20.12.11

DO PALÁCIO DE HERODES À MANJEDOURA DE JESUS – UMA METÁFORA DO NATAL

Nessa época do ano ficamos mais sensíveis às coisas. Parece que olhamos para a nossa condição humana e percebemos que as coisas poderiam ser melhores. Pena que isso só ocorre neste período.

Esse sentimento é o espírito de Natal. Embora a data não seja essa, e há quem acredite piamente que Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro, a tradição cristã comemora um dia, mas não é o dia, como algo exato, mas a lembrança do menino Jesus.

As narrativas do Natal nos evangelhos de Mateus (Mt) e Lucas (Lc) quer sempre nos ensinar algo. Não é apenas o relato de um nascimento, mas algo a mais. É fato que as duas narrativas (Mt e Lc) não são idênticas. Se alguém estiver procurando nelas fatos históricos, no sentido cartesiano de pensar, está equivocado. Os textos não querem ser prova de nada, pelo contrário, querem evocar uma celebração – a graça de Deus se manifestou a todos e começou inofensivamente num menino, Jesus. Portanto, nas narrativas, os autores teologizaram em torno do nascimento cada um com um enfoque teológico diferente. Enquanto Mt olha para José, Lc vê Maria; enquanto em Mt José e Maria moram em Belém, em Lc eles vão para Belém; enquanto Mt coloca Jesus a caminho do Egito – por uma questão comparativa que o autor faz entre Moisés e Jesus –, Lc Jesus volta para Nazaré. Em Mt são os “magos”; em Lc são os “pastores”.

Interessante notar que ambos, Mt e Lc, colocam um fundo político na narrativa. Em Lc vemos a sua preocupação com os desfavorecidos, com os marginalizados, com os oprimidos pelo sistema político (representado pelos romanos), social (a divisão de classes entre os judeus) e religioso (o templo de Jerusalém como dominador do imaginário religioso). Ele tem um olhar todo especial para as mulheres, é por isso que logo no início de seu texto, Lc coloca como protagonistas Maria e Isabel. Numa cultura em que mulher não tinha nenhum valor, quer político, social, econômico ou religioso, Lc dá proeminência às mulheres. Não é por acaso que o texto de Lc 1, 31-53 está o que ficou conhecido como o “Cântico de Maria” ou o Magnificat. O anúncio do nascimento de Jesus, na teologia de Lc, provocou uma renovação de esperanças e forças; era a concretização dos sonhos do povo de Israel. Lc coloca na boca de Maria uma canção subversiva, contestatória, revolucionária. O nascimento de Jesus passa a significar a inversão dos valores, outrora considerados corretos; o nascimento passa a significar a redistribuição dos bens. Para Lc o nascimento de Jesus é um protesto, da parte de Deus, contra o abuso do necessitado pelo rico; é, ao mesmo tempo, a libertação dos oprimidos e dos fracos. O “Cântico de Maria” significa a quebra de barreiras e preconceitos contra a mulher e o início da igualdade nas relações de gênero. Ocorre o surgimento de novas relações, não mais baseadas na exploração e no descaso pelo outro, mas na equidade. Se outrora o orgulho, aquele que se considera acima dos outros, detinha o poder, ele é destronado; se outrora os poderosos/ricos menosprezavam e condenavam o pobre ao descaso, agora ele é esvaziado de sua arrogância. Os humildes, aqueles que, no entender de Lc, não almejam o poder, são exaltados. É uma leitura politizada.

No caso de Mt a figura política é Herodes. O capítulo 2 Mt usa como construção literária um recurso conhecido como midraxe – é a explicação de um texto bíblico feita livremente com alegorias, imagens, comparações e até mesmo fantasias. Mt quer equiparar Jesus à Moisés e para isso ele, habilidosamente, constrói um texto em que Jesus e Moisés são semelhantes. Assim como o Faraó procurou matar crianças no Egito e Moisés é poupado milagrosamente, Herodes faz o mesmo; assim como Moisés vai para o Egito, Jesus tem o mesmo caminho; assim como Moisés sobe ao Monte Sinai e recebe os Dez Mandamentos, Jesus profere as dez (contando com o versículo 12) bem-aventuranças no monte.

No capítulo 2, Mt está colocando propositadamente a figura de Herodes, o Grande, em contraste com o menino rei Jesus – “nos dias do rei Herodes”. Há um conflito aqui entre dois reis que são distantes em propósito e diferentes em condições.

Herodes – este vivia os meandros da política. Estava acostumado com o jogo de poder. A sua busca era expandir sua riqueza e influência na conturbada região. Gabava-se de ser “amigo” do imperador romano e todos que eram contra ou representava alguma ameaça ao seu domínio ele procurava eliminar. Por conta disso matou os três filhos e a esposa. Herodes governava a partir de construções e embelezamento de cidades, inclusive foi financiador da reforma do templo de Jerusalém.

Herodes representa a inveja, o interesse próprio, o poder simplesmente por ter. Ele é o ícone da nossa sociedade em que as relações são estabelecidas pelo interesse.

Quando os “magos” procuram um rei que não seja ele, prontamente ele quer encontrar o menino a fim de mata-lo. Mt faz uma criança suplantar o notório e poderoso Herodes; ele faz uma flor parar um canhão; ele faz uma luz, ainda tão pequena, dissipar as densas trevas. A opulência do castelo de Herodes não foi suficiente diante da manjedoura. Há outro rei, exclama os “magos”, e este não é Herodes e mais, os presentes são para ele.

A manjedoura quer dizer Deus conosco. Um Deus que veio nos mostrar que a ordem das coisas pode mudar. A manjedoura é sinal de simplicidade, amor, acolhimento, visitação. O palácio gélido de Herodes é sinal de poder, sem graça, de força, sem autoridade, de ostentação de uma sociedade que busca nas relações de poder e na riqueza se encontrar.

A pergunta dos “magos” continua válida para a nossa sociedade: onde está o recém-nascido nisso tudo?

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