Mas as outras
classes sociais também participaram do esquema. A classe média entrou em peso
no jogo, como sempre, contra os pobres para mantê-los servis, humilhados e sem
chances de concorrer aos privilégios educacionais da classe média. Os pobres
entraram no jogo parcialmente, o que se revelou decisivo eleitoralmente, pela
manipulação de sua fragilidade e pela sua divisão proposital entre pobres
decentes e pobres “delinquentes”.
Juntos, a
guerra social contra os pobres e entre os pobres, elegeu Bolsonaro e sua
claque.
Foi um
protesto contra o progresso material e moral da sociedade brasileira desde 1988
e que foi aprofundado a partir de 2002. Estava em curso um processo de
aprendizado coletivo raro na história da sociedade brasileira. Como ninguém em
sã consciência pode ser contra o progresso material e moral de todos, o
pretexto construído, para produzir o atraso e mascará-lo como avanço, foi o
pretexto, já velho de cem anos, da suposta luta contra a corrupção.
A “corrupção
política”, como tenho defendido em todas as oportunidades, é a única
legitimação da elite brasileira para manipular a sociedade e tornar o Estado
seu banco particular. A captura do Estado pelos proprietários, obviamente, é a
verdadeira corrupção que, inclusive, a “esquerda” até hoje, ainda sem contra
discurso e sem narrativa própria, parece ainda não ter compreendido.
Agora,
eleição ganha e Bolsonaro no poder, começam as brigas intestinais entre
interesses muito contraditórios que haviam se unido conjunturalmente na guerra
contra os pobres e seus representantes. Bolsonaro é um representante típico da
baixa classe média raivosa, cuja face militarizada é a milícia, que teme a
proletarização e, portanto, constrói distinções morais contra os pobres
tornados “delinquentes” (supostos bandidos, prostitutas, homossexuais, etc.) e
seus representantes, os “comunistas”, para legitimar seu ódio e fabricar uma
distância segura em relação a eles. Toda a sexualidade reprimida e toda o
ressentimento de classe sem expressão racional cabem nesse vaso. O seu
anticomunismo radical e seu anti-intelectualismo significam a sua ambivalente
identificação com o opressor, um mecanismo de defesa e uma fantasia que o livra
de ser assimilado à classe dos oprimidos. Olavo de Carvalho é o profeta que deu
um sentido e uma orientação a essa turma de desvalidos de espírito.
A escolha de Sérgio
Moro foi uma ponte para cima com a classe média tradicional que também odeia os
pobres, inveja os ricos, e se imagina moralmente perfeita porque se escandaliza
com a corrupção seletiva dos tolos. Mas apesar de socialmente conservadora, ela
não se identifica com a moralidade rígida nos costumes dos Bolsonaristas de
raiz que estão mais perto dos pobres. Paulo Guedes, por sua vez, é o lacaio dos
ricos que fica com o quinhão destinado a todos aqueles que sujam a mão de
sangue para aumentar a riqueza dos já poderosos.
Os 100 dias
de Bolsonaro mostram que a convivência desses aliados de ocasião não é fácil. A
elite não quer o barulho e a baixaria de Bolsonaro e sua claque que só
prejudicam os negócios. Também a classe média tradicional se envergonha crescentemente
do “capitão pateta”. Ao mesmo tempo sem barulho nem baixaria Bolsonaro não
existe. Bolsonaro “é” a baixaria.
Sérgio Moro,
tão tolo, superficial e narcísico como a classe que representa, é queimado em
fogo brando já que o Estado policial que almeja, para matar pobres e controlar
seletivamente a política, em favor dos interesses corporativos do aparelho
jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade nem a elite nem a seus
políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um fantoche patético em busca
de uma voz.
O resumo da
ópera mostra a dificuldade de se dominar uma sociedade marginalizando, ainda
que em graus variáveis, cerca de 80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda
podre das classes populares foi útil para vencer o PT. Mas ele é tão grotesco,
asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível. A
idiotice dele e de sua claque no governo é literal no sentido da patologia que
o termo define. Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo
anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas uma percepção
distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo pulsões e afetos
que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota de verdade no
comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma classe média
sem compromisso com a população nem com a sociedade como um todo. Esse é o
dilema dos 100 dias do idiota Jair Bolsonaro no poder.
Jessé Souza
Sociólogo
Professor titular na Universidade Federal do ABC

Sociólogo
Professor titular na Universidade Federal do ABC
Nenhum comentário:
Postar um comentário