31.10.17

ERASMO E LUTERO, OU DE COMO AS COISAS SAÍRAM DO CONTROLE

Num primeiro momento, Lutero questiona o domicílio da verdade na Igreja. Isso ele faz quando escreve o Manifesto à nobreza alemã e A igreja no cativeiro da Babilônia. Nesses textos, Lutero passa de um crítico da Igreja para um questionador da regra de fé da Igreja, ou seja, ele estabelece um novo critério religioso que, agora, não passa mais pela Igreja e seus concílios que, segundo Lutero, continham erros, porque eram feitos por homens. É nesse momento que o monge agostiniano passa de questionador para um líder reformador. Não por acaso que Johann Eck fica escandalizado com Lutero quando este nega a autoridade do Papa e da Igreja em assuntos religiosos. Dar-se um rompimento em torno do que se concebia como verdade quando Lutero muda o eixo, da Igreja para o crente: “Todos os cristãos têm a capacidade de discernir e de julgar o que é certo ou errado em questões de fé”. Agora são as Escrituras o critério de verdade, superando o Papa em sua autoridade.

Para Lutero a liberdade está condicionada à consciência, sendo a consciência condicionada às Escrituras. Eis o novo critério de verdade. Como bem pontua Richard Popkin, “a caixa de Pandora aberta por Lutero em Leipzig viria a ter consequências extremamente amplas não só na teologia, mas em todos os domínios intelectuais do ser humano”. Uma vez aberta a possibilidade de lidar com o novo, ou seja, haver outros critérios para a verdade, busca-se o verdadeiro critério. Se por um lado a Igreja acusava a consciência de não ser confiável, portanto haveria de ter um elemento discernidor, nesse caso a Igreja, para dar orientação; por outro lado Lutero insistia que o elemento discernidor não seria (não poderia) ser a Igreja, mas o crente. Não sem razão, que “um dos argumentos apresentados pelos católicos ao longo de toda a Reforma foi que o critério de Lutero levaria à anarquia religiosa” (Richard Popkin). A mudança de critério para a verdade levou à pluralidade, principalmente quando “qualquer um poderia recorrer à sua própria consciência e manter que o que lhe parecia a verdade era verdade”. Lutero chegou a ver o surgimento da pluralidade quando, por exemplo, os Anabatistas acirram ainda mais os postulados da Reforma. A mudança de critério, ocasionou uma diversidade religiosa na Europa, levando reformistas a condenar como heréticos aqueles que, no uso de suas consciências, promoveram movimentos a partir de outros critérios de verdade, como o acesso à terra, como foi o caso dos camponeses liderados por Thomas Müntzer, por exemplo.

Para Lutero o critério de verdade se dá na Bíblia. Como fonte da verdade e critério último, até porque era preciso apresentar um, a Bíblia é o único recurso de Lutero diante da Igreja. A premissa era: “Tudo o que nós sabemos de Deus e da relação homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura. Esta, portanto, deve ser entendida com rigor absoluto, sem interferência de raciocínios e glosas metafísico-teológicas”. Colocar na Bíblia o critério de verdade abre a possibilidade de interpretações. Essas interpretações, dentro da própria Bíblia, se constitui plural.

Quando Lutero se viu diante dessa pluralidade de perspectivas e interpretações com o, agora, único critério de verdade, “pouco a pouco foi se tornando dogmático e intransigente, pretendendo, em certo sentido, estar dotado daquela ‘infalibilidade’ que contestara o Papa”. Lutero viu a pluralidade e não gostou do que viu. Erasmo tinha alertado Lutero quanto a obscuridade de trechos das Escrituras, e que por isso, era preciso contar com a sabedoria da Igreja (tradição) para orientar. Já Lutero, insistia de que “para encontrar as verdades basta consultar as Escrituras”. O livre exame, do qual Foucault atribuiu o surgimento do pensamento crítico, não funcionou do jeito que Lutero poderia ter imaginado, principalmente quando o meio para se conhecer a verdade contida nas Escrituras foi colocado sob responsabilidade do Espírito Santo. Ingenuidade ou não, para Lutero o Espírito Santo não permitiria a dúvida e a incerteza. A terceira pessoa da Trindade não colocaria “em nossos corações opiniões incertas, mas sim afirmações da maior firmeza” (Lutero).

Ao que parece, Lutero não confiou tanto assim na figura do Espírito Santo quando viu que um dos principais postulados da Reforma, a liberdade da fé, se tornou em algo que ele não pôde controlar. Seria por essa razão que Lutero induziu os Príncipes que controlassem a vida religiosa do povo, “chegando até a exortá-los a ameaçar e punir todos aqueles que desleixavam as práticas religiosas”? Para quem proclamou uma emancipação diante de um sistema opressor que instrumentalizava as indulgências como discurso político castrador da autonomia do humano, Lutero não foi diferente quando passou aos Príncipes a tutela espiritual do povo como patrimônio político destes, surgindo, então, a união entre Igreja e Estado na Alemanha.

Como um pêndulo, Lutero poderia não ter se dado conta (ou se deu e foi tarde demais para revogar) que os principais pressupostos da Reforma abriria outros pressupostos e desses não se teria mais o controle, mesmo que tentasse. Mas Erasmo o alertou...

Referências
POPKIN, Richard. História do ceticismo: de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 2000, p. 26-33.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Descartes. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005, v. 3, p. 69-74.
ROUANET, Sergio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 284-285.

16.10.17

“SOMOS COLECIONADORES DE DESAFETOS”

Uma conversa entre pastores

Em conversa com um colega pastor, falávamos de como o ministério tem seus bons momentos, sendo esses, os bons momentos, relacionados com a promoção humana. Ambos concordávamos de que um ministério pastoral “produtivo” precisava estar focado nos relacionamentos com efetiva participação do pastor na vida dos integrantes da comunidade de fé e a estrutura, obviamente importante, uma vez que estamos inseridos nela (prédio, recursos, denominação), não constava como a primeira na nossa agenda, mas tendo o seu lugar minimizado e o humano maximizado.

A participação efetiva do pastor na vida dos membros da comunidade passa, inevitavelmente, por lidar com problemas, conflitos e dificuldades dos participantes da comunidade, quando solicitado para uma intervenção (aconselhamento). Nessa lista constam casamentos desajustados e mal resolvidos; frustrações por perdas reparáveis; doenças das mais agressivas e complicadas de lidar como um câncer; pessoas com síndrome do pânico e depressão; a sexualidade; violência doméstica; disputas judiciais. Esses são alguns dos problemas e conflitos dos quais o pastor está, direta ou indiretamente, envolvido. A tomada de decisão em alguns casos desses, acarretam enormes desgaste emocional e físico, alguns sucumbindo em problemas depressivos e, lamentavelmente, tirando a própria vida. Além disso, a família é uma preocupação, principalmente quando há filhos e eles acompanham a rotina do ministério pastoral. Infelizmente, em alguma Casa Pastoral, os filhos não são, devidamente, “blindados” quanto aos problemas e desafios do ministério, principalmente quando assuntos que envolve pessoas da comunidade surgem na mesa do almoço em um domingo depois da EBD.

Ainda em conversa com esse colega, chegamos no ponto de falar dos desafetos. Uma frase que chamou a minha atenção foi: “somos colecionadores de desafetos”. Isso também! Concordei. Os pastores, na caminhada ministerial, colecionam, não como mérito ou honra pessoal, inúmeras vitórias quando envolvidos com pessoas que conseguem vencer suas dificuldades. Não obstante a isso, ele também coleciona desafetos. Esses desafetos são originados, geralmente, por situações em que os envolvidos não gostaram ou não concordaram com certos posicionamentos do pastor. Há pessoas que nutrem desafetos com o pastor por conta do sermão de domingo à noite; outros ainda porque o pastor não valorizou, devidamente, o filho que é um “prodígio” na música; desafeto declarado porque a visão ministerial do pastor não encontrou ressonância em um membro mais antigo da comunidade. Enfim, esses são os possíveis desafetos que o pastor, ao longo da sua trajetória, pode(rá) colecionar. Alguns desses desafetos causam danos, outros são irrisórios, mas todos deixam, de alguma maneira, marcas.

Um amigo pastor no Nordeste, quando conversou comigo sobre a sua saída da igreja da qual estava já algum tempo no pastoreio, disse-me que deixou a igreja com algumas mágoas. O trato não foi cordial para com ele e sua família. Mesmo assim, ele alertou: “deixei bons amigos lá e isso que conta no final”. Por onde o pastor passa, deixa desafetos, mas amigos também. 

7.10.17

REFORMA 500 ANOS: SOLA GRATIA

Antes de ser também uma questão teológica, a Sola Gratia está, intrinsecamente, ligada a um contexto conturbado na Europa nos anos que antecederam a Reforma. Para Jean Delumeau, havia uma angústia coletiva para uma gente que enfrentara numerosas crises, dentre elas A Guerra dos Cem Anos e a Peste Negra. Delumeau indica que a opção pela Reforma foi, também, uma maneira de encontrar resposta para a insegurança que assolava o velho continente.[1]

A Igreja de então, por sua vez, fornecia essa segurança por meio dos sacramentos. Assim, uma vez administrada pela Igreja, a graça se dava pela mediação da hierarquia e dos sacramentos. O sistema funcionava tendo a Igreja como indicadora de um caminho seguro, oferecendo um status confiante quando na administração dos sacramentos constituídos como meios da graça. De certa forma, a Igreja detinha o controle, principalmente quando um sacerdote administrava os sacramentos.[2]

É nesse contexto que Lutero surge com a Sola Gratia. Lutero percebeu que o sistema não cumpria o que prometia, a segurança da salvação. É aqui que ele descobre um outro caminho quando ler as Escrituras (Romanos). Não entraremos em detalhes quanto a essa descoberta, uma vez que a vida do monge agostiniano está muito bem documentada, onde é possível perceber o quanto a culpa o consumia diante da grandeza de Deus em contraste com a sua vida, entregue a miserabilidade da existência. Daí também a sua antropologia pessimista.

Quando Lutero se deparou com a graça, percebeu de que Deus nos oferece gratuitamente tudo de que não somos capazes: não somos apenas perdoados, mas estamos justificados diante dele. Estava aí o início de uma extraordinária experiência com Deus, qual seja, a de que Deus, em amor e graça, liberta dos jugos que promovem a culpa e a insegurança. Agora, para Lutero e outros reformadores, Deus está presente por toda parte e, por graça, sustenta, promove, liberta, conduz. Esse é um canto de liberdade diante de um sistema que aprisionava por meio da consecução dos sacramentos.

A questão central na Sola Gratia, se dá na percepção de que Deus está no centro da existência humana, ativo em toda a história, sempre tomando a iniciativa para se aproximar dos seres humanos. A descoberta de Lutero abriu uma nova janela por onde um ar fresco e aconchegante entrou: a graça de Deus sustenta a vida, portanto, vivamos, porque ele, Deus, já cuidou de tudo, principalmente da eternidade!

A Sola Gratia está para além da letra; ela é integradora do ser. Não está atrelada a qualquer meio de aprisionamento, porque esse Deus de graça é livre e nos chama à liberdade! Por isso podemos cantar: Graça! Que maravilhosa graça! / É imensurável e sem fim / É maravilhosa, é tão grandiosa / é suficiente para mim.

Quando comemoramos 500 anos da Reforma Protestante, temos a oportunidade de iluminar, mais uma vez e quantas vezes for preciso, os pilares pelos quais podemos nos sustentar. A Sola Gratia é, indiscutivelmente, um desses pilares.

É inconcebível posturas demarcatórias, tanto de igrejas como de pessoas (líderes), da graça de Deus, ou seja, não é possível uma igreja que caminha a partir da tradição da Reforma determinar a ação de Deus, cerceando o seu agir; dizer quem Deus aceita e quem ele rejeita como se assim fosse possível dimensionar o pecado melhor do que o próprio Deus!

A graça está dada como uma marca indelével para a Igreja. Ela é celebrada na Reforma porque foi possível entender que, pela graça, Deus é Deus.


[1] DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 60.
[2] SHAULL, Richard. A Reforma protestante e a teologia da libertação. São Paulo: Pendão Real, 1993, p. 39-41.