Esse sentimento é o espírito de Natal. Embora a data não seja essa, e há quem acredite piamente que Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro, a tradição cristã comemora um dia, mas não é o dia, como algo exato, mas a lembrança do menino Jesus.
As narrativas do Natal nos evangelhos de
Mateus (Mt) e Lucas (Lc) quer sempre nos ensinar algo. Não é apenas o relato de
um nascimento, mas algo a mais. É fato que as duas narrativas (Mt e Lc) não são
idênticas. Se alguém estiver procurando nelas fatos históricos, no sentido
cartesiano de pensar, está equivocado. Os textos não querem ser prova de nada,
pelo contrário, querem evocar uma celebração – a graça de Deus se manifestou a
todos e começou inofensivamente num menino, Jesus. Portanto, nas narrativas, os
autores teologizaram em torno do
nascimento cada um com um enfoque teológico diferente. Enquanto Mt olha para
José, Lc vê Maria; enquanto em Mt José e Maria moram em Belém, em Lc eles vão
para Belém; enquanto Mt coloca Jesus a caminho do Egito – por uma questão
comparativa que o autor faz entre Moisés e Jesus –, Lc Jesus volta para Nazaré.
Em Mt são os “magos”; em Lc são os “pastores”.
Interessante notar que ambos, Mt e Lc,
colocam um fundo político na narrativa. Em Lc vemos a sua preocupação com os
desfavorecidos, com os marginalizados, com os oprimidos pelo sistema político
(representado pelos romanos), social (a divisão de classes entre os judeus) e
religioso (o templo de Jerusalém como dominador do imaginário religioso). Ele
tem um olhar todo especial para as mulheres, é por isso que logo no início de
seu texto, Lc coloca como protagonistas Maria e Isabel. Numa cultura em que
mulher não tinha nenhum valor, quer político, social, econômico ou religioso,
Lc dá proeminência às mulheres. Não é por acaso que o texto de Lc 1, 31-53 está
o que ficou conhecido como o “Cântico de Maria” ou o Magnificat. O anúncio do nascimento de Jesus, na teologia de Lc,
provocou uma renovação de esperanças e forças; era a concretização dos sonhos
do povo de Israel. Lc coloca na boca de Maria uma canção subversiva,
contestatória, revolucionária. O nascimento de Jesus passa a significar a
inversão dos valores, outrora considerados corretos; o nascimento passa a
significar a redistribuição dos bens. Para Lc o nascimento de Jesus é um
protesto, da parte de Deus, contra o abuso do necessitado pelo rico; é, ao
mesmo tempo, a libertação dos oprimidos e dos fracos. O “Cântico de Maria”
significa a quebra de barreiras e preconceitos contra a mulher e o início da
igualdade nas relações de gênero. Ocorre o surgimento de novas relações, não
mais baseadas na exploração e no descaso pelo outro, mas na equidade. Se
outrora o orgulho, aquele que se considera acima dos outros, detinha o poder,
ele é destronado; se outrora os poderosos/ricos menosprezavam e condenavam o
pobre ao descaso, agora ele é esvaziado de sua arrogância. Os humildes, aqueles
que, no entender de Lc, não almejam o poder, são exaltados. É uma leitura
politizada.
No caso de Mt a figura política é
Herodes. O capítulo 2 Mt usa como construção literária um recurso conhecido
como midraxe – é a explicação de um
texto bíblico feita livremente com
alegorias, imagens, comparações e até mesmo fantasias. Mt quer equiparar Jesus
à Moisés e para isso ele, habilidosamente, constrói um texto em que Jesus e
Moisés são semelhantes. Assim como o Faraó procurou matar crianças no Egito e
Moisés é poupado milagrosamente, Herodes faz o mesmo; assim como Moisés vai para
o Egito, Jesus tem o mesmo caminho; assim como Moisés sobe ao Monte Sinai e
recebe os Dez Mandamentos, Jesus profere as dez (contando com o versículo 12)
bem-aventuranças no monte.
No capítulo 2, Mt está colocando
propositadamente a figura de Herodes, o Grande, em contraste com o menino rei
Jesus – “nos dias do rei Herodes”. Há um conflito aqui entre dois reis que são
distantes em propósito e diferentes em condições.
Herodes – este vivia os meandros da política. Estava acostumado com o jogo de poder. A sua busca era expandir sua riqueza e influência na conturbada região. Gabava-se de ser “amigo” do imperador romano e todos que eram contra ou representava alguma ameaça ao seu domínio ele procurava eliminar. Por conta disso matou os três filhos e a esposa. Herodes governava a partir de construções e embelezamento de cidades, inclusive foi financiador da reforma do templo de Jerusalém.
Herodes representa a inveja, o interesse próprio, o poder simplesmente por ter. Ele é o ícone da nossa sociedade em que as relações são estabelecidas pelo interesse.
Quando os “magos” procuram um rei que não seja ele, prontamente ele quer encontrar o menino a fim de mata-lo. Mt faz uma criança suplantar o notório e poderoso Herodes; ele faz uma flor parar um canhão; ele faz uma luz, ainda tão pequena, dissipar as densas trevas. A opulência do castelo de Herodes não foi suficiente diante da manjedoura. Há outro rei, exclama os “magos”, e este não é Herodes e mais, os presentes são para ele.
A manjedoura quer dizer Deus conosco. Um Deus que veio nos mostrar que a ordem das coisas pode mudar. A manjedoura é sinal de simplicidade, amor, acolhimento, visitação. O palácio gélido de Herodes é sinal de poder, sem graça, de força, sem autoridade, de ostentação de uma sociedade que busca nas relações de poder e na riqueza se encontrar.
A pergunta dos “magos” continua válida para a nossa sociedade: onde está o recém-nascido nisso tudo?
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