Há 498 anos, na cidade de Wittemberg,
Martin Lutero pregou suas 95 teses. Esse evento é conhecido como ponto inicial
da chamada Reforma Protestante. Partindo da perspectiva triunfalista da
história, Lutero é tratado como o grande divisor d’águas e herói do
protestantismo, e todo o processo da reforma do séc. XVI é visto como uma
verdadeira epopeia. Dessa forma, e como é comum nas nossas datações
comemorativas, fazem do dia 31 de outubro um illud tempus (tempo sagrado, tempo originário ou tempo mítico) e da
Alemanha um axis mundi (centro do
mundo mítico). Não quero desqualificar a participação do monge agostiniano, mas
simplesmente sinalizar exatamente sua contribuição na história de longa duração
para reforma da igreja cristã, a qual não começa e muito menos termina na
Alemanha.
Para ser mais claro, o dia 31 de outubro
foi como uma espuma na beira da praia precedida por ondas de ideias e
movimentos religiosos da história da Igreja. Como bem disse Le Goff, “a Nova
História mostra que esses ‘grandes acontecimentos’ são em geral apenas a nuvem
– muitas vezes sangrentas – levantadas pelos verdadeiros acontecimentos
sobrevindos antes desses, isto é, as mutações profundas da história”.
Atrás de Lutero temos, por exemplo, os
Goliardos, que carnavalizavam, como diria M. Bakhtin, a igreja oficial com
indisciplinas e sátiras. Nas costas luteranas temos outros como Guilhermo de
Ockham, que já dizia, bem antes de Lutero, que a moralidade do ser humano não
depende da sua própria ação, mas da aceitação da vontade de Deus/graça de Deus
que pode santificar antes que haja o arrependimento. Em seu “Brevilóquio Sobre
o Princípio Tirânico”, Ockham, por incrível que pareça, já questionava o poder
papal e sua tradição. Como ilustração, também, cabe aqui o caso de Orleans, em
1022 d.C, quando 14 clérigos da alta hierarquia foram queimados por
questionarem a graça do batismo, a eucaristia, a remissão dos pecados mortais e
outros pontos importantes do Cristianismo medievo. O que falar dos Cátaros, um
grupo de “hereges” proclamadores da centralidade do Novo Testamento para
experiência da fé? Não podemos esquecer também dos Valdenses que deixariam
qualquer reformado boquiaberto em relação à valorização das Escrituras. Devemos
lembrar também dos Místicos – dos quais Lutero foi grandemente devedor – com
suas regras e direta relação com o Deus da Bíblia. Na mesma lista temos
Wycliffe, Huss e Savonarola que dispensam comentários.
Lutero foi uma ponta do iceberg,
favorecido por contextos social, cultural, econômico e religioso propícios para
o desencadeamento de ondas transformadoras iniciadas na Europa e expandidas
para todo o mundo, criando não somente novos cristianismos (se assim posso
dizer), mas também outras formas de pensar a vida e o homem na arte, na
política, na economia etc.
Se em Lutero não temos o início da
Reforma, muito menos encontramos nele o fim. O a posteriori do dia 31
contribuiu para a formulação do processo da Sola Scriptura, Sola Fides, Solus
Christus, Sola Gratia e Soli Deo Gloria. Depois de 1517 a história da Igreja
Cristã também foi presenteada com grupos de alas mais radicais e
revolucionárias, como, por exemplo, os anabatistas, que inquestionavelmente
continuaram o processo reformador.
Minha intenção não é negar o evento
“Lutero”, mas colocá-lo no seu devido lugar, como um momento na linha
histórica, muito grande por sinal, que ainda não tem o seu ponto final, pois a
proposição de Gisbertus Voetius (1589-1676) ,“Ecclesia Reformata et Semper
Reformanda Est” (Igreja reformada, sempre se reformando) está muito viva, mesmo
que fora de seu contexto, e deve ser levada até às últimas consequências.
Por isso, nós também estamos no bojo do
"Semper Reformanda Est", porque o dia 31 de outubro de 1517 e os
séculos posteriores não são o fim do processo. Existe ainda muita covardia em
voltar às Escrituras por medo de perder o poder sobre as massas piedosas;
insiste entre nós a negação, em vários contextos, da segurança unicamente na
graça, por causa da presença de diversos tipos de legalismos; encontramos ali e
acolá artifícios fracos ladeando a fé; ainda se preservam, em muitos níveis,
objetos e rudimentos além do Cristo; e vários que canalizam a glória para si,
utilizando os mais ardis artifícios do mundo evangélico. Exatamente por essas
coisas sou cônscio de que os desafios ainda estão bem vivos e a Reforma em
andamento.
(Kenner Roger Cazotto Terra)
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