É senso comum dizer que os batistas têm na Bíblia o seu principal princípio: “A Bíblia como regra de fé e prática”. Esse famoso adágio é o lema de muitos que, diante de algumas situações, afirma: “A Bíblia é a nossa única regra de fé e prática”. Mas este não é o ponto aqui. O ponto do texto é: quem na Bíblia é critério para se aplicar a “regra de fé e prática”?
Quando se estabelece que a “Bíblia é regra de fé e prática”, abre-se uma discussão quanto à interpretação das Escrituras. Reconhecendo que a interpretação não se dá de maneira unívoca, ou seja, com mais de 2000 anos de história da Igreja, já conhecemos o suficiente as disputas bíblico-teológicas e o consenso em termos de interpretação bíblica. Mas os batistas, ao longo da sua trajetória, sempre colocaram em segundo plano declarações de fé e doutrinas estabelecidas em Concílios. É aí que reside o ponto fulcral para os batistas quando procuram delimitar o critério para a “regra de fé e prática”, ou seja, colocar um ponto hermenêutico para que a interpretação aconteça. Essa delimitação está na Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (CBB) e que alguns querem alterar, talvez porque cause um certo desconforto em lidar com a pluralidade.
Vamos ao ponto.
Por um lado, a Declaração Doutrinária da CBB reafirma um princípio caro aos batistas: a liberdade de consciência. Com isso, a Declaração Doutrinária da CBB quer ser instrumento de síntese para a boa compreensão das Escrituras e o faz dando um parâmetro para isso. O professor Jerry Stanley Key, que atuou por longos anos no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, entendia que a “Convenção não apenas tem o direito, mas a responsabilidade de dar a orientação a respeito desta e de outras doutrinas básicas e fundamentais às entidades que cooperam com ela e, por extensão, às igrejas a ela afiliadas”. Dessa forma, para Key, é uma prerrogativa da CBB dar orientações quanto a temas bíblico-teológicos, ainda que essas orientações não sejam impositivas, mas indicativas. Dito isso, é bom pontuar algumas orientações que a Declaração Doutrinária da CBB dá quanto à hermenêutica batista das Escrituras.
Para a Declaração Doutrinária da CBB, as Escrituras Sagradas “é a Palavra de Deus em linguagem humana”. Ela não é a revelação, mas sim “o registro da revelação que Deus fez de si mesmo aos homens”. Mesmo que a Convenção por meio de sua Declaração Doutrinária advoga legitimidade na orientação para as igrejas afiliadas, a Bíblia continuará sendo “a autoridade única em matéria de religião, fiel padrão pelo qual devem ser aferidas a doutrina e a conduta dos homens”. Uma igreja Batista não pode abrir mão das Escrituras, pois ela é a bússola da comunidade e o critério de decisões e práticas da igreja. Uma igreja local precisa ter uma interpretação coerente das Escrituras, somente assim ela terá condições de viver a sua fé e prática. E qual seria o método hermenêutico que auxiliaria a igreja nas suas questões de fé e prática? Não é complicado, ao contrário, muito simples.
Para a Declaração Doutrinária da CBB há um método para se fazer uma boa e saudável hermenêutica das Escrituras, qual seja: “Ela deve ser interpretada sempre à luz da pessoa e dos ensinos de Jesus Cristo”. Este é o único critério! Jesus, sua pessoa e ensinos, se constitui a chave para uma boa hermenêutica das Escrituras. O principal método hermenêutico é uma pessoa e seus ensinos e não declarações de fé, ainda que elas tenham o seu lugar na história e na tradição da Igreja. Portanto, o centro de uma boa interpretação das Escrituras para a Declaração Doutrinária da CBB está baseado em uma pessoa como ponto inicial e final. Ao que tudo indica, essa questão é crucial no entendimento da Declaração Doutrinária da CBB. Uma igreja Batista, a fim de manter a sua coerência, precisa ater-se aos ensinos de Jesus e sua caminhada. Ela precisa olhar para os evangelhos e enxergar as ações, gestos, palavras e ensinos de Jesus, com o intuito de imprimir na comunidade de fé esses gestos, ações, palavras e ensinos. A coerência da igreja local se dá, de acordo com a Declaração Doutrinária da CBB, quando a mesma segue o Cristo e procura colocá-lo, o máximo possível, em contato com seus membros.Ainda que a Declaração Doutrinária da CBB estabeleça um único critério de interpretação das Escrituras (Jesus Cristo), é sabido da competência da igreja local em aferir suas questões a partir de suas conclusões hermenêuticas, uma vez que a interpretação não se dá em seu caráter unívoco. É nesse sentido que a advertência de Landers é oportuna: “Em caso de diferença de interpretação bíblica, cada igreja batista tem que ler e interpretar a Bíblia para si mesma. De acordo com este princípio, cada igreja define sua própria maneira de proceder em questões duvidosas”. Uma sentença como essa precisa ser desdobrada. John Landers, foi professor no Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil e autor do livro Teologia dos princípios batistas, está afirmando que a interpretação bíblica, tendo Jesus como guia hermenêutico, é de competência exclusiva da igreja local, ou seja, a ela cabe a definição de como proceder em questões “duvidosas”. É claramente dado à igreja local essa capacidade, do contrário estaria negando a atuação do Espírito Santo sobre ela. Mesmo que a Declaração Doutrinária da CBB coloque como critério Jesus Cristo, é sabido que há várias questões que o próprio Jesus não definiu, por não ser alvo no seu tempo ou por ser questões morais e culturais do Ocidente. Nesse sentido, a igreja interpretante e tendo Jesus como hermeneuta, precisa ler o seu contexto a partir da orientação do Espírito Santo, e assim proceder em questões que não há consenso, ou, como diria Landers, temas “duvidosos”. Com isso, a igreja local se entende como continuadora da vontade de Cristo quando decide suas questões sob a orientação do Espírito Santo.
Existe a possibilidade de uma igreja local não ter a atuação do Espírito Santo? Para John Landers isso é praticamente impossível. Segundo ele, a igreja “é uma associação formada pela ação do Espírito Santo”. Com isso, caso seja possível ignorar a ação do Espírito Santo na vida de uma igreja local, seria o mesmo que admitir que tal comunidade não é igreja, o que soaria muito estranho de acordo com o Novo Testamento. Uma igreja local, tanto na Declaração Doutrinária da CBB quanto na compreensão de Landers, se dá por intermédio do Espírito Santo. Isso é tão evidente na eclesiologia batista, que Landers chega a se perguntar qual deveria ser a base para afirmar quando uma igreja deixa de ser igreja. A resposta que ele encontra é essa: “É impossível responder a esta pergunta com segurança. Basta cada igreja se esforçar para aproximar-se cada vez mais dos ideais de Cristo”.
Ao que parece, há uma certa resistência a esses critérios teológicos e alguns não veem com bons olhos uma eclesiologia com embasamento teológico que faculta uma plena autonomia para a igreja local. Há quem queira tutelar, dizer o que pode e o que não pode e, se possível, usar o aparato político-teológico da CBB para monitorar e policiar possíveis desvios que um determinado grupo julgue fora de um padrão ortodoxo. Mas antes disso, é preciso lidar com um dado já consolidado: a igreja local tem legitimidade para agir, pensar, refletir, julgar e orientar seus membros a partir da pessoa e ensinos de Jesus, sendo ele o único critério hermenêutico, sob a orientação do Espírito Santo. Sendo Jesus o único critério hermenêutico, a igreja, então, procura balizar sua conduta e reflexão a partir das ações, gestos, palavras e ensinos de Jesus Cristo. Agora fica a pergunta: o que Jesus falaria e faria hoje diante de dilemas éticos, mazelas sociais e temas controversos?
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