus é visto pelos principais ramos do fenômeno tido como evangélico (essa palavra está muito desgastada, a uso apenas para qualificar as igrejas e seus ramos). Apenas para constatação, as imagens de Jesus dentro do protestantismo são tratadas pelo Prof. Leonildo Silveira Campos em um estudo interessante sobre isso (Estudos de Religião, n.º 20, Jun. 2001, S. Bernardo do Campo, UMESP).

Falar sobre Jesus é sempre fazer interpretação, os Evangelhos é um exemplo claro disso, há três (sinóticos) e ainda João e nenhum deles são iguais. Na religiosidade brasileira há uma verdadeira diversidade de imagens sobre Jesus. Na tradição católica, ele é um Jesus sofredor; no protestantismo ele é celeste, habita o céu.

Tratei, recentemente, com a comunidade sobre o Jesus gospel.

Há um comércio altamente lucrativo, que não é nenhuma novidade mais, usando a marca Jesus. É um Jesus de vitrine, onde as pessoas se relacionam com ele através dos produtos.

A partir de estudos feitos pela pesquisadora Magali do Nascimento Cunha (UMESP), a cultura gospel se estabeleceu quando louvor e adoração se tornou sinônimo de música, apenas isso. Se adora, se louva a Deus cantando, com som nas alturas. Surgem as “Equipes de Louvor”, uma nomenclatura no mínimo infeliz. Jesus passa a ser consumido nos louvorzões, uma verdadeira festa. O cantor se transforma em celebridade, com direito a autógrafos e fotos. Os produtos são diversos e os slogans dos mais chamativos como: “enriqueça a sua igreja com o produto x”. Os programas dos pastores televisivos são mais comerciais do que qualquer outra coisa.

O Jesus gospel é badalado; ele é aclamado; pula-se nos estádios por ele; compram-se inúmeros produtos por ele; há marcas de roupa, cosméticos e até mesmo celulares dele, do Jesus gospel.

Se os discípulos pudessem perguntar para Jesus hoje quem ele é para o povo (Cf. Mc 8,27), o povo diria: alguns dizem que tu és milagreiro, cura e expulsa demônios; outros dizem que tu proporcionas riqueza, é o dono do ouro e da prata; outros ainda acham que tu estás no céu, apenas aguardando a chegada da igreja.

A mensagem do reino de Deus foi suplantada pelo movimento gospel, onde tudo é comercializado e as pessoas se relacionam com ele por meio dos produtos.