2.9.21

A IGREJA QUE ATRAPALHA A LÓGICA DO MUNDO

Thomas Hobbes é o filósofo conhecido por escrever a obra Leviatã. Nesse texto, o filósofo inglês coloca a necessidade de haver uma sociedade forte com um governo forte. Para isso, a sociedade deveria ter uma autoridade centrada ou num monarca ou em uma assembleia e isso garantiria a paz e a defesa do bem comum. Essa autoridade deveria ser um Leviatã (monstro marinho citado no Antigo Testamento).  O Leviatã, em Hobbes, seria aquela autoridade inquestionável, onde todos devessem obediência e servisse para o bem de todos.

Ocorre que para Hobbes havia algo que atrapalhava a concretização dessa forma de governo, do Leviatã. Tratava-se do cristianismo. 

Escandalizava Hobbes o potencial subversivo do cristianismo. Isso porque ele envergava no cristianismo, mais propriamente na igreja, uma capacidade de desagregar o poder da autoridade. Esse poder, como deixa claro o filósofo inglês, deveria ser único e absoluto nas mãos de um monarca ou assembleia, um Leviatã. Desse modo, Hobbes compreendia que a igreja causava uma divisão no poder quando fazia distinção entre secular e religioso. O que mais impressionava Hobbes, era a submissão que as pessoas faziam, voluntariamente, a um único Deus vivo e isso ameaçava toda e qualquer autoridade secular.

Comentando sobre os romanos e como eles trataram o cristianismo assim que se tornou conhecido no Império Romano, Hobbes salienta: “Os romanos, que conquistaram a maior parte do mundo conhecido de então, não tinham escrúpulos ao tolerar a religião que fosse, na própria cidade de Roma, a menos que houvesse nela algo incompatível com o governo civil”. O cristianismo estava nessa religião “incompatível com o governo civil”. Isso porque o cristianismo se constituía uma força autônoma, heterodoxa, que não fazia questão alguma de estar vinculada ao poder estatal e isso incomodava e atrapalhava os planos de qualquer autoridade. Não por acaso que o imperador, não podendo vencer os cristãos, o cooptaram para o Império, tornando o cristianismo religião aceita e, logo depois, oficial.

A igreja, quando está imbuída da sua gênese, atrapalha qualquer tentativa de poder e controle político-social. A razão é muito simples: a igreja tem a sua origem no feito escatológico do Cristo, a sua permanência nesse mundo não está condicionada a qualquer recompensa meritória, uma vez que essa recompensa já foi concretizada de modo escatológico na cruz-ressurreição. Assim, a igreja tem algo que está para além da própria igreja, algo que a mantém, mas não a torna dona, o que seja, o seu horizonte escatológico.

Nessa constituição escatológica de ser igreja, ela carrega algo que ousa celebrar, mas que não possui, e ousa representar o que não é da sua propriedade, além de proclamar uma palavra que não é deste mundo. É por essa razão, que a igreja pode estar envolvida politicamente com este tempo porque o que este mundo e sua lógica poderia oferecer a ela, a igreja, não é compatível com aquilo que ela já tem, o que seja, um horizonte escatológico delineado pelo Cristo com a proclamação do Reino de Deus. E o Reino de Deus não cabe na lógica do mundo.

É nesse sentido, portanto, que a igreja atrapalha a lógica do mundo.

A lógica do mundo é conhecida: torna as pessoas mercadorias; estabelece as relações pessoais a partir de uma lógica de poder. A isso, acrescenta-se os pastores midiáticos que fazem uso dessa lógica quando utilizam sua influência para barganhar com o poder estatal. A lógica do mundo está atrelada ao “quem pode mais, chora menos”; a lógica do mundo faz questão de acentuar as diferenças entre as pessoas, quer por gênero, condição econômica ou status social.

Aí vem a igreja e empareda toda essa lógica quando diz: judeus e gregos podem coexistir no mesmo lugar; mulheres, homens e crianças não são diferentes; as distinções sociais não são critério de aceitação por Deus; o status social de alguém não tem valor meritório na vivência comunitária. Isso é realmente revolucionário. Primeiro para um Império estratificado socialmente como era o romano e depois para o mundo em que o valor das pessoas são medidos pela conta bancária.

E como a igreja rompe com essa lógica? Pegando em armas e planejando a derrubada dos poderes constituídos? A igreja precisa ser anárquica para subverter essa lógica? Não! Obviamente que não.

A igreja rompe e atrapalha a lógica do mundo quando em culto celebra a existência dos enfuturados. Sim, a liturgia (que significa serviço para o povo) é o espaço em que a igreja reunida diz em claro e bom som que as estruturas desse mundo são pecaminosas e que somente pela mensagem da cruz de Cristo e na esperança da ressurreição as coisas terão o seu desfecho dentro da perspectiva divina.

Antes mesmo de James K. A. Smith publicar a sua bela trilogia sobre “Liturgias Culturais”, o teólogo J.J. von Allmen, com o seu livro O culto cristão: teologia e prática, já dizia que a igreja em culto questiona a justiça dos homens e constitui uma “ameaça para o mundo”. Allmen diz: “O culto é o desmentido mais eloquente das pretensões que o mundo possa ter de prover aos homens”. É por essa razão, segundo von Allmen, que “o culto cristão, pelo mero fato de ser celebrado, é um ato fundamentalmente político”. Mais tarde James K. A. Smith, no seu texto Aguardando o rei, irá afirmar: “A adoração da igreja não é apenas uma polis alternativa de um enclave isolado; ela é sempre uma intervenção política no ‘mundo’”. A força da igreja reside na sua celebração que ganha dimensão política quando, de maneira profética, proclama a sua mensagem para um mundo que vive a partir de uma lógica mundana.

Igreja, é aquela comunidade formada de pessoas que fazem questão de atrapalhar a lógica do mundo com a sua postura contestatória e audível quando, de maneira litúrgica, diz para todos que possam ouvir: entre nós não temos um kyrios, não temos um führer, não temos um messias. Temos somente um Senhor, Jesus Cristo, a quem anunciamos como loucura para este mundo e sua lógica desagregadora.

Em um tempo em que parte da igreja foi capturada pelo poder político-econômico no nosso país e tendo, infelizmente, a parceria de pastores para fomentar ainda mais a ebulição social, lembremos, mais uma vez, qual é o papel que a igreja de Jesus Cristo deve exercer nesse tempo. Este é o momento de parte da igreja reconsiderar se realmente os seus caminhos são de paz ou de mal (Jr 29,11). Isso é preciso, caso a igreja queira continuar a ameaçar, escandalosamente, o poder do Leviatã.

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