Uma
leitura de João 20,1-18
O Evangelho de João é fascinante. Um
texto polissêmico onde a diversidade de origens é patente. A função do redator no texto permite alocar e
deslocar estruturas do texto e assim perceber a configuração e os
entrelaçamentos de textos em outros textos.
É o caso de João 20,1-18. Uma unidade de
texto que contempla duas narrativas e o redator,
no versículo 2, faz a abertura dessa “unidade”.
Aqui um exercício a partir desse texto e
sua polissemia...
O texto tem material de Maria Madalena,
do redator, de Pedro e do discípulo amado.
Segue João 20,1-18, dividido entre os
três.
Maria
Madalena
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Redator
|
Discípulo
amado e Pedro
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(1) No
primeiro dia da semana, bem cedo, estando ainda escuro, Maria Madalena chegou
ao sepulcro e viu que a pedra da entrada tinha sido removida. (11) Maria,
porém, ficou à entrada do sepulcro, chorando. Enquanto chorava, curvou-se
para olhar dentro do sepulcro (12) e viu dois anjos vestidos de branco,
sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés.
(13) Eles lhe perguntaram: “Mulher, por que você está chorando?” “Levaram
embora o meu Senhor”, respondeu ela, “e não sei onde o puseram”. (14) Nisso
ela se voltou e viu Jesus ali, em pé, mas não o reconheceu. (15) Disse ele: “Mulher,
por que está chorando? Quem você está procurando?” Pensando que fosse o
jardineiro, ela disse: “Se o senhor o levou embora, diga-me onde o colocou, e
eu o levarei”. (16) Jesus lhe disse: “Maria!” Então, voltando-se para ele,
Maria exclamou em aramaico: “Rabôni!” (que significa Mestre). (17) Jesus
disse: “Não me segure, pois ainda não voltei para o Pai. Vá, porém, a meus
irmãos e diga-lhes: Estou voltando para meu Pai e Pai de vocês, para meu Deus
e Deus de vocês”. (18) Maria Madalena
foi e anunciou aos discípulos: “Eu vi o Senhor!” E contou o que ele lhe
dissera.
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(2) Então correu ao encontro de Simão Pedro e do
outro discípulo, aquele a quem Jesus amava, e disse: “Tiraram o Senhor do
sepulcro, e não sabemos onde o colocaram!”
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(3) Pedro e
o outro discípulo saíram e foram para o sepulcro. (4) Os dois corriam, mas o
outro discípulo foi mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. (5) Ele
se curvou e olhou para dentro, viu as faixas de linho ali, mas não entrou.
(6) A seguir Simão Pedro, que vinha atrás dele, chegou, entrou no sepulcro e
viu as faixas de linho, (7) bem como o lenço que estivera sobre a cabeça de
Jesus. Ele estava dobrado à parte, separado das faixas de linho. (8) Depois o
outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, também entrou. Ele viu e
creu. (9) (Eles ainda não haviam compreendido que, conforme a Escritura, era
necessário que Jesus ressuscitasse dos mortos.) (10) Os discípulos voltaram
para casa.
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A tradição
de Maria Madalena nas narrativas da ressurreição
é algo indubitável. Nos Evangelhos Sinóticos as mulheres estão presentes e
Maria Madalena é uma delas (Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,10), mas apenas no
Evangelho de João Maria Madalena aparece, sem a companhia de outras mulheres,
tal o seu protagonismo. Até que houve tentativas em obnubilar a figura dela,
mas não foi possível. O cristianismo primitivo
teve na sua gênese o testemunho de
mulheres quanto ao marco inicial da
fé.
O referido texto (Jo 20,1-18) pode ser
lido como:
- Uma disputa de liderança, Maria
Madalena, o discípulo amado e Pedro. Daí,
o redator estaria procurando colocar
a todos debaixo do mesmo sol.
- Ou ainda, uma tentativa do redator em conciliar a comunidade joanina com a comunidade petrina (representando aqui a
“Grande Igreja”).
É possível haver uma “disputa” entre
lideranças, mas é possível haver também o trabalho do redator em agrupar narrativas,
independentes, procurando dar coesão e legitimidade à autoridade petrina, sem,
contudo, menosprezar a figura de Maria Madalena e do discípulo amado.
Dessa
forma, João 20,1-18 não pode ser considerado um texto coerente, no sentido de
ser uma mesma unidade. São duas narrativas diferentes: a primeira os versículos
1 e 11-18 e a segundo os versículos 3-10, com o redator fazendo a ligação com o versículo 2.
Houve
uma inserção dos versículos de 3 a 10 dentro da perícope de Maria Madalena que
originalmente, são os versículos de 1 e 11-18. Essa segunda narrativa apresenta
coesão, existindo uma ligação dos fatos com o versículo primeiro. Enquanto que
a segunda não tem ligação com a narrativa de Maria Madalena. O versículo 2 foi
inserido estrategicamente pelo redator,
para fazer a junção entre as duas perícopes.
Uma
vez a comunidade joanina, precisando
de apoio para sobreviver aos ataques dos cristãos-gnósticos (cisma reconhecido
em 1João), foi razoável uma troca de interesses. Essa é a perspectiva do
exegeta Raymond E. Brown.
Uma
vez se incorporando a “Grande Igreja”, que passava por um processo de institucionalização, tendo Pedro como principal
representante, a comunidade joanina passa
a adotar a hierarquização da
comunidade quando incorporada à “Grande Igreja”. Por outro lado, a “Grande
Igreja” adota a cristologia alta (do logos) da comunidade joanina adequando-a a cristologia sinótica. Esse capítulo e, em especial o capítulo 21 do
Evangelho de João, nítida interpolação no evangelho,
é uma maneira do redator alinhar a comunidade joanina ao representante sênior
da “Grande Igreja”, Pedro.
Não
por acaso, Pedro é o primeiro a inspecionar e entrar no sepulcro no capítulo 20,
mas é o discípulo amando quem vê e
crê. Pode haver aqui, representada pela corrida dos discípulos, a ideia de que
há uma rivalidade e competição entre as lideranças, como também, a partir das perícopes
juntas, a hipótese de um agrupamento em torno de uma liderança hegemônica,
Pedro.
Sendo
assim, os versículos 3 ao 10, a narrativa de Pedro e do discípulo amado, se
configura como uma narrativa inserida, posteriormente, com o propósito de adequação
da comunidade joanina ao parâmetros político-eclesiais
da “Grande Igreja”.
Se
admitida à hipótese de que o autor de 1João seja o mesmo redator do Evangelho de João (opinião de Helmut Koester), há,
portanto, fortes indícios de uma adequação da comunidade joanina à “Grande Igreja” sendo o capítulo 20,1-18 um
conjunto de narrativas onde, propositalmente, o redator alocou Pedro no meio da narrativa de Maria Madalena quando
da redação final do Evangelho de
João, reconhecendo a autoridade de Pedro (o que essa figura representa) alinhando
assim às igrejas petrinas.
* Uma pesquisa quanto ao papel de Maria
Madalena no capítulo 20: Cf. SILVA, Francisca Rosa da. Maria Madalena e as mulheres no cristianismo primitivo. Dissertação
de Mestrado (Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo). São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.
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