Pode até parecer redundância, mas não é. Embora fundamentalistas e conservadores tenham a mesma percepção quanto à “defesa” da doutrina, há modos diferentes de entender como essa postura apologética é conduzida. Com os primeiros (fundamentalistas), o diálogo é quase nulo; com os segundos (conservadores), é possível dialogar porque estes já se deram conta há algum tempo que as coisas mudaram e o mundo não é mais como antigamente.
O caro leitor/a deve saber que o conceito “fundamentalismo” é um termo que surgiu no contexto religioso protestante nos EUA, mas que já ultrapassou o âmbito protestante estadunidense há muito tempo, principalmente depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. O termo ficou popularizado e hoje pode ser visto sendo empregado não apenas no contexto religioso.
Regra geral, o movimento fundamentalista funcionou como uma reação, num primeiro momento, à modernidade e as mudanças que esta provocou em diversas áreas do comportamento humano, mas principalmente no campo teológico. No aspecto teológico, o fundamentalismo foi uma reação ao que ficou conhecido como “liberalismo teológico”, causando enormes conflitos em denominações, seminários teológicos e universidades lideradas por respectivas alas, fundamentalista e/ou liberal. Mas o ponto aqui não é essa história, mas sim como os conservadores passaram a se desvincular dos fundamentalistas por entender que a reflexão precisava acontecer e o recrudescimento a partir de posturas ferrenhamente antagônicas não contribuía para o debate com os liberais e, como consequência, com a sociedade. O que demonstra, que os conservadores procuraram o diálogo enquanto os fundamentalistas continuaram a se verem como os “únicos” detentores de uma verdade que não abria para questionamentos.
Os fundamentalistas tem uma característica evidente: “A convicção de que possuem o conhecimento absoluto da verdade, da qual se tornaram guardiões divinamente ordenados” (Lloyd Geering). Por se entenderem como guardiões absolutos da verdade, julgam que essa verdade está na Bíblia – não necessariamente em Deus, uma vez que entendem ser a Bíblia a única forma que Deus falou, daí toda a discussão quanto à inerrância do texto bíblico. Ainda que essa crença no texto bíblico não tenha qualquer dificuldade, o problema reside na interpretação do texto bíblico. O que significa dizer que, “as Escrituras Sagradas são a forma mais tangível da verdade para os fundamentalistas, que não aceitam quaisquer interpretações modernas dos textos sagrados, e nem mesmo que estes sejam, eles mesmos, interpretações” (Sandra Duarte). É por essa razão, que teólogos conservadores como Alister McGrath irá afirmar que o movimento fundamentalista prejudicou a teologia acadêmica e o consequente debate com os liberais. Para ele, “o surgimento do fundamentalismo causou impacto sobre o compromisso evangélico com a erudição em geral”. Dito de outro modo, McGrath está afirmando que os fundamentalistas, no seu afã de se identificarem como detentores da verdade e paladinos da defesa do cristianismo, prejudicaram a integralização entre evangélicos e universidades. Logo, a grosso modo, os fundamentalistas têm dificuldades em lidar com o conhecimento acadêmico e, a partir dele, propor debates coerentes.
Quando os embates entre fundamentalistas e liberais estava no auge nos EUA, houve quem visse nesse termo, fundamentalistas, um adágio e não uma insígnia. Um deles foi John Gresham Machen. Este preferia dizer “cristianismo conservador”, ou, simplesmente, “cristianismo”. Segundo ele, não havia a necessidade de acrescentar mais um “ismo” dentre muitos que já havia. Mas o destacado teólogo Edward John Carnell foi mais além. Ele procurou corrigir os erros dos fundamentalistas e passou a interagir com a teologia ortodoxa de maneira inteligente. Assim, estudou teologia no Seminário de Westminster, reconhecido centro do fundamentalismo, mas fez o seu doutorado em teologia na Universidade de Harvard, estudando a teologia de Reinhold Niebuhr. Este, professor no Union Theological Seminary, um dos mais progressistas nos EUA. Além disso, Niebuhr era abertamente socialista, mas não comunista. Carnell era um teólogo conservador, mas não mais fundamentalista.
Um dos principais pontos que diferem fundamentalistas de conservadores está na interpretação da Bíblia. Os primeiros “identificam ontologicamente a palavra escrita na Bíblia com a Palavra divina, suspendendo, assim, a historicidade do texto e reivindicando para os textos bíblicos, o caráter de autoridade final da Escritura, graças à sua inerrância e expressão da verdade divina absoluta (acima do contexto). O objetivo da hermenêutica bíblica, no fundamentalismo, é a escuta direta da Palavra de Deus que irá confirmar, ao final, as verdades doutrinárias e morais componentes do ideário fundamentalista” (Júlio Zabatiero). Nesse sentido, o texto bíblico é alçado à ídolo. Já para os conservadores, há uma certa distinção na hermenêutica. Não afirma, de maneira peremptória, “a inerrância, mas a infalibilidade das Escrituras em questões de doutrina e fé” (Júlio Zabatiero). Para teólogos conservadores, há uma resistência quanto “à tentação de identificar o próprio texto da Escritura com a revelação” (Alister McGrath). Assim, temos, portanto, pastores e teólogos que são conservadores, mas não são fundamentalistas. Billy Graham, por exemplo, que desbravou o mundo com suas campanhas evangelísticas era conservador, mas não fundamentalista. Ele recebeu apoio financeiro de instituições ecumênicas, transcendendo as fronteiras do conservadorismo. John Stott, era conservador, mas não fundamentalista. Foi respeitado por conservadores e progressistas porque soube dialogar com ambos a partir das suas ideias e convicções.
O cenário Batista está vendo surgir quem se auto intitula de “conservadores”, mas são, de fato, “fundamentalistas”, não aceitando a diversidade do modo de ser Batista. Advogam possuírem o único modo de ser Batista, julgando que os demais precisam se submeter às suas interpretações, do contrário o expurgo é a solução. Parecem desconhecer o éthos dos Batistas e de como a diversidade é inerente ao seu sistema denominacional.
Conservadores sabem o que significa ser Batista; fundamentalistas julgam ter a única interpretação para os Batistas. Na história dos Batistas sempre houve conservadores e progressistas. Ambos, não obstante as tensões e conflitos, se trataram com certo respeito porque sabiam o significa do ser Batista. Assim, Isaltino Gomes Coelho Filho era conservador, mas não fundamentalista; David Malta era progressista para o seu tempo e foi reitor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil por longos anos; Ebenézer Soares Ferreira é conservador, mas não fundamentalista; Irland Pereira de Azevedo é conservador, mas não fundamentalista. A lista poderia continuar.
4 comentários:
Excelente texto e muito esclarecedor, tanto do ponto de vista da elucidação dos termos fundamentalistas e conservadores, quanto do ponto de vista denominacional, onde vemos surgir muitos fundamentalistas que ignoram o princípio reformista e que é também valorizado pelos documentos denominacionais, do Sacerdócio Universal de todos os crentes. Obrigado
Excelente texto e muito equilibrado por abordar um assunto que neste momento ferve. Os ânimos estão muito acirrados. Eu sou pastor e já vejo aqui na minha região, zona oeste do Rio, um movimento de pastores que se intitulam de conservadores. Mas, eles não são conservadores e sim fundamentalistas. Porém, acho que mesmo que leiam este texto, vão continuar achando que são conservadores e não fundamentalistas.
Excelente reflexão. Me ajudou a enxergar esses conceitos melhor.
Prezado autor,
Li este mesmo quando da sua publicação no jornal batista de edição 44/2020.
Com relação à algumas assertivas tratadas pelo autor, deixo alguns comentários, gostaria que fossem respondidos se possível.
1) O autor traz diversas citações diretas e indiretas de vários outros pensadores. No entanto não podemos ter acesso a que materiais estes se referem, isso deixa bastante comprometida a leitura do texto. Assim como uma investigação mais acurada sobre o tema. Quais são as obras de McGrath citadas?
2) Visto que o tema trata-se de assunto "interna corporis" da tradição batista, então quais são os teólogos batistas que trataram deste assunto? Aparentemente nenhum deles é citado no referido artigo.
3) Essa suposta dicotomia entre fundamentalismo-conservadorismo é de difícil tratamento. Haja vista sua característica totalmente abstrata e subjetiva. Por outro lado, no texto, é retratado como conceitos de caráter absoluto similares a leis físicas naturais obtidas através de empirismo.
4) Aparentemente o termo fundamentalismo surge na América do Norte ao longo da década de 1980. O plano de fundo se encontra na batalha pela inerrância bíblica dentro da Southern Baptist Convention. Diante disso, não é evidente essa suposta derrota e ilegitimidade para aqueles que são tratados como supostos "fundamentalistas". A ressurgência batista conservadora teve e tem papel crucial dentro da história batista mundial. Sugiro ao autor ler a obra Baptist Theology: A four century study, do grande teólogo batista James Leo Garrett Jr.
5) Dentro do plano de fundo da ressurgência batista conservadora, ela é chamada de "tomada de poder fundamentalista" nos círculos ditos "progressistas" da tradição batista na América do Norte. Portanto, é possível concluir que o uso do termo "fundamentalista" tornou-se diverso dependendo de em que grupo se encontra aquele que o interpreta.
6) No contexto batista brasileiro, qual é o real problema de haver grupos conservadores e defensores da inerrância bíblica no meio batista? Ou até mesmo aqueles que são originalistas e ferrenhos defensores da confessionalidade batista? Que pecado há nisso?
7) Visto que o meio batista, na interpretação do autor, é fecundo para o pluralismo religioso-ideológico, então por questão de coerência e lógica ginasial devemos defender de maneira radical o direito daqueles batistas que são partidários da confessionalidade batista. Que são contra a modernidade, e principalmente contra o autoritarismo das ciências humanas (psicologia, ciências da religião, sociologia, etc) sobre o original significado das Sagradas Escrituras. Se somos batistas de fato, não podemos criticar os supostos "fundamentalistas".
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