Que as chamadas “cartas pastorais” é
objeto de disputa quanto a sua (não) autenticidade paulina é um fato.
Pesquisadores do Novo Testamento se
dividem quanto à autoria das “cartas pastorais” que, aliás, levou esse nome a
partir do século XVIII. Entre os pesquisadores há, por exemplo, D. A. Carson (Introdução ao Novo Testamento, Vida
Nova, 1997) que sustenta a autoria paulina
das “pastorais”. Em contraposição, W. G. Kümmel não aceita a autoria paulina das “pastorais” (Introdução ao Novo Testamento, Paulus, 1982).
Vale a pena comparar os argumentos desses dois pesquisadores.
Hoje, a autoria paulina das “pastorais” continua sendo debatida, mas há consenso,
principalmente na academia, de que as
“pastorais” provavelmente seja fruto de discípulos
de Paulo, portanto, um cristianismo
que está adentrando o segundo século. Biblistas
de destaque, tanto europeus, norte-americanos, latino-americanos e
brasileiros (protestantes e católicos), vem sinalizando para as “pastorais” um
período pós-paulino. Nesse sentido
elas seriam pseudoepígrafas,
pertencentes ao círculo de discípulos de Paulo que procuram lidar
com problemas de ordem doutrinária nas
comunidades da região de Éfeso.
As “pastorais” tomam como modelo
eclesiológico as instituições do império
romano. Nelas, está sendo retratado um período de institucionalização e a liderança reflete isso. Se antes a ênfase
estava na liberdade e na profecia, onde tod@s podiam exercer os seus dons (contexto paulino), com as “pastorais” a liderança é centralizada no bispo ou presbítero. A fim de combater os “falsos” ensinos e os “falsos”
mestres (1Tm 4,1-3), aparentemente de vertente gnóstica, as “pastorais” validam duas armas para conter os falsos ensinos
e seus mestres: o clero (bispo/presbítero) e o credo (a sã doutrina).
É dentro desse contexto que a liderança
feminina será deslegitimada. Não somente por adversidades externas (falsos
ensinos), mas também dificuldades internas como, por exemplo, o status de ensinador(a) na comunidade que
estava em disputa. Por esta razão a intimação de 1Tm 2,9-11 onde é,
expressamente, solicitado que a “mulher não ensine”. Bem, se há esse pedido é
porque há mulheres ensinando e elas não estão ficando caladas na comunidade. Elas
estão exercendo liderança de alguma
maneira. A julgar pelo texto, essa liderança não está sendo exercida
beneficamente.
Parece que o contexto de 1Tm 2,9-11 está
relacionado a uma disputa de poder quanto
a liderança comunitária, e nessa disputa algumas mulheres estavam envolvidas. Se
o(s) autor(es) está lidando com disputas quanto à liderança, principalmente no
ensino, da comunidade, pedidos como “não aceites denúncia contra presbítero”
(1Tm 5,19) devem ser considerados, uma vez que há na comunidade pessoas (alguém?)
que estão querendo dominar a comunidade se impondo em relação ao presbítero. Uma das ferramentas que essas
pessoas estariam utilizando para dominar e se impor seria o dinheiro. Talvez mulheres ricas, com status de poder dentro da comunidade,
querem se impor e dominar a comunidade e, principalmente, os homens. Não por
acaso que o texto de 1Tm 2,9-11, pede para que mulheres não estejam presentes
na comunidade “com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendioso”. Se há essas
mulheres no grupo, o ensino proposto é de que haja “contentamento” e não “lucro”,
uma vez que o amor ao dinheiro “é a
raiz de todos os males” (1Tm 6,6-10).
Se há mulheres querendo dominar a comunidade e a liderança masculina, há também mulheres que se dedicam à comunidade de maneira piedosa. Trata-se da ordem das viúvas que havia inclusive “inscrição” (1Tm 5,9-16).
As viúvas
tinham um ministério na
comunidade e isso deixa o autor(es) preocupado com esse grupo também,
principalmente com as viúvas jovens. Fato
é que há uma liderança feminina de viúvas na comunidade e o autor(es) não
pode deslegitimar essa liderança como fez com as supostas mulheres ricas.
A lista de qualificações que se pede ao presbítero
(bispo) e às viúvas é bem
parecida:
1Tm 3,1-7 1Tm
5,9-16
“esposo de uma só mulher” “esposa de um só
marido”
“irrepreensível” “recomendada pelo
testemunho”
“criando os filhos” “tenha
criado filhos”
“hospitaleiro” “exercitado
hospitalidade”
Ocorre que havia uma ordem e, ao que tudo indica, não havia
idade para pertencer a ela, contanto que fosse viúva. Elas exerciam uma liderança
na comunidade e é isso que o autor(es) quer delimitar, ou seja, ele(s) está
tendo problemas com mulheres ricas e
olha a ordem das viúvas com certo
cuidado a fim de limitar a atuação
delas na comunidade, por isso os critérios que ele(s) procura estabelecer sendo
um deles o principal, 60 anos idade mínima. Quanto às viúvas novas, o autor(es) pede que sejam rejeitadas, porque podem querer se casar novamente.
Assim como não há desempenho de funções
para com o presbítero (bispo – 1Tm
3,1), apenas qualificações, a ordem das
viúvas de igual modo, apenas qualificações morais e espirituais. Sendo assim,
há indícios fortes aqui de que havia uma liderança
feminina no contexto das “pastorais” que, provavelmente, se dedicavam a
fazer visitas às famílias da comunidade bem como orações nas casas. Daí a
preocupação do autor(es) quanto a essas visitas, principalmente de mulheres que
estavam sendo seduzidas por falsos ensinos.
No texto, há uma tentativa de limitar a atuação do ministério feminino estabelecendo uma idade mínima
(60 anos), mas não há uma proibição em relação ao que exerciam, pelo contrário,
havia certo incentivo para que fossem “mestras” (Tt 2,3).
Sendo assim, uma “ordem dos pastores”
não há nas “pastorais”, mas uma ordem das
viúvas sim, mesmo a contragosto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário