30.3.18

O GALILEU

Chega nessa época do ano, a Páscoa, as igrejas trazem à memória os significativos relatos sobre a morte e ressurreição de Jesus. Celebrações em torno da figura polissêmica do homem de Nazaré. Sabemos com Maurice Halbwachs (“A memória coletiva”), que algo assim é contínuo e nada artificial, porque “não retém do passado senão o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que a mantém”. Se for assim, esse grupo entende que, a partir da narrativa que possibilitou a memória de Jesus, precisa dar continuidade à sua vida, por meio de uma autêntica identificação com ele.

Se esse grupo, que a teologia comumente identifica como “igreja”, concebe na figura de um nortista da Galiléia, que de maneira itinerante, saiu pelos vilarejos e cidades com uma mensagem de que a face de YAHWEH é de um Pai (Abbá) que continuava querendo estabelecer um Reino, esse grupo precisa olhar para o “rosto” desse nazareno e se identificar com ele. A identificação passa pela práxis, ou seja, só é possível cultivar memória quando o quê ou quem a motivou, continue fazendo sentido. As igrejas celebrando a Páscoa, estão dizendo que a memória do nazareno continua presente e sua mensagem e trajetória de vida, fazendo sentido. 

Ocorre que a práxis de Jesus não foi entendida plenamente nem mesmo pelos seus mais próximos seguidores (os discípulos/as). Sabemos, pelos Evangelhos, que mesmo espoliados pelo sistema político (romanos) e religioso (sacerdotes), o preconceito e a indiferença tinha lugar cativo no coração e atitudes desses seguidores. Nesse sentido, estamos dizendo que para os discípulos mais próximos de Jesus de Nazaré, entender a sua práxis e vivenciá-la na caminhada, não se deu de maneira tranquila, antes houve sérios conflitos, inclusive com a pessoa de Jesus. Por exemplo: são os discípulos que afastam as crianças quando estas querem estar com ele; são os discípulos que procuram silenciar o cego que gritava à beira do caminho por esmola; são os discípulos mais íntimos de Jesus que não aguentam a vigília na noite mais tenebrosa do galileu; são também os discípulos que ficam assustados quando veem Jesus conversando com uma mulher no poço. Os relatos poderiam se multiplicar. Os discípulos de Jesus não percebem, num primeiro momento, a dinâmica da sua caminhada e a clara preferência por questões consideradas incólumes. Como bem nos lembra o exegeta Günther Bornkamm: “caminhar atrás dele não significa segui-lo”.

No Brasil há uma polaridade política que tem afetado relacionamentos familiares, amigos e igrejas. A polarização chegou também na figura do nazareno. Há aqueles que querem diminuir o aspecto político-social dos Evangelhos por, pensam, favorecer um segmento da política brasileira. Outros ainda usam a figura de Jesus e sua práxis direcionada para os marginalizados e despossuídos como uma plataforma político-ideológica a fim de promover uma agenda socialista. Nessa disputa pela narrativa do galileu, estão os que insistem em espiritualizar a caminhada de Jesus e sua mensagem, o transformando em um Cristo do “coração”. O fato é que a figura, a vida, mensagem, morte-ressurreição de Jesus não pode ser institucionalizada cabalmente. A igreja procurou fazer isso, mas não há dúvidas de que falhou; a julgar pela quantidade de denominações e sua diversidade de interpretações, algumas se colocando como exclusivas até. A questão, como bem coloca Franz Hinkelammert, é que “as bem-aventuranças dos pobres, dos presos e dos enfermos, e em geral de todos os marginalizados da sociedade, constituem uma exigência que, quando interpretada em toda a sua rigidez, é incompatível com qualquer vida social realisticamente institucionalizada”. Em outras palavras, qualquer tentativa de capturar (seja essa captura política ou religiosa) a práxis de Jesus está fadada ao um certo fracasso. As instituições, criadas para legitimar a narrativa de Jesus, não dão conta da expressividade e dinâmica do nazareno. As suas ações e gestos estão para além das redomas criadas para comprimir a práxis do galileu.

Ao que parece, estamos parecidos com os discípulos dele que não vendo muito sentido em suas palavras e gestos, “tinham receio de perguntar”. Mas esse receio não os impediam de ficarem discutindo quem, entre eles, era, de fato, o maior (Mc 9,32-34).

21.3.18

APOIO À CANDIDATOS POR PASTORES BATISTAS

Estamos todos mergulhados em uma profunda crise que assola o país. Essa crise passa por diversos setores da vida nacional e, pelo que conste, nada passa despercebido. Uma das mais profundas é, indubitavelmente, a crise política. O país acompanhou (e continua acompanhando), diversos políticos de diferentes legendas sendo conduzidos para depoimentos, julgamentos e não poucos encarcerados por diferentes crimes envolvendo a administração pública.

Somando a esse quadro de crise política – que parece ser complexo e qualquer observação sem a máxima apuração corre-se o risco de imprecisões –, há uma intensa polarização político-ideológica na grande maioria da população. As pessoas estão tomando partido de A ou B, baseadas em suas convicções religiosas, morais e políticas. Há, inclusive, alguns que até então, confessadamente, não tinham qualquer interesse na política, mas, nos últimos anos, vem se envolvendo com questões partidárias de maneira acirrada, se colocando como de “Direita” ou de “Esquerda”, mesmo que esses “rótulos” (direita ou esquerda) não tenham a devida lucidez para a maioria que assim se definem.

Não é de hoje que as redes sociais se transformaram em “campo de batalha” entre pessoas de diferentes posições políticas. Há pesquisadores que arriscam em dizer que as eleições de 2018 serão decididas na internet e, mais especificamente, nas redes sociais. Não sem razão que há grupos criminosos que ganham dinheiro produzindo e espalhando nas redes sociais “Fake News” (notícias falsas). A proliferação de fake news é muito maior do que mesmo uma notícia verdadeira, constatam os especialistas em internet.

Com esse tenebroso cenário, perguntamos: um pastor batista deveria apoiar candidatos nessas eleições de 2018? Ele deveria dizer, divulgar, seja de púlpito ou em redes sociais, conteúdos envolvendo o candidato A ou B?

Antes de qualquer coisa, é preciso frisar o “pastor batista”, ou seja, não está se falando de um cidadão com seus direitos e deveres, antes uma pessoa que exerce liderança em uma comunidade de fé e professa uma identidade denominacional, portanto, tem uma função pública-social. Diante disso, daremos algumas razões porque um pastor batista não deveria expressar sua adesão/apoio à candidatos à cargos eletivos.

Separação entre Igreja-Estado

Notadamente, os batistas têm na separação Igreja-Estado um dos seus principais princípios. Ocorre que a defesa da separação Igreja-Estado nunca significou omissão e desinteresse pela política. Professar este princípio não significa deixar a política de lado, alegando que o interesse da Igreja é tão somente espiritual. Quando o batista norte-americano Walter B. Shurden, comenta sobre este tema, diz: “A legitimidade do Estado deve ser reconhecida pelo cristão, embora lhe seja permitido se opor ao Estado quando este contraria os princípios que caracterizam os ensinamentos da Palavra de Deus”. Foi nesse espírito, que Martin Luther King Jr., sem nunca ser candidato ou apoiar qualquer que fosse o presidente dos EUA, disse: “É preciso lembrar a Igreja que ela não é senhora nem serva do Estado, mas, sim, a consciência dele. A Igreja tem o dever de o criticar e o orientar, sem nunca se tornar para ele num instrumento”. Separação entre Igreja-Estado não significa omissão política, antes a vigilância com espírito profético. Já dizia João Falcão Sobrinho, destacado pastor batista no Rio de Janeiro: “O cristão, como cidadão da pátria terrena, tem dever para com o seu país, mas sempre que entrar em conflito o seu dever cívico com os seus deveres para com Deus, deve permanecer fiel ao seu Redentor”. Por prezar pelo princípio da separação Igreja-Estado, o pastor batista, quando se isenta de apoiar candidato A ou B, tem condições de refletir a partir de algo maior, qual seja, as pessoas e o seu bem-estar. Esse deveria ser o principal foco de todos os cristãos batistas, mas principalmente do pastor batista. No item ORDEM SOCIAL (Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira), traz algo fundamental quanto ao papel de todos os cristãos: “Como sal da terra e luz do mundo, o cristão tem o dever de participar em todo o esforço que tende ao bem comum da sociedade em que vive”. É sabido que uma dessas formas de buscar o bem comum de uma sociedade que tem um sistema de governo republicano, se dá com a tarefa política. Por isso, mais uma razão para não se envolver com legendas partidárias de maneira estrita. Essa adesão, no nosso entender, prejudicaria um olhar holístico sobre as demandas de uma sociedade. Quando há comprometimento partidário, há descomprometimento social na sua inteireza.

Histórico negativo

Além desse fator (separação entre Igreja-Estado), que consideramos decisivo para não se apoiar, de maneira aberta e pública, candidatos à cargos eletivos, há também um outro fator: pesa contra nós, batistas, um histórico negativo quando se optou por um determinado segmento político no país. Antes de 1964, portanto antes do golpe civil-militar, os batistas tinham no seu horizonte de reflexão e ação uma agenda que contemplava as mazelas de um povo que sofria, por conta de políticas insatisfatórias em décadas anteriores. O êxodo rural e a ineficiência de políticas públicas, mergulharam o país em uma profunda e sistêmica desigualdade social. São os batistas, que em 1963, irão produzir o mais audacioso Manifesto reconhecido até hoje. No conhecido documento “Manifesto dos Ministros Batistas do Brasil”, há um espírito profético e combativo diante dos problemas prementes da sociedade brasileira. Nesse Manifesto, está presente um senso de justiça social que, mesmo respeitando a separação entre Igreja-Estado, não se omite diante dos dilemas do povo brasileiro à época. Destacamos algumas das suas preocupações e denúncias: “Reconhecemos a inadequação da presente estrutura social, política e econômica para a realização plena da justiça social, pelo que insistimos na necessidade de um reexame corajoso, objetivo e despreconcebido da presente realidade brasileira, com vistas à sua estruturação em moldes que possibilitem o atendimento das justas aspirações e necessidades do povo. Essa necessidade ressalta da constatação da ineficiência dos institutos assistenciais do Estado, que transformam num favor concedido a custo, direitos líquidos dos trabalhadores; da irracional aplicação dos recursos públicos, que deveriam antes de se destinar, mais liberalmente, aos ministérios da Saúde, Educação e Agricultura, para a solução de problemas sociais angustiantes; da sobrevivência de regimes feudais de propriedade e exploração da terra; da generalizada pobreza das populações carentes mesmo do alimento indispensável à sobrevivência; da injustiça na distribuição das riquezas, e da utilização destas para o cerceamento das liberdades essenciais; da inadequada exploração das nossas riquezas naturais, cujo aproveitamento não só deveríamos intensificar, como fazer revestir-se de significação social; da corrupção que tem campeado nos pleitos eleitorais, na prática policial (quer preventiva, quer corretiva), na previdência social, no preenchimento de cargos públicos...” (1). Depois de 1964, os batistas se alinharam ao regime militar por razões conhecidas e pesquisadas (2). Com isso, notamos que todo e qualquer alinhamento político-ideológico leva, inevitavelmente, a uma forma de alienação das reais condições de vida de uma população. Por essa razão, ao nosso ver, um pastor batista não deveria dizer em que candidato deve ou não votar. Antes, a sua voz deveria ser apartidária, uma vez que optando por um partido, já se está optando por qual linha política irá seguir. É oportunidade de aprender com os pastores batistas que passaram pela década de 1960.

Código de Ética dos Pastores Batistas do Brasil

A Ordem dos Pastores Batistas do Brasil está para reformar o seu Código de Ética. No atual Código, há um item dedicado aos “Deveres do Pastor para com a Sociedade”. Antes de qualquer coisa, um pastor batista não deveria ser candidato a cargo político. Isso, per si, se constitui um desvio grave da sua vocação e tarefa ministerial. Mesmo o pastor batista não concorrendo a um cargo político, o Código não faculta a ele a omissão diante dos problemas sociais. Nesse sentido é dito: “Participar da vida da comunidade [...] identificando-se com sua causa e solidarizando-se com os anseios de seus moradores, procurando apoiá-los quanto possível nos esforços para satisfação deles”. É dito que a voz do pastor não é emudecida diante dos problemas, pelo contrário, ele deve se envolver nas questões que atingem a todos e, a partir da sua participação, oferecer soluções. Em outro momento do Código, é dito que o pastor deve “praticar a cidadania cristã responsável, sem engajar-se em partidos políticos”. Essa observação faz todo o sentido. Primeiro que um pastor batista, em hipótese alguma, deveria dizer para a sua Igreja Local em qual candidato os membros devem ou não votar. Isso feriria a liberdade de consciência e opinião (um dos caros princípios batistas); num segundo momento, essa recomendação se dá porque uma vez o pastor sendo do partido A ou B, ele fica comprometido com a agenda desse partido ou candidato, mesmo que concorde com algumas das questões e discorde de outras. Não obstante a isso, o Código completa: “Dar apoio à moralidade pública [...], por meio de testemunho profético responsável e de ação social”. Só essa tarefa que o Código recomenda já é, por demais, árdua. 

Um pastor batista deve, com todos esses rótulos e ódio explícito que acompanha a política brasileira nos últimos três anos e, principalmente, nas redes sociais, continuar perseguindo os exemplos de homens que lutaram contra um sistema político que marginalizava e oprimia as pessoas. Nesse sentido, os profetas do Antigo Testamento estão aí: Jeremias, Amós, Isaías e tantos outros. Em comum em todos eles há uma mensagem profética de repúdio as práticas desumanas e parciais dos reis! João Batista, no Novo Testamento, não ficou calado diante da corrupção e imoralidade de Herodes, perdeu a cabeça por conta disso. O próprio Jesus, contrário aos interesses dos sacerdotes, expulsou os ladrões que abusavam da boa fé do povo no templo de Jerusalém, e isso selou a sua execução incentivada pelo sistema sacerdotal.

Cabe ao pastor batista ser voz ativa na propagação dos valores do Reino de Deus. Quando o Reino de Deus está em primeiro lugar, há comprometimento com a justiça (Evangelho de Mateus).

Notas

(1). Publicado no “O Jornal Batista” – 14.09.1963.
(2). Confere o trabalho de Leandro Seawright Alonso, uma tese de doutorado em História Social pela USP – Ritos de oralidade: a tradição messiânica de protestantes no regime militar brasileiro (Jundiaí: Paco Editorial, 2016).