Já ouvi
de pregadores; já li; já presenciei apelos sensacionalistas; já vi o ministro
de música (no conhecido “momento de louvor” – nomenclatura infeliz) nos
cânticos fazer terrorismo com a comunidade. É o famoso chavão do “inimigo das
nossas almas”.
Sem
dúvida a realidade do Mal é um fato. Mas no imaginário religioso brasileiro a
concepção do demoníaco é uma herança
do catolicismo português que cultivou em terras tupiniquins a compreensão de que o Mal, personificado pelo diabo,
pode causar danos. Daí as fitinhas do Bom Jesus da Lapa no braço para o
fechamento do corpo contra os espíritos maus; santinhos colados nos vidros dos
carros ou dentro da carteira para proteção e outras coisas parecidas com isso.
Como herança
disso o chavão – “inimigo das nossas almas” – pegou no protestantismo por conta
da acentuada dicotomia do corpo versus
alma que é tão presente na Teologia Católica (contribuição de Santo Agostinho
que faz uma leitura da filosofia de Platão e Aristóteles onde a alma é superior ao corpo e cristianiza o
conceito).
Sendo
assim, a frase tem lugar garantido no tal vocabulário evangeliquês. E não somente ela, mas outras como “o diabo quer lhe destruir” ou “vamos
quebrar as setas inimigas” ou ainda “quando o crente ora, deve esperar
retaliação do diabo”.[1]
Embora haja tantos outros chavões, crendices e idiossincrasias
que deveriam ser abolidas do contexto “evangélico”, penso que está frase poderia
muito bem cair no esquecimento. Ficaria grato se não pudesse ouvir na igreja ou
ler em algum lugar novamente.
Externo meus motivos.
1. Não há nenhum texto bíblico com essa frase. Isso
se deve porque a Teologia Bíblica não separa a alma do corpo. Tanto no Primeiro
Testamento (AT) quanto no Segundo Testamento (NT), alma (tradução da
Septuaginta de nêfesh em hebraico) é o ser humano em sua inteireza, não dicotômico, mas
unitário.
2. A Bíblia não trata de corpo sem alma ou alma
sem corpo. A Bíblia trata de ressurreição
e não da alma, mas da pessoa. Não é uma imortalidade, mas sim um estar com Deus. Não há antecedência de uma
alma (concepção grega e não bíblica).
3. Conceber que exista algo ou alguém que pode “roubar”
ou até mesmo ter o “poder” de se intrometer no plano salvífico é colocar a
graça de Deus e a obra de Cristo em um plano menor, quase obsoleto. Desde quando
a graça de Deus pode ser ameaçada quanto à sua operosidade? Não foi Paulo quem
disse que nada, digo nada, poderá nos separar do amor de Deus? (cf. Rm
8,33-39).
4. Aceitar a legitimidade desse chavão, agora
no âmbito Batista, é desconsiderar um dos principais princípios dos Batistas de
que uma vez salvo, sempre salvo. É claro
que esse adágio dos Batistas não quer dizer que o cristão nunca comete pecado ou
ainda de que o Mal não o possa atingir. Antes significa que a salvação mediante
a graça de Deus, o dom do Espírito Santo e a participação no corpo de Cristo (a
igreja) não poderia ter nenhum tipo de inimigo
possível para invalidar essas realidades espirituais.
Concluo que contra a graça de Deus não poderia
ter nenhum inimigo; que alma é coisa de grego e que, portanto, não seria possível
alguém ser inimigo dela, pelo menos biblicamente, porque somo pessoa diante de Deus e não fantasmas.
[1] Devo essas frases a Ricardo Gondim – http://www.altairgermano.net/2007/08/frases-evanglicas-que-o-pr-ricardo.html
Um comentário:
Belo texto! Infelizmente a falta de uma teologia bíblica mais aprofundada, capaz de discernir entre o que é realmente Bíblia, o que é pensamento grego e o que é senso comum evangélico, tem gerado um superficialismo muito grande. A graça é o que nos sustenta. Cristo nos é suficiente. Sua reflexão é uma realidade.
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