Uma
leitura a partir dos indícios
Está na Record, José do Egito.
Não por acaso, é possível ouvir vez ou outra alguém
mencionar as narrativas sobre José. Ainda mais com a telenovela trazendo um
herói impoluto, capaz de atravessar as mais difíceis situações e não se “corromper”
diante das tentações da vida como dinheiro e sexo. Não por acaso, esse exímio administrador
sofre com calúnias e tramas e mesmo assim continua inabalável.
Quando ouvimos as narrativas sobre José
apresentada em Gênesis a partir do capítulo 37, impressiona a trajetória do
jovem predileto do pai e odiado pelos irmãos.
Um jovem que tem sonhos um tanto prepotentes,
como os feixes de seus irmãos se inclinarem para o seu feixe. Quando a
interpretação do sonho representa domínio de José sobre os irmãos, a revolta
destes é ainda maior em cima de um rapaz promissor e dotado de tantos talentos
e habilidades.
Toda a leitura de um texto abre possibilidades. Nenhuma
leitura é ausente de pré-conceitos (uma
linguagem gadameriana). A hermenêutica está aí para demonstrar caminhos para a
compreensão do texto e esta se dá a partir do sujeito leitor que agrega ao
texto sentido, mesmo que o próprio texto seja compreensível o bastante para ter
um sentido unívoco (o que é difícil, na maioria das vezes).
A leitura das narrativas de José é lida a partir
do herói. Um jovem que se tornou escravo; um escravo que se tornou
administrador; um administrador injustiçado; um injustiçado preso; um preso que
não é lembrado; um sonhador que tem seu sonho interpretado; um intérprete que
vira governador; um governador que “salva” o Egito da destruição fatal; um
benevolente que ajuda os irmãos com fome. Esse é o enredo aplaudido.
Olhando o texto a partir dos indícios, é
possível perceber que a narrativa não está tão isenta de problemas e
pretensões.
Se a hipótese de que a narrativa de José foi construída
na época do rei Salomão for viável, estamos diante de uma narrativa Javista. É possível que o Javista tenha como contexto os últimos
anos da monarquia de Davi ou o começo do reinado de Salomão (século X a.C.). Se
assim for, há uma grande possibilidade de estar se fazendo uma comparação entre
o sistema faraônico e salomônico. Este último seria o alvo das críticas.
José seria o personagem que, distante da sua
saga como herói, mas agora como governador
do Egito, apresenta Salomão. Quando José sonha que seu feixe está sendo
reverenciado pelos feixes dos irmãos, não há uma pretensão de ser rei sobre eles? Quando os irmãos
planejam matá-lo, não está dizendo que as tribos
rejeitam o sistema monárquico? Quando Jacó e sua família decidem ir para o
Egito, não representaria a passagem do sistema tribal para um sistema
tributário? São perguntas a serem consideradas se o ponto de partida for o período
salomônico.
O sistema tributário (Gn 47,13-26) do Egito é atribuído
a José.
Primeiro todo o dinheiro do povo para as mãos do
Faraó; depois todos os rebanhos são recolhidos para o Faraó; em sequência, as
terras são recolhidas para o Faraó; por fim todos os homens se tornam escravos
do Faraó. Apenas os sacerdotes ficam
isentos de todas essas medidas.
Como se tudo isso não fosse ruim, o texto
apresenta o povo agradecendo a José (tu nos salvaste a vida, Gn 47,25).
José protagoniza a maior falência do povo egípcio
e depois dos hebreus. Não por acaso
que José se casa com a filha do sacerdote.
O trigo no período das “vacas magras” não é
dado, mas vendido. Não há fraternidade nisso. O povo perde tudo, dinheiro,
animais, terras e a liberdade.
Lendo as narrativas a partir de outros indícios,
é possível ver um José orgulhoso diante dos irmãos. Provavelmente não era uma
pessoa tão humilde assim, foi quando escravo. Quando se viu na liderança da
casa de Potifar, a mulher deste o
acertou na sua autoestima. Ele tinha dado a “volta por cima”. Alguém que tem
cargo de chefia na casa do chefe e ainda uma mulher linda e poderosa (as
mulheres tinham direitos civis avançados no Egito) dando indícios de que o
queria, foi a grande reviravolta na sua vida. Do poço para a “glória”. A cena
de José fugindo e deixando suas roupas, demonstra uma tensão entre os dois. Algo
que chegou muito perto, pois não se tratava de uma capa, mas sim a roupa do
corpo.
A narrativa de José pode ter alguns enfoques. O mais
notório é a saga do herói.
José criou o sistema tributário no Egito e
tornou tudo e todos escravos do Faraó, assim como ele foi um dia, quando
vendido pelos seus irmãos. Casou-se com a filha do sacerdote, aquele que alimentava a ideologia do Estado e o status da religião egípcia. Mesmo que a
história tenha seu final feliz, os indícios mostram que as coisas não foram tão
bem como muitos costumam imaginar, principalmente o José da Record.
Consulta
J. Shreiner (Ed.). Palavra
e mensagem do Antigo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Teológica/Paulus, 2004 (p.
134-135).
Lília Dias Marianno. Relacionamentos complicados da Bíblia: estudos para grupos
familiares. Rio de Janeiro: Eagle Book, 2015 (p. 80-81).
Sandro Gallazzi. Por uma terra sem mar, sem templo, sem lágrimas: introdução a uma leitura militante da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1998 (p. 29-32).
Sandro Gallazzi. Por uma terra sem mar, sem templo, sem lágrimas: introdução a uma leitura militante da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1998 (p. 29-32).
Valmor da Silva. Deus ouve o clamor do povo: teologia do êxodo. São Paulo: Paulinas,
2004 (p. 14-15).
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