14.11.09

HERMANÊUTICA APIMENTADA

O protestantismo de missão (batistas, congregacionais, presbiterianos e metodistas), sofre hoje com a incapacidade de dialogar com a cultura brasileira. É claro que há incursões neste campo a fim de explorar a dinâmica da cultura e o discurso protestante (o principal no ambiente batista é Jorge Pinheiro). Com uma mensagem que rejeitava o passado do “convertido”, o protestantismo desvalorizou a cultura nacional, não sendo capaz de uma ação de inculturação. Resultado disso são os Seminários, Institutos e Faculdades Teológicas que não têm em sua grade curricular disciplinas de cultura brasileira e teologia latino-americana (há exceções). Os pastores/teólogos desconhecem completamente a literatura brasileira e grandes nomes do pensar abrasileirado como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro. Em vez disso, a cultura saxônica, na sua vertente mais pragmática, a norte-americana, moldou o protestantismo brasileiro.

O que se produziu diante desse fato, foi um total descompasso com a cultura brasileira, e por tabela a incapacidade de discursar com propriedade para o povo brasileiro. Vários fatores ocorreram para uma leitura fundamentalista da Bíblia, a começar pela natureza missionária no país no século XIX.

Uma rápida visão pelas hermenêuticas no protestantismo fica mais ou menos assim: 1). O protestantismo de imigração valoriza uma hermenêutica a partir do método histórico-crítico, um esforço para determinar o sentido histórico do texto; 2). No protestantismo de missão a leitura se deu no embate com o catolicismo, sendo a Bíblia entendida como a Palavra de Deus somente mediante a iluminação do Espírito Santo era possível compreender o texto sagrado, o que não ocorria com o catolicismo, que tem no Magistério a diretriz hermenêutica (não incluo aqui o pentecostalismo porque a chave hermenêutica passa do texto para a experiência, não é o que se lê, mas o que se sente). Com isso a postura fundamentalista se enraizou por aqui. Desconsidera a natureza cultural e temporal da Bíblia, acreditando ser ela a “voz de Deus” em qualquer sentido e tempo, até mesmo como elemento para contradizer a ciência (a polêmica criacionismo x evolucionismo), uma leitura ainda medieval.

Dessa hermenêutica os púlpitos de nossas igrejas bebem. Uma leitura do texto que passa pelo dogma, pelo confessionalismo, pela ética puritana, pelas declarações doutrinárias. Acentuando ainda mais um consenso em torno de uma interpretação que só servem para afirmar as mesmas doutrinas e práticas, e aí daquele que contrariar. Com uma interpretação tida como inspirada, a postura é reproduzir o que se aprendeu com as leituras pragmáticas e calculadas de autores estrangeiros. Uma rápida constatação: os comentários bíblicos de maior sucesso entre os pastores são O Novo Testamento interpretado versículo por versículo de R. N. Champlin (há também do AT e mais uma enciclopédia, esse é o cara); O novo comentário da Bíblia de F. Davidson; série Cultura Bíblica (publicação da Editora Mundo Cristão e Vida Nova), uma coletânea de comentários do AT e do NT; além disso, muita gente gostou do livro que nem mesmo me lembro do autor, A Bíblia tinha razão, uma “comprovação” arqueológica de que a Bíblia, de fato, era verídica, como se o texto precisasse de elementos externos para ser o que é. Todos os autores são estrangeiros. Eu mesmo na faculdade teológica (SP) tive como livro texto A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia (Edições Vida Nova), de Roy B. Zuck. Sentiu a pretensão?

Penso que é urgente uma leitura latino-americana da Bíblia. Foi o tempo de comer livros de estrangeiros que não conhecem nada de nossa terra, do seu povo, da sua cultura, dos seus costumes. É preciso abrasileirar a Bíblia e começar a fazer uma hermenêutica apimentada, linguagem que nosso povo entende. Uma das grandes vantagens do método histórico-crítico foi demonstrar que a Bíblia não caiu do céu pronta, há um povo, uma cultura, um lugar. A leitura que os autores do NT fizeram do AT foi aculturada, Paulo mais ainda, helenizou totalmente o Evangelho.

A hermenêutica latino-americana valoriza a vida; valoriza a condição em que a pessoa vive; é um discurso que leva em consideração os anseios antes que doutrina. Há no nosso continente uma leitura bíblica com uma espiritualidade tão profunda que nossos púlpitos não sentem nem mesmo o gosto. Uma leitura que leva em consideração a rica ignorância do povo para com a Bíblia (C. Mesters), tendo como combustível hermenêutico a similaridade do povo/autores bíblicos com o nosso povo e seus dilemas. Aqui Jesus é mais humano e não tanto transcendente; os profetas falam a nossa língua quando condenam a opressão.

Há vários códigos de leitura da Bíblia, europeu, norte-americano, asiático, africano, marxista e filosófico. É preciso estabelecer o nosso código, com muito orgulho, latino-americano, e mais preciso ainda, brasileiro.

4 comentários:

jerielbrito disse...

Estamos viciados na hermeneutica americana, que nos tornou frios em relação a nossa realidade cultural. Agora vemos os prejuízos que acumulamos por abandonar a nossa cultura. Mas ainda há tempo para mudarmos, por isso faz necessário que os escritores brasileiros sejam valorizados e compreendidos. A nossa cultura precisa ser entendida para então aplicarmos a palavra no contexto em que vive o nosso povo.
Parabéns! Um abraço

Alonso S. Gonçalves disse...

É isso mesmo. Este seu comentário é evidente quando entramos em alguma llivraria tida como "evangélica" e vemos a quantidade de textos traduzidos de sucessos de estrangeiros.
Perdemos a dinâmica da nossa cultura, e não aprendemos a ler autores do nosso continente ou de outros que tenham uma leitura diferente.
Muito perspicaz o seu comentário.
Obrigado!

Claudinei Paulino disse...

Acho que a "hermenêutica" apimentada" se tornará possível quando a reflexão teológica batista se abrir para uma teologia da cultura e, portanto, menos dogmática ou confessional. Quando os púlpitos se tornarem mais humanos e menos assertivos. Em relação a leitura, eu diria que o problema não são só livros estrangeiros com teologias importadas, mas também ausência de outras leituras, como literatura clássica etc. Este tipo de leitura nos faz olhar a vida com a possibilidade dos insucessos, não apenas do sucesso, com o trágico, não apenas com o belo. Assim como a Bíblia apresenta!
Parabéns pelo texto!!!

Alonso S. Gonçalves disse...

A teologia precisa abrir diálogo com outras vertentes do pensar humano como filosofia, literatura, ecologia e cultura. Penso que o que falta é a capacidade que nossos pastores/teólogos precisam ter para dialogar com outras áreas, quer seja a cultura, a literatura ou filosofia. A palavra hoje é: interdisciplinariedade.
Ótima obeservação!