15.6.24

TENSÕES ENTRE OS PRINCÍPIOS BATISTAS E A CONFISSÃO DOUTRINÁRIA

O ramo conhecido como “protestantismo histórico” se alimenta do discurso doutrinário para legitimar o seu espaço, bem como para polemizar com outros grupos. Diferente dos católicos em que o magistério define a doutrina e a liturgia da Igreja; no protestantismo/s o discurso teológico e a prática da doutrina definem quem é “herege” e quem é “ortodoxo”.

Como esse ramo do cristianismo não poderia ter um magistério, procurou resolver o problema de autoridade e legitimidade de outra maneira, qual seja, um texto que desse conta dessa autoridade e servisse como norte de conduta doutrinária para o grupo que não fosse apenas a Bíblia, surgindo as “confissões” ou “declarações de fé”.

A Reforma aparece com um fato inédito: o indivíduo tem competência para ler a Bíblia. O livre exame das Escrituras foi uma prerrogativa da Reforma. Dizia Lutero: “Tudo o que nós sabemos de Deus e da relação homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura. Esta, portanto, deve ser entendida com rigor absoluto, sem interferência de raciocínios e glosas metafísico-teológicas”.

Mas o que foi feito? A Bíblia precisava passar pelo crivo da instituição religiosa. O indivíduo pode ler as Escrituras, mas a sua interpretação não pode contrariar a posição confessional do grupo denominacional. Tem livre exame (pode ler), mas interpretar o que leu não pode.

É preciso ressaltar que há algumas razões das “confissões” ou “declarações” serem redigidas. Destaco algumas: (i) Permite o confronto político-doutrinário com outros grupos; (ii) Coloca o grupo dentro do legado histórico-teológico de um segmento maior, no caso, protestantismo histórico; (iii) Fornece meios para estabelecer julgamentos doutrinários e assim estabelecer quem pode e quem não pode pertencer ao grupo.

Ao longo da história, os Batistas produziram “confissões” ou “declarações doutrinárias”, mas sempre evitaram os “credos” por entender que os mesmos são equivalentes à Bíblia. Walter Shurden demonstra porque os Batistas não adotam “credos”: “Historicamente os Batistas sempre resistiram a todo e qualquer credo. E fizeram isso por duas razões muito claras: primeiro, porque nenhuma declaração doutrinária pode sumarizar adequadamente o mandato bíblico para a prática e a fé. É melhor, portanto, ficar somente com a Bíblia. Segundo, porque os Batistas temem o uso de credos por causa da aparente tendência de transformar o credo em norma e então forçar a submissão a ele”. Não fizeram isso com o “credo”, mas as instituições denominacionais seguem fazendo exatamente isso com a “confissão”.

O ponto aqui é como os Batistas, ao longo dos anos, foram substituindo alguns distintivos que são fruto da sua história honrada e dolorida em nome de uma “ortodoxia”, reafirmando as “confissões” ou “declarações” como equivalentes e, em alguns casos, até mesmo acima das Escrituras? Ainda que afirmem que as Escrituras são “única regra de fé e prática”. Por isso entendo tratar de uma tensão entre Princípios Batistas e Confissão Doutrinária. Elenco duas delas.

Quando os Batistas aderem às “confissões” ou “declarações” e as tratam como “normativas”, estão também ignorando, traindo, ferindo, suprimindo, os Princípios Batistas mais caros aos Batistas, quais sejam: Bíblia como regra de fé e prática e o livre exame da mesma; a autonomia da igreja local; a liberdade de consciência do indivíduo. Em outros grupos isso não seria um problema, mas entre os Batistas é um problema porque os Princípios estão na gênese dos Batistas.

TENSÃO I – DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA versus BÍBLIA E LIVRE EXAME

A Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira se tornou um documento autoritativo, definidor de condutas e cerceador de liberdades, além de ignorar um dos primeiros Princípios Batistas oriundos da Reforma protestante, “a Bíblia como regra de fé e prática”.

No preâmbulo da Declaração Doutrinária da CBB é lido que: “Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições”. Ainda que haja um contexto histórico, uma vez que toda e qualquer “confissão” ou “declaração” está dentro de um problema, a Declaração Doutrinária da CBB tem a intenção de “reafirmar posições”. Isso significa que ela tem a prerrogativa de afirmar o que pode e o que não pode em termos de doutrina e conduta para as igrejas Batistas.

No Estatuto da CBB, há uma ratificação quanto à Declaração Doutrinária da CBB que jamais poderia ser redigida, levando em conta os Princípios Batistas. O que está lá no “Art. 2º - § 1º Para serem filiadas na Convenção, as igrejas deverão satisfazer os seguintes pré-requisitos: I – declarar, formalmente, que aceitam as Sagradas Escrituras como única regra de fé e prática e reconhecem como fiel a Declaração Doutrinária da Convenção”. O Estatuto da CBB está colocando na mesma prateleira a Bíblia e a Declaração Doutrinária da CBB. Em outras palavras, a Declaração Doutrinária da CBB se coloca como a única capaz de interpretar fielmente as Escrituras Sagradas e as igrejas filiadas perdem, por tabela, a sua autonomia e os indivíduos a sua liberdade.

Quando a OPBB-SP redige o seu Estatuto, diferente da OPBB, reafirma o que está no Estatuto da CBB: “Art. 3º - A Seção é constituída de pastores batistas, nela filiados, membros de igrejas filiadas à Convenção Batista do Estado de São Paulo, aqui chamada CBESP, que aceitam os princípios, doutrinas e práticas adotadas pela Convenção Batista Brasileira, aqui chamada de CBB, e aceitam como fiel interpretação das Escrituras Sagradas a Declaração Doutrinária da CBB”.

Há quem entenda que a CBB e sua Declaração Doutrinária tem a prerrogativa de definir o que é certo ou errado e as igrejas que são filiadas devem seguir a sua orientação. Nesse sentido, Jerry Stanley Key ao comentar “Escrituras Sagradas” na Declaração Doutrinária da CBB, sentencia: “A Convenção não apenas tem o direito, mas a responsabilidade de dar a orientação a respeito desta e de outras doutrinas básicas e fundamentais às entidades que cooperam com ela e, por extensão, às igrejas a ela afiliadas”. Na mesma esteira, John Landers afirma o contrário: “Em caso de diferença de interpretação bíblica, cada igreja batista tem que ler e interpretar a Bíblia para si mesma. De acordo com este princípio, cada igreja define sua própria maneira de proceder em questões duvidosas”. O que temos aqui? O primeiro tem como pressuposto de que a “declaração” é, por si, normativa quando instrumentalizada pela CBB. O segundo tem no seu horizonte os Princípios Batistas e não há como negá-los, mesmo quando igrejas locais estão diante de problemas doutrinários.

TENSÃO II – CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA versus IGREJA LOCAL

Nos últimos anos, devido os desafios eclesiológicos e teológicos, a CBB tem recorrido à Declaração Doutrinária como mecanismo de interferência na igreja local. De maneira sistemática, a CBB tem se envolvido em disputas doutrinárias e teológicas que não tem competência para fazer. Munida com a Declaração Doutrinária, sentencia igrejas a partir de um purismo doutrinário que julga ter. É preciso ressaltar que nem sempre foi assim. Nos últimos 15 anos, as sucessivas lideranças da CBB vêm agindo dessa forma, desfigurando o “modo de ser” Batista. A CBB tem na sua história e trajetória figuras que sempre procuraram evidenciar os Princípios Batistas. É recente essa “interferência” política na igreja local e a constante tentativa de arrogar para si a prerrogativa de “instância superior” dos Batistas. Isso ficou evidente quando a atual diretoria da CBB, juntamente com o Conselho Geral, elegeu um “chanceler” para atuar nas convenções estaduais. Um cargo/função inexistente na administração, mesmo o Estatuto da CBB (Art. 17) deixar explícito que a Diretoria Administrativa e o Conselho Geral só poderem eleger um “Diretor Executivo” e não criar um outro cargo/função sem a anuência do plenário da CBB em Assembleia Anual.

É legítimo essa postura? Não!

Em recente disputa entre a CBB e uma igreja Batista, foi redigido isso em um documento oficial encaminhado ao Poder Judiciário: “A Convenção Batista Brasileira (CBB) é o órgão máximo da denominação batista no Brasil. [...] É ela quem define o padrão doutrinário e unifica o esforço cooperativo dos Batistas do Brasil”. Percebam a gravidade da afirmação: “A CBB define o padrão doutrinário”. Quem deu essa prerrogativa para a CBB? A entidade paraeclesiástica entende que a tem porque detém uma Declaração Doutrinária. Nesse sentido aqui pouco importa o que a Bíblia diz ou qualquer recurso que poderia advir dela, antes a Declaração Doutrinária já definiu o sim e o não.

Isaltino Gomes Coelho Filho dizia que “a Declaração Doutrinária da CBB não era normativa, mas indicativa do que a maioria dos Batistas creem”. Parece que muitos esqueceram disso.

Por conta dessa tensão, que um juiz de primeira instância decidiu por afastar o pastor da igreja por entender que a CBB funcionava como uma espécie de instância máxima dos Batistas em termos de padronização, ou seja, a CBB estava acima da igreja local. Uma vez a CBB decidindo pelo grupo litigioso, o juiz entendeu que a CBB tinha a palavra “final” sobre a igreja local.

A igreja local perde a sua autonomia garantida por um dos Princípios Batistas e quem assume é uma instituição paraeclesiástica, que não tem legitimidade neotestamentária para ser/agir como igreja.

Interessante que a mesma Declaração Doutrinária que é acionada para suprimir liberdades e afrontar consciências, assegura que a igreja local é quem tem essa incumbência bíblica, qual seja, a legitimidade bíblica de decidir suas questões. No artigo VIII – Igreja da Declaração Doutrinária da CBB está assim: “As igrejas neotestamentárias são autônomas, têm governo democrático, praticam a disciplina e se regem em todas as questões espirituais e doutrinárias exclusivamente pela Palavra de Deus, sob a orientação do Espírito Santo”. John Landers comentando sobre a atuação do Espírito Santo na igreja, irá afirmar que “o Espírito Santo habita em todos os crentes e, por esta razão, pode manifestar-se através do plenário da igreja”. Seria ele ingênuo ou um idealista da doutrina do Espírito Santo e sua atuação bíblica na igreja sendo um fiel defensor dos Princípios Batistas?

ALGUNS DESAFIOS

Estamos diante de alguns desafios. Por um lado, estamos observando uma instituição criada pelos Batistas em 1907 para ser uma catalizadora de esforços, arrogando para si prerrogativas que não têm. Por outro lado, estamos cada vez mais cientes de que as igrejas Batistas sofrem com a ausência de uma boa teologia bíblica e pastores/mestres qualificados para ensinar teologicamente o rebanho.

Agrega-se a isso, um movimento de cunho fundamentalista organizado que tem procurado colocar as “confissões” como credos para os Batistas para fazer, mais ainda, a separação, a distinção dos “fiéis” e dos “infiéis”, forçando a uma uniformidade doutrinária e fazendo um lobby junto à CBB. Ficou claro isso quando a CBB tentou “revisar” a Declaração Doutrinária de 1986.

Para ficar ainda mais tenso tudo isso, há uma tentativa de “calvinizar” os Batistas a partir da sua origem inglesa, reivindicando a Confissão de Fé Batista de 1689 como sendo a mais legítima de todas, portanto, a que deveria ser seguida como um retorno às “origens”.

Numa era conhecida como “pós-denominacional”, os Batistas conseguirão se manter dentro dos seus Princípios ou serão tragados por um institucionalismo encampado pela CBB, tornando-se em algo que A. B. Langston tanto temia que a CBB se transformasse um dia em uma “super-Igreja ou espécie de Igreja-mãe”?

10.5.24

E OS NOSSOS CULTOS, COMO ESTÃO?

Eu cresci em uma igreja Batista em que o culto era tido como “tradicional”. O que isso significa? Que era uma igreja em que a celebração seguia um certo rito considerado “formal”, ou seja, havia o coral (inclusive eu participava), o piano/órgão como instrumento padrão para os hinos congregacionais (Cantor Cristão ou HCC), com a regência do ministro de música da igreja. A liturgia era pensada a partir de uma lógica, com início, meio e fim e não havia nada desconectado no culto. Os hinos, os cânticos, a leitura bíblica e o sermão, estavam todos alinhados com o tema do culto. Não se cantava sobre a graça de Deus e o pastor pregava sobre Davi e Golias. Isso não acontecia de maneira nenhuma. É claro que havia momentos de entusiasmo e isso ficava no período dos cânticos espirituais (os louvores), mas dentro de uma mesma dinâmica litúrgica. Tenho saudade e boas lembranças desse tempo. Fui feliz e servi ao Senhor na comunidade de fé, a qual reconheceu em mim o chamado para o ministério pastoral, encaminhou para a faculdade teológica, custeou o curso e, depois de concluído o curso, também ordenou ao pastorado.

O tempo passou e algumas coisas mudaram e as igrejas, de um modo geral, acompanharam esse movimento. Até porque, ela vive dentro de uma cultura e segue as tendências que a cultura, de certa maneira, impõe através de uma série de fatores: mídias, redes sociais, moda, personalidades.

Minha provocação com esse texto é o quanto as igrejas Batistas mudaram suas liturgias e alguns itens que outrora faziam parte, passaram a não fazer mais por conta das tendências.

Dentro dessa dinâmica que conhecemos bem, parece que, no percurso, fomos perdendo algumas características que nos definiam enquanto igreja evangélica no Brasil de tradição protestante com um recorte bem específico dentro do protestantismo histórico, portanto, Batista. Os batistas são um recorte dentro do protestantismo de origem inglesa; um recorte dentro do conjunto denominacional protestante norte-americano; um recorte dentro da chamada igreja evangélica brasileira; um recorte dentro das igrejas históricas protestantes no Brasil. Com isso, temos uma “certa” identidade que segue um “certo” segmento no protestantismo que leva o nome de Batista.

Com as mudanças no campo evangélico brasileiro, as diferentes identidades das igrejas foram embaralhadas. Não dá tempo expor isso aqui, mas a cultura gospel de consumo ajudou muito nesse processo. As igrejas se apropriaram do conceito de business e isso não tem data para acabar.

O que estamos vendo é um amalgama de igrejas fazendo a mesma coisa em termos de estrutura física; cantando as mesmas músicas; os pregadores pregando os mesmos temas. E ainda assim, seguem dizendo aos quatro cantos que são diferentes dos seus vizinhos.

O que diferencia uma Igreja Batista de uma Church? Entendendo que o nome “church” não é apenas uma “americanização” do termo “igreja”, antes é um estilo de culto, de pregação, de espaço físico, de ênfase teológica (quando tem uma). Há igrejas Batistas que adotaram em seus templos e slogans o termo “church” como uma maneira de sinalizar que estão antenadas ao “novo momento”.

Com isso, igrejas Batistas não estão se diferenciado de igrejas tidas como independentes que atuam no campo neopentecostal, por exemplo.

São igrejas que não há mais uma liturgia definida (que não precisa ser, necessariamente aquela que coloquei no início desse texto sobre a igreja que cresci). O que não tem em termos litúrgicos? Não tem, principalmente, um propósito teológico com a celebração. Assim, o culto é tido como um show; o pastor como um coach; a igreja como uma church; as pessoas se veem em um meeting. O pastor não usa Bíblia, antes ele faz questão de pregar com o seu macbook; não há oração formal com a igreja; não há leitura bíblica em comunidade; os cânticos são voltados para as demandas pessoais dos presentes; e os momentos intimistas são carregados de mensagens melódicas e adocicadas. E quando são questionados sobre essa modalidade litúrgica, respondem prontamente de que a igreja mudou para acompanhar as novas tendências do momento. E isso é tido como sinal de “espiritualidade”.

É uma discussão que gera controvérsias, eu sei. Mas o que vejo é uma falta de equilíbrio, de sensibilidade, de conhecimento da tradição (não tradicionalismo), do conteúdo bíblico-teológico e, até mesmo, de inteligência, em alguns casos.

Celebração em que a comunidade não tem teologia saudável, qualquer coisa é assimilada.

Na tradição protestante, a liturgia é tida como um dos pilares da presença da igreja no mundo. Aliás, a palavra liturgia é de origem grega e significa serviço para o povo. O momento de celebração é a oportunidade que a igreja tem para sinalizar a obra e mensagem de Jesus, além de deixar bem claro que as estruturas desse mundo são pecaminosas e que somente pela mensagem da cruz de Cristo e na esperança da ressurreição, as coisas terão o seu desfecho dentro da perspectiva divina. Não dá para flertar com isso. A igreja não pode abdicar de ser uma comunidade que entende o seu papel no mundo e celebra, por antecipação, o futuro de Deus.

Na minha experiência como pastor de uma comunidade que, ao longo dos anos, alterou a sua liturgia, alguns itens do culto são indispensáveis, quais sejam: a Bíblia lida de maneira comunitária e pregada expositivamente; os cânticos apurados teologicamente; a primeira oração pública é de adoração, aquela que coloca Deus no seu devido lugar. A tradição batista é lembrada a partir de cânticos que fizeram parte da história da denominação. A celebração é alegre, festiva, mas também trinitária. Há espaço para mudanças, mas não sem levar em consideração a teologia do culto, em primeiro lugar, a tradição batista e a leitura crítica da cultura brasileira.