Para Lutero a liberdade
está condicionada à consciência, sendo a consciência condicionada às
Escrituras. Eis o novo critério de verdade.
Como bem pontua Richard Popkin, “a caixa de Pandora aberta por Lutero em
Leipzig viria a ter consequências extremamente amplas não só na teologia, mas
em todos os domínios intelectuais do ser humano”. Uma vez aberta a possibilidade
de lidar com o novo, ou seja, haver outros critérios para a verdade, busca-se o
verdadeiro critério. Se por um lado a
Igreja acusava a consciência de não ser confiável, portanto haveria de ter um
elemento discernidor, nesse caso a Igreja, para dar orientação; por outro lado
Lutero insistia que o elemento discernidor não seria (não poderia) ser a Igreja,
mas o crente. Não sem razão, que “um dos argumentos apresentados pelos
católicos ao longo de toda a Reforma foi que o critério de Lutero levaria à
anarquia religiosa” (Richard Popkin). A mudança de critério para a verdade levou à pluralidade, principalmente
quando “qualquer um poderia recorrer à sua
própria consciência e manter que o que lhe parecia a verdade era verdade”. Lutero chegou a ver o surgimento da pluralidade quando, por exemplo, os Anabatistas acirram ainda mais os
postulados da Reforma. A mudança de critério, ocasionou uma diversidade
religiosa na Europa, levando reformistas a condenar como heréticos aqueles que,
no uso de suas consciências, promoveram movimentos a partir de outros critérios de verdade, como o
acesso à terra, como foi o caso dos camponeses liderados por Thomas Müntzer,
por exemplo.
Para Lutero o critério de verdade se dá na Bíblia. Como fonte da verdade e critério último, até
porque era preciso apresentar um, a Bíblia é o único recurso de Lutero diante
da Igreja. A premissa era: “Tudo o que nós sabemos de Deus e da relação
homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura. Esta, portanto, deve ser
entendida com rigor absoluto, sem interferência de raciocínios e glosas metafísico-teológicas”.
Colocar na Bíblia o critério de verdade abre
a possibilidade de interpretações. Essas interpretações, dentro da própria
Bíblia, se constitui plural.
Quando Lutero se viu
diante dessa pluralidade de
perspectivas e interpretações com o, agora, único critério de verdade, “pouco a
pouco foi se tornando dogmático e intransigente, pretendendo, em certo sentido,
estar dotado daquela ‘infalibilidade’ que contestara o Papa”. Lutero viu a pluralidade e não gostou do que viu. Erasmo tinha
alertado Lutero quanto a obscuridade de trechos das Escrituras, e que por isso,
era preciso contar com a sabedoria da Igreja (tradição) para orientar. Já Lutero, insistia de que “para encontrar
as verdades basta consultar as Escrituras”. O livre exame, do qual Foucault atribuiu o surgimento do pensamento
crítico, não funcionou do jeito que Lutero poderia ter imaginado,
principalmente quando o meio para se
conhecer a verdade contida nas
Escrituras foi colocado sob responsabilidade do Espírito Santo. Ingenuidade ou
não, para Lutero o Espírito Santo não permitiria a dúvida e a incerteza. A terceira pessoa da Trindade não colocaria “em
nossos corações opiniões incertas, mas sim afirmações da maior firmeza”
(Lutero).
Ao que parece, Lutero
não confiou tanto assim na figura do Espírito Santo quando viu que um dos
principais postulados da Reforma, a liberdade
da fé, se tornou em algo que ele não pôde controlar. Seria por essa razão
que Lutero induziu os Príncipes que controlassem a vida religiosa do povo,
“chegando até a exortá-los a ameaçar e punir todos aqueles que desleixavam as
práticas religiosas”? Para quem proclamou uma emancipação diante de um sistema
opressor que instrumentalizava as indulgências
como discurso político castrador da autonomia do humano, Lutero não foi
diferente quando passou aos Príncipes a tutela espiritual do povo como
patrimônio político destes, surgindo, então, a união entre Igreja e Estado na
Alemanha.
Como um pêndulo,
Lutero poderia não ter se dado conta (ou se deu e foi tarde demais para
revogar) que os principais pressupostos da Reforma abriria outros pressupostos
e desses não se teria mais o controle, mesmo que tentasse. Mas Erasmo o alertou...
Referências
POPKIN, Richard. História do ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro:
Francisco
Alves, 2000, p. 26-33.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a
Descartes. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, v. 3, p. 69-74.
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 284-285.