O falecido escritor português José Saramago sempre demonstrou interesse pela religião e o cristianismo especificamente em seus romances. O mais emblemático deles é o Evangelho segundo Jesus Cristo.
Não é novidade nenhuma de que José Saramago foi ateu, ou pelo menos deixou isso claro em suas entrevistas e textos. Mesmo assim, o ganhador do Nobel de Literatura (1998) nunca deixou o tema sobre Deus, religião e cristianismo de fora de suas aventuras literárias. No Evangelho segundo Jesus Cristo, o português faz duras críticas ao “Deus” sanguinário e prepotente a partir de seu humanismo, fazendo uma clara distinção entre esse “Deus” e Jesus Cristo.
Há vários momentos no texto que merecesse a devida atenção, mas um momento é interessante, quando o diabo quer o perdão de “Deus”. Segue:
A proposta do diabo a “Deus”?
“Que tornes a receber-me no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei de cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em que fui um dos teus anjos prediletos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava”.
Com muita arrogância, “Deus” pergunta por que razão deveria perdoar ao diabo? Ele responde:
“Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita, então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará, e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis, mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores, tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa maneira devesse ser sempre”.
Depois que o diabo apresenta sua proposta a “Deus”, há um silêncio tenso, uma expectativa.
Pois bem, qual a resposta?
“Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora”.
A leitura bíblica de José Saramago é pessimista; a imagem que ele tem de “Deus” é cínica. Acentua ele: “o Senhor dos Exércitos falava a linguagem do relâmpago e do trovão. Gostava de aparecer numa nuvem de fogo, isso nos momentos de bom humor, quando se divertia jogando praga e mais praga sobre o faraó apavorado. Não levava desaforo para o céu. Sodoma, não quis nem saber, fulminou”.
Para José Saramago Deus é inimigo do ser humano, mas ao mesmo tempo ele tem em Jesus Cristo o retorno a um humanismo solidário: “então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque Ele não sabe o que fez”.
Pena que José Saramago não tenha conhecido o Deus Abbá de Jesus; pena que a sua crítica continua válida para muitos cristãos que compreende uma imagem tão fatalista de Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário