Assumir a vida com suas ambiguidades não é tarefa muito fácil. Fazer o
processo da reflexão a partir da existência sem subterfúgios alienantes como, a
meu ver, o dinheiro e, em alguns casos ou na maioria deles, a religião como
fuga da realidade circundante é um desafio.
Quem se propõe a pensar a vida como ela é – como Nelson Rodrigues
costumava dizer –, é o Qohélet (Eclesiastes), literatura sapiencial da Bíblia
Hebraica que entrou no cânon judaico com muita desconfiança e descrédito. Um
texto repleto de sentenças onde a acidez da vida se sobressai e o futuro é
incerto e a atividade humana com todas as suas ocupações, principalmente o
acumulo de riqueza é hebel, ou seja, puro vapor, passageiro e efêmero. O
Qohélet busca por algo que possa ser tangível, só não trata da
existência de Deus, no mais ele discuti com perspicácia as vicissitudes da vida.
Ele não é profeta, muito menos moralista, é alguém que procura enxergar a
discrepância entre o que foi ensinado e o que acontece de fato. Daí o seu
pessimismo em relação aos discursos prontos de contentamento.
No caso de Nietzsche, a vida para ele é como
Lulu Santos já profetizou: nada do que
foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará. A
vida vem em ondas como o mar, num indo e vindo infinito.
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche
expõe três transformações que representa a passagem para encarar a vida de
outra maneira: o camelo – corre carregado do peso existencial insuportável,
trata-se da solidão, da angústia no deserto; o leão – a força, o desejo da liberdade
do sentido, o tomar a vida pelas mãos; e o menino – metáfora da liberdade e da
reconstrução, inocência, um começo, um brinquedo. Na metáfora do menino nasce
um novo ser, em que a justiça, o amor, a vida, o lúdico estão presentes. Com a
figura do menino, Nietzsche quer a realização de uma vida sem rancor pela vida,
sem ciúme, é o dizer sim à vida e suas contingências, é amar a sua realidade em
todas as suas manifestações para que possa se transformar em leão com a leveza
do menino.
A
contribuição de Qohélet e Nietzsche
se dá a partir de um olhar para a vida com coragem e, ao mesmo tempo, com amor.
O Qohélet não está preocupado com a
retribuição do bem ou do mal, ele está observando a vida e dela tira conclusões
muito óbvias: porque o destino do homem é
o destino dos animais, e a mesma desgraça os espera: como morre um, assim morre
o outro. A morte é aniquilação, não retribuição. O Qohélet não espera recompensa para os supostos méritos em vida;
todos tem o mesmo destino, ou seja, assim é a consequência da vida.
Em outro
momento Qohélet faz uma leitura do
mundo que para alguns soaria fatalista demais: vi debaixo do sol que não é dos
ligeiros a carreira, nem dos fortes a batalha, nem tampouco dos sábios o pão,
nem tampouco dos prudentes as riquezas, nem tampouco dos entendidos o favor,
mas que o tempo e a oportunidade ocorrem a todos. Que também o homem não sabe o
seu tempo; assim como os peixes que se pescam com a rede maligna, e como os
passarinhos que se prendem com o laço, assim se enlaçam também os filhos dos
homens no mau tempo, quando cai de repente sobre eles. Aqui há, para usar uma
linguagem nietzschiana, uma transvaloração da moral, ou
seja, de que os justos sofrem e os maus são recompensados. A vida
é para ser vivida com sua acidez que provoca angústias e desconforto, mas é
neste sentido que se dá a vida como ela é, ou seja, não há nada de novo debaixo
do sol, as coisas vem e vão, surge e desaparece, nasce e morre. Assumindo a
vida com suas ambiguidades, o ser humano pode entender que todo o trabalho é
para a sua boca e, no entanto, seu apetite nunca estará satisfeito.
O pessimismo é um recurso
filosófico de Qohélet, uma vez que ele acentua o aspecto negativo da vida
e não vê nenhum sentido positivo para o curso da história. Ele vê a vida e o
elemento mais significativo dela, pelo menos no seu tempo, o trabalho e
conclui: quando avaliei tudo o que minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu
tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás
do vento; não há nenhum proveito no que se faz debaixo do sol. Para Qohélet a vida é cheia de futilidades e
aspirações inúteis, ou seja, hebel – vento. Chegar a essa conclusão
é, por si só, uma afirmação da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário