23.10.09

REPENSANDO O PROTESTANTISMO

O que poderia ser diferente

Neste mês a Reforma Protestante comemora 492 anos (31 de outubro de 1517). Os herdeiros desse movimento são, indubitavelmente, os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, metodistas e congregacionais. Recentemente postei alguns comentários numa revista online (Ultimato) argumentando que os pentecostais não fazem parte da matriz protestante, a não ser a presença da Bíblia nos cultos que não é tanto valorizada mais que a tal “profecia oral”, e a reação dos internautas pentecostais foram bastante incisivas no sentido de colocar o pentecostalismo no espectro protestante, argumentei que os pentecostais habitam um universo religioso totalmente contraditório do protestantismo em diversos aspectos, desde identidade, teologia e liturgia. Desta mesma ideia compartilham Antonio Gouvêa Mendonça que foi uma das maiores autoridades em protestantismo no Brasil, e Rubem Alves, que dispensa qualquer comentário, ambos colocando a peculiaridade do protestantismo e o antagonismo do pentecostalismo.

A proposta aqui é fazer uma leitura de alguns símbolos do protestantismo e apontar o que poderia ser diferente. Para isso conto com os textos de Rubem Alves*, Antonio Gouvêa Mendonça** e Prócoro Velasques Filho.***

Cultura: até hoje sofremos com a questão cultural, ainda mais aqui no Brasil que não têm na sua raiz religiosa o protestantismo, como nos EUA, mas o catolicismo. A natureza iconoclasta do protestantismo afastou qualquer imagem do imaginário religioso alegando paganismo, compensando essa lacuna, não satisfatória, com a centralidade da Bíblia e a música, daí a crise simbólica no protestantismo, chegando, em alguns segmentos, o repudio da cruz nos templos. É inquestionável a contribuição do protestantismo à cultura moderna, mas Paul Tillich, em seu texto A era protestante, aponta que apesar de não separar o sagrado do profano o protestantismo se afastou da cultura, esquecendo-se que o Reino de Deus se dá quando a cultura em geral é santificada. O prejuízo desse distanciamento é a completa separação da Igreja com a cultura do lugar, uma vez que “conversão” compreende em separar o indivíduo do seu ambiente vivencial. Com isso, o pastor é sempre procurado para ser juiz em determinadas situações que ultrapassam os muros do templo; se os adolescentes podem ou não participar de festa junina na escola; a dança é colocada como pecado e anormal para crentes; até pouco tempo atrás o cinema era demonizado. Lembro-me de que uma Igreja Batista do Estado de São Paulo saiu em carro alegórico no carnaval deste ano e as críticas foram aterrorizantes! Aqui essa distancia Igreja-cultura é mais evidente devido ao protestantismo de missão que enfatizou demasiadamente a regeneração e a santificação, com isso o comportamento se tornou a chave hermenêutica para a fé. O prejuízo disso é a falta da poesia, da boa música popular brasileira, da literatura de qualidade. O que fazer para unir cultura e Igreja no protestantismo? Uma velha questão.

Bíblia: como herança da Reforma, a Bíblia terá sempre a primazia na Igreja. Isso tem o seu lado positivo e negativo. Colocar a Bíblia no centro da fé cristã foi um grande feito de Martinho Lutero, mas o fundamentalismo corrompeu o texto fazendo uma leitura literalista e dogmática. A pretensão de possuir o conhecimento absoluto do texto sagrado levou a dogmatização de doutrinas suprimindo, desta forma, o livre exame, herança da Reforma. Hoje, como bem observa Rubem Alves, não há livre exame da Bíblia, pois não cabem mais o pressuposto da dúvida, da consciência. Assim como a Igreja Católica tem no Magistério a diretriz em que os fieis devem crer, o protestantismo produziu o mesmo com suas “Declarações Doutrinárias”. Qualquer um que acene para outra interpretação é taxado de “herege”. Parece que o texto deixou de produzir consolo, comunhão, experiência com Deus (que, aliás, no protestantismo não vem primeiro, antes o logos que o pathos) e se transformou em bula doutrinaria apenas, ignorando seu contexto histórico, literário e a sua diversidade teológica.

Culto: uma liturgia centralizada na Bíblia, com música contemporânea, o culto protestante tem uma diversidade incrível. Ocorre hoje a perda de sentido em símbolos tradicionais para o protestantismo como batismo e ceia do Senhor. Como a teologia sacrificialista é predominante, a ceia é vista como morte, recordação do sacrifício expiatório. Essa leitura é comum, a menos enfatizada é a dos evangelhos em que o momento de celebração da ceia é momento de alegria, pois se celebra a presença do Ressuscitado no meio da comunidade. Com essa postura diante da ceia, o protestantismo colocou esse símbolo como apenas acessório no culto, diferente da teologia romana que compreende a eucaristia como centro da vida em comunidade e absoluta na liturgia. Como por aqui o protestantismo de missão não separou culto de reunião evangelística, o culto perdeu a solenidade que deveria ter para com Deus, colocando em seu lugar o “pecador” o “perdido”, hoje mais ainda, o “visitante”, onde tudo no culto gira em torno dele, um prejuízo que custa a ser reparado em nossas igrejas. Tanto é assim que em muitas igrejas a ceia é no domingo de manhã onde se entende que há somente os membros da igreja, e não num domingo à noite, pois é culto “público”, evangelístico e aquele momento de celebração não deve ser compartilhado pelos “visitantes”. Tenho insistido em minha comunidade que o culto é para Deus, portanto celebração, adoração. A ceia do Senhor é a única possibilidade de vivenciar a comunhão com Cristo e seu corpo, ou seja, a Igreja. Não é rol de membros que determina se alguém pertence ou não à Igreja, rol de membros é questão administrativa, mas sua participação na comunhão do corpo de Cristo.

Teria outros pontos para abordar no protestantismo que nós tanto gostamos como, por exemplo, a questão da liberdade, a consciência, mas deixa para uma próxima. Fica aqui um desejo de reflexão e uma singela contribuição: vamos continuar nos reformando, pois essa é a principal característica do protestantismo.

* Rubem ALVES. Religião e repressão. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.
** Antonio Gouvêa MENDONÇA. Protestantes, pentecostais & ecumênicos: o campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.
*** Antonio Gouvêa MENDONÇA e Prócoro Velasques FILHO. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.

5 comentários:

Claudinei Paulino disse...

Muito legal o texto! É sempre importante e necessário pensar sobre os rumos que o protestantismo tem tomado. Não há como pensar nisso sem levar em consideração a Reforma, assim como a Modernidade. Principalmente em dias onde o consumo é a principal "liturgia".
Valeu

Alonso S. Gonçalves disse...

Você sempre generoso, obrigado. Estou tentando trabalhar sobre a cultura e o protestantismo, mas para isso leitura obrigatória é a do teólogo e pastor batista Jorge Pinheiro, referência na área. Vamos pensar juntos.

Claudinei Paulino disse...

Seria uma honra pensar junto com vc. O Jorge Pinheiro é muito influenciado por Tillich, cuja teologia é da cultura. Pensar teologia a partir da cultura é sempre motivador. Vamos seguir adiante...valeu.

Natanael Gabriel da Silva disse...

Alonso, obrigado pelo texto

De fato, a igreja cristã corre o risco de não ser cristã, quando se distancia da cultura. Estou aqui retomando o conceito de debilidade do ser em Vattimo, que vê na secularização a salvação da mensagem cristã. O que se observa é que o discurso de inclusão, socorro ao miserável e atendimento aos marginalizados, só para mencionar alguns exemplos, são feitos por grupos não diretamente ligados à igreja, mas que são cristãos em razão de terem nascido numa cultura cristã.

Ultimamente tenho estudado o nosso Nietzsche do Nordeste, Belchior, um anti-cristo, estilo Zaratustra, que preconiza a morte do cristanismo segregador. Numa de suas músicas (Quinhentos anos de quê?), referindo-se a Cristovão Colombo, ele diz: "trazia em "vão" Cristo no nome e em nome dele o canhão" Na linguagem de Belchior "o rinoceronte é mais decente que essa gente demente do Ocidente tão cristão". Isto é, um anti-cristianismo mais cristão que o próprio cristianismo enclausurado nas suas máximas conceituais.

Se puder, dê uma olhada no texto "300" dessa semana, sobre igreja e alienação, que publiquei como pastoral no boletim. Se me permite, vai o endereço: www.ibcs.org.br

Obrigado pelo texto

Alonso S. Gonçalves disse...

Muito obrigado por participar deste singelo blog,
seus comentários são sempre oportunos, valeu mesmo.

Sobre sua observação, estou cada vez mais preocupado
com este distanciamento igreja-cultura. A Igreja esta se
enclausurando-se, os neopentecostais comercializando,
e o evangelho esta cada vez mais sendo barateado.
É triste.

Li o texto no site na IBCS, fiquei pensando quantos
300 há por aí! Percebi também a nossa competência
para discutir assuntos irrelevantes para o nosso
contexto.

Vamos pensar juntos, com Belchior, Vattimo ou
P. Tillich.

Obrigado.