Em 2014 Hollywood
lançou dois filmes épicos tendo a Bíblia como roteiro. Um filme do diretor e roteirista
Darren Aronofsky, “Noé” causou estranheza porque o público “evangélico” julgou
tratar de um filme “bíblico”, ou seja, um filme que “retrataria o que está
escrito na Bíblia” (ouvi isso de um colega). Quem viu, logo percebeu que não se
tratava disso, e o diretor procurou marcar a trama de uma outra forma, apenas
usando a narrativa bíblica como ponto de partida. No mesmo ano, conhecemos “Êxodo:
deuses e reis”, de Ridley Scott. No longa, “Moisés” não é visto romanticamente
como um pastor, mas como um general
que defende, num primeiro momento, os interesses do Egito. É alguém preparado
para batalhas. O que chamou mais atenção nem mesmo foi essa imagem que o filme
rompe (Moisés, como um pastor), mas sim a representação de “Deus” como um menino, uma criança até que invocada e
que apenas Môche via. Saindo do
cinema, ouvimos algumas pessoas (presumivelmente de igreja), o comentário: “como
pode, colocar ‘Deus’ como uma criança”. O espanto foi duplo. No mesmo filme
Moisés deixa de ser o “bonzinho” de Deus e Javé é feito menino. Um Deus-menino
no filme de Scott, não foi muito legal, mas no Natal... Bem, aí já é outra coisa.
É recente o filme (2017) “A cabana” do diretor Stuart
Hazeldine. Como nos filmes anteriores, os comentários nas redes sociais e
textos em blogs procuraram dar uma
opinião favorável ou contrária ao enredo do filme. Os comentários, vindo principalmente
de pessoas com pertença religiosa de segmento “evangélico”, mesclaram entre elogio e depreciação.
É possível ver comentários nas redes sociais e vídeos no YouTube de pessoas com alguma relação
com igreja, quer sejam frequentadores ou membros de comunidades, ou sem nenhuma filiação institucional, colocando suas
impressões sobre o filme. Algumas dessas pessoas, em seus depoimentos, revelaram ter
“descoberto” Deus no filme, ou seja, o filme funcionou como um gatilho para impulsionar a fé delas e
abrir suas percepções teológicas sobre Deus, o que demonstra que a igreja, per si, não tem mais o controle sobre isso para algumas pessoas.
Para esses, o filme é “maravilhoso”, porque retrata Deus de uma “maneira
diferente”. Outros ainda, viram no filme o combustível para “heresias”, porque coloca
Deus (e a trindade) de maneira
inadequada e isso fere o que a igreja
entende sobre “Deus” e sobre a “trindade”.
Os diversos comentários em redes sociais, blogs e
vídeos sobre o filme girou em torno da representação
de Deus feita pela atriz conceituada Octavia Spencer, ou seja, por ser
mulher e afro-americana. Isso bastou para que reações surgissem vindas do
universo eclesiástico conservador. O filme foi associado à propagada feminista, por colocar “Deus” como uma mulher, recusando assim a figura paterna de Deus-Pai. As feministas querem livrar a sociedade de
uma imagem masculina de Deus e,
filmes como “A cabana”, favorece o discurso das teólogas feministas. Não gostaríamos
de discutir esse tema aqui, até porque o objetivo do texto é outro, mas negar que
a imagem de um Deus masculinizado e ocidental
tenha contribuído para uma concepção distorcida
de Deus na história, causando inúmeros equívocos nas interpretações
bíblicas e alimentado posturas sexistas e
misóginas, não é mais possível
ignorar.
Quando há um entendimento de que Hollywood comete erros ao retratar temas
bíblicos em suas superproduções, reivindicando, assim, ter a primazia de uma interpretação “correta”
sobre os mesmos temas apenas nos
bancos das igrejas, esse entendimento não atentou para as principais mudanças que o mundo passa/ou e que
envolve, dentre outros meios de disseminação cultural, o cinema.
A luta de setores conservadores das igrejas é
legítima, porque a contemporaneidade e suas transformações favorece isso. Os conservadores
procuram lutar contra um pluralismo de princípio. A ideia de que o monopólio
da religião não está mais dado às igrejas e suas instituições de controle
do sagrado, assusta... A assim
denominada globalização, favoreceu o
rompimento de fronteiras antes mais definidas, tornando o mundo uma aldeia global. O contemporâneo é marcado
por entre-lugares, ou seja, não há
mais fronteiras fixas e tudo e todos
estão lançados ao que vem, ao que está-aí e, concomitantemente, ao que não-está, caracterizando um tempo
em que a busca por sentido se
encontra em um templo como também em um shopping-center.
Assim, as reações de conservadores são legítimas nesse contexto, porque há uma
constatação “de que existem maneiras de viver e crer diferentes daquelas que
são correntes [até então] e comuns a determinados grupos que partilham o mesmo
conjunto de crenças” (Eliane Moura da Silva). Essa constatação paradoxal é perceptível inclusive em Hollywood, que vem fazendo teologia com
seus longas. Essa tensão entre diversidade (pluralismo) e conservadorismo (exclusivismo), está
presente nas telas de maneira secularizada.
Nesse sentido, houve quem vibrasse com os filmes “Deus não está morto” e “Você acredita?”, do mesmo modo houve quem demonizasse “O código Da Vinci” e,
agora, “A cabana”.
Acontece que Hollywood
está fazendo o papel das igrejas na sua função de doutrinar. O problema é que as salas de cinema ficam mais cheias
que as salas da EBD e isso, querendo
ou não, incomoda bastante setores conservadores. A quantidade de pessoas que
vão aos cinemas ver filmes como “A cabana”, não é a mesma que comparece aos
cultos e encontros doutrinários. Isso ocorre por que o cinema é mais atrativo? Não necessariamente. Ocorre porque não é de
hoje que há um crescente deslocamento do religioso,
onde as igrejas, como instituições do depósito simbólico de bens religiosos,
não tem mais a prioridade. Com isso, como bem esclarece Clifford Geertz, “a
religião se tornou cada vez mais um objeto flutuante, desprovido de toda
ancoragem social [...] em instituições estabelecidas. Em lugar e em vez da
comunidade solidária agregada por representações coletivas (o sonho de
Durkheim), surgiu uma rede à maneira de Georg Simmel, difusa e desprovida de
centro, conectada por afiliações genéricas, multidirecional e abstrata. A
religião não se enfraqueceu como força social. Pelo contrário: parece se ter
reforçado no período recente. Mas mudou – e muda cada vez mais – de forma”. Com
esse esclarecimento pontual de Geertz, esperamos outros filmes hollywoodianos em que o elemento religioso esteja presente. Mas isso não
significa concorrência com segmentos religiosos (igreja, por exemplo), antes se
dá porque as ofertas de bens
religiosos está cada vez mais plural,
o que significa que as instituições religiosas são uma, dentre outras, opções. Dentre essas opções, “A cabana” é uma delas...
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