1.12.09

A IMPREVISIBILIDADE DA VIDA E A FÉ EM DEUS

Estou trabalhando com a Igreja no Livro de Salmos. Considerando que os salmos são uns dos únicos textos do Antigo Testamento em que as palavras são dos homens para Deus, diferente do restante do AT em que as palavras são de Deus para os homens. Um livro de poesia, música, orações. São textos que revelam as aflições daquele que tem em Deus seu amigo, companheiro, alvo da sua adoração. Por isso os textos estão repletos de louvor, contrição, emoção, raiva, medo, clamor, lamentação, desespero, esperança, reivindicação, em suma os salmos é humano demais.

No último domingo de novembro coloquei diante da comunidade o Salmo 73. Um texto difícil para uma comunidade em que a maioria das pessoas tem extrema dificuldade em conciliar a fé com as contingências da vida. Muitos têm medo de questionar a sua fé em um mundo de desgraças e tragédias; um mundo em que pessoas boas morrem e pessoas más se dão bem em seus negócios escusos e fraudulentos. Essa é a questão do salmista: “quanto a mim, os meus pés quase tropeçaram; por pouco não escorreguei. Pois tive inveja dos arrogantes quando vi a prosperidade desses ímpios”. O autor é corajoso quando levanta a questão: aqueles que não estão nem aí para o Senhor se dão bem, e aqueles que temem a Deus nem tanto!

É preciso entender o salmo dentro do contexto teológico da época, a chamada teologia da retribuição. Como no AT ainda não havia nenhuma doutrina de pós-morte, pois entendiam que depois da morte tudo se acabava (Sl 115,17), acreditava-se que as bênçãos do Senhor eram para a vida presente. Quem fazia o bem recebia coisas boas, quem fazia o mal recebia coisas más. O autor do 73 irá comprovar empiricamente que esta lógica teológica não estava de acordo, pois isso não acontecia com ele, é a partir disso que ele começa a processar sua fé em cima dessas questões e chega a conclusões interessantes que foge e muito do conceito triunfalista do evangelho que vemos hoje.

Tentei mostrar à comunidade que é possível crer em Deus apesar do mal. Os cristãos hoje estão acostumados a entender que aqueles que têm fé em Deus nada de ruim os acontecem, estão isentas de problemas; neste sentido fazer a “vontade de Deus” é sinônimo de ausência de problemas na vida. A ideia de que o mal não atinge os crentes, como se Deus tivesse uma bolha protetora, não corresponde com a vida cotidiana; outros interpretam tudo que acontece no mundo pela perspectiva de Deus alegando que tudo tem um propósito, com esta maneira calvinista de entender, a guerra tem um propósito, a menina estuprada tem um propósito. Com essas duas concepções, as pessoas são levadas a não assumir a vida com suas mazelas e dilemas, com suas contingências e imprevisibilidade. O mal faz parte da vida. Se o evangelho fosse triunfalismo o profeta Isaías não teria sido cortado ao meio, as mães de Samaria não comeriam seus filhos para matar a fome, João Batista não teria sua cabeça cortada e Jesus, vítima da maldade humana, não teria sido crucificado! Crer em Deus apesar do mal é conviver com as incoerências da vida, com os absurdos, mas ter a certeza de que “Deus é a força do coração” (v.26).

Outra postura frente a imprevisibilidade da vida é a maturidade da fé no ato de crer em Deus como ato de amor. As pessoas se decepcionam com Deus quando são frustradas em seus desejos e vontades, porque a relação com Deus é baseada na posse: ele é um deus consumido. A questão é: se Deus não pode me proteger e a todos a minha volta, para que ele serve? Como se Deus fosse máquina para funcionar de acordo com alguns comandos.

A conclusão do salmista não é reivindicar riquezas, saúde como os outros que ele estava vendo. Apesar dos problemas da vida ele reafirma o seu amor a Deus, simplesmente porque Deus faz parte da vida. Por isso, apesar do mal e das ilógicas da vida ele conclui que “bom é estar perto de Deus”.

4 comentários:

Claudinei Paulino disse...

A vida se torna livre quando a vemos como ela é, ou seja, quando mesmo em meio as imprevisibilidades e contingências ela é vivida. A tentativa de 'definir' a vida e os acontecimentos a partir de propósitos de Deus ou a somatória de causa e efeito empobrecem por demais a própria vida e a fé.
Parabéns pelo texto.

Alonso S. Gonçalves disse...

Sabe o que é mais difícil, é tentar fazer com que as pessoas façam uma outra leitura da vida sem ser aquela fatalista de que Deus controla tudo. Essa mensagem aqui na Igreja teve uma repercussão muito boa, principalmente porque no domingo anterior uma irmã da Igreja recebeu a notícia da morte de um filho enquanto eu celebrava a Ceia, uma de suas filhas entrou no templo desesperada. Mas a Igreja esta aprendendo a ver as coisas com outras possibilidades, e o mais legal é que posso ajudar nisso.

Valeu!

jerielbrito disse...

Lidar com a imprevisibilidade da vida e a fé em Deus, quase não se fala, a tendência é usar as rotas de fuga, ou simplificar através dos propósitos. Pensar corajosamente nisto nos faz sentir que realmente estamos triunfando em Cristo vivendo a vida com suas imprevisibilidades.
Parabéns!!

Alonso S. Gonçalves disse...

Obrigado pela pela leitura honesta e sincera. É isso mesmo que você escreveu, é tentar fazer uma teologia com sabor de vida (J. L. Segundo), ou seja, pensar "corajosamente" nos dilemas da fé em Cristo.