O que poderia ser diferente
Neste mês a Reforma Protestante comemora 492 anos (31 de outubro de 1517). Os herdeiros desse movimento são, indubitavelmente, os luteranos, presbiterianos, anglicanos, batistas, metodistas e congregacionais. Recentemente postei alguns comentários numa revista online (Ultimato) argumentando que os pentecostais não fazem parte da matriz protestante, a não ser a presença da Bíblia nos cultos que não é tanto valorizada mais que a tal “profecia oral”, e a reação dos internautas pentecostais foram bastante incisivas no sentido de colocar o pentecostalismo no espectro protestante, argumentei que os pentecostais habitam um universo religioso totalmente contraditório do protestantismo em diversos aspectos, desde identidade, teologia e liturgia. Desta mesma ideia compartilham Antonio Gouvêa Mendonça que foi uma das maiores autoridades em protestantismo no Brasil, e Rubem Alves, que dispensa qualquer comentário, ambos colocando a peculiaridade do protestantismo e o antagonismo do pentecostalismo.
A proposta aqui é fazer uma leitura de alguns símbolos do protestantismo e apontar o que poderia ser diferente. Para isso conto com os textos de Rubem Alves*, Antonio Gouvêa Mendonça** e Prócoro Velasques Filho.***
Cultura: até hoje sofremos com a questão cultural, ainda mais aqui no Brasil que não têm na sua raiz religiosa o protestantismo, como nos EUA, mas o catolicismo. A natureza iconoclasta do protestantismo afastou qualquer imagem do imaginário religioso alegando paganismo, compensando essa lacuna, não satisfatória, com a centralidade da Bíblia e a música, daí a crise simbólica no protestantismo, chegando, em alguns segmentos, o repudio da cruz nos templos. É inquestionável a contribuição do protestantismo à cultura moderna, mas Paul Tillich, em seu texto A era protestante, aponta que apesar de não separar o sagrado do profano o protestantismo se afastou da cultura, esquecendo-se que o Reino de Deus se dá quando a cultura em geral é santificada. O prejuízo desse distanciamento é a completa separação da Igreja com a cultura do lugar, uma vez que “conversão” compreende em separar o indivíduo do seu ambiente vivencial. Com isso, o pastor é sempre procurado para ser juiz em determinadas situações que ultrapassam os muros do templo; se os adolescentes podem ou não participar de festa junina na escola; a dança é colocada como pecado e anormal para crentes; até pouco tempo atrás o cinema era demonizado. Lembro-me de que uma Igreja Batista do Estado de São Paulo saiu em carro alegórico no carnaval deste ano e as críticas foram aterrorizantes! Aqui essa distancia Igreja-cultura é mais evidente devido ao protestantismo de missão que enfatizou demasiadamente a regeneração e a santificação, com isso o comportamento se tornou a chave hermenêutica para a fé. O prejuízo disso é a falta da poesia, da boa música popular brasileira, da literatura de qualidade. O que fazer para unir cultura e Igreja no protestantismo? Uma velha questão.
Bíblia: como herança da Reforma, a Bíblia terá sempre a primazia na Igreja. Isso tem o seu lado positivo e negativo. Colocar a Bíblia no centro da fé cristã foi um grande feito de Martinho Lutero, mas o fundamentalismo corrompeu o texto fazendo uma leitura literalista e dogmática. A pretensão de possuir o conhecimento absoluto do texto sagrado levou a dogmatização de doutrinas suprimindo, desta forma, o livre exame, herança da Reforma. Hoje, como bem observa Rubem Alves, não há livre exame da Bíblia, pois não cabem mais o pressuposto da dúvida, da consciência. Assim como a Igreja Católica tem no Magistério a diretriz em que os fieis devem crer, o protestantismo produziu o mesmo com suas “Declarações Doutrinárias”. Qualquer um que acene para outra interpretação é taxado de “herege”. Parece que o texto deixou de produzir consolo, comunhão, experiência com Deus (que, aliás, no protestantismo não vem primeiro, antes o logos que o pathos) e se transformou em bula doutrinaria apenas, ignorando seu contexto histórico, literário e a sua diversidade teológica.
Culto: uma liturgia centralizada na Bíblia, com música contemporânea, o culto protestante tem uma diversidade incrível. Ocorre hoje a perda de sentido em símbolos tradicionais para o protestantismo como batismo e ceia do Senhor. Como a teologia sacrificialista é predominante, a ceia é vista como morte, recordação do sacrifício expiatório. Essa leitura é comum, a menos enfatizada é a dos evangelhos em que o momento de celebração da ceia é momento de alegria, pois se celebra a presença do Ressuscitado no meio da comunidade. Com essa postura diante da ceia, o protestantismo colocou esse símbolo como apenas acessório no culto, diferente da teologia romana que compreende a eucaristia como centro da vida em comunidade e absoluta na liturgia. Como por aqui o protestantismo de missão não separou culto de reunião evangelística, o culto perdeu a solenidade que deveria ter para com Deus, colocando em seu lugar o “pecador” o “perdido”, hoje mais ainda, o “visitante”, onde tudo no culto gira em torno dele, um prejuízo que custa a ser reparado em nossas igrejas. Tanto é assim que em muitas igrejas a ceia é no domingo de manhã onde se entende que há somente os membros da igreja, e não num domingo à noite, pois é culto “público”, evangelístico e aquele momento de celebração não deve ser compartilhado pelos “visitantes”. Tenho insistido em minha comunidade que o culto é para Deus, portanto celebração, adoração. A ceia do Senhor é a única possibilidade de vivenciar a comunhão com Cristo e seu corpo, ou seja, a Igreja. Não é rol de membros que determina se alguém pertence ou não à Igreja, rol de membros é questão administrativa, mas sua participação na comunhão do corpo de Cristo.
Teria outros pontos para abordar no protestantismo que nós tanto gostamos como, por exemplo, a questão da liberdade, a consciência, mas deixa para uma próxima. Fica aqui um desejo de reflexão e uma singela contribuição: vamos continuar nos reformando, pois essa é a principal característica do protestantismo.
* Rubem ALVES. Religião e repressão. São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.
** Antonio Gouvêa MENDONÇA. Protestantes, pentecostais & ecumênicos: o campo religioso e seus personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.
*** Antonio Gouvêa MENDONÇA e Prócoro Velasques FILHO. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990.
5 comentários:
Muito legal o texto! É sempre importante e necessário pensar sobre os rumos que o protestantismo tem tomado. Não há como pensar nisso sem levar em consideração a Reforma, assim como a Modernidade. Principalmente em dias onde o consumo é a principal "liturgia".
Valeu
Você sempre generoso, obrigado. Estou tentando trabalhar sobre a cultura e o protestantismo, mas para isso leitura obrigatória é a do teólogo e pastor batista Jorge Pinheiro, referência na área. Vamos pensar juntos.
Seria uma honra pensar junto com vc. O Jorge Pinheiro é muito influenciado por Tillich, cuja teologia é da cultura. Pensar teologia a partir da cultura é sempre motivador. Vamos seguir adiante...valeu.
Alonso, obrigado pelo texto
De fato, a igreja cristã corre o risco de não ser cristã, quando se distancia da cultura. Estou aqui retomando o conceito de debilidade do ser em Vattimo, que vê na secularização a salvação da mensagem cristã. O que se observa é que o discurso de inclusão, socorro ao miserável e atendimento aos marginalizados, só para mencionar alguns exemplos, são feitos por grupos não diretamente ligados à igreja, mas que são cristãos em razão de terem nascido numa cultura cristã.
Ultimamente tenho estudado o nosso Nietzsche do Nordeste, Belchior, um anti-cristo, estilo Zaratustra, que preconiza a morte do cristanismo segregador. Numa de suas músicas (Quinhentos anos de quê?), referindo-se a Cristovão Colombo, ele diz: "trazia em "vão" Cristo no nome e em nome dele o canhão" Na linguagem de Belchior "o rinoceronte é mais decente que essa gente demente do Ocidente tão cristão". Isto é, um anti-cristianismo mais cristão que o próprio cristianismo enclausurado nas suas máximas conceituais.
Se puder, dê uma olhada no texto "300" dessa semana, sobre igreja e alienação, que publiquei como pastoral no boletim. Se me permite, vai o endereço: www.ibcs.org.br
Obrigado pelo texto
Muito obrigado por participar deste singelo blog,
seus comentários são sempre oportunos, valeu mesmo.
Sobre sua observação, estou cada vez mais preocupado
com este distanciamento igreja-cultura. A Igreja esta se
enclausurando-se, os neopentecostais comercializando,
e o evangelho esta cada vez mais sendo barateado.
É triste.
Li o texto no site na IBCS, fiquei pensando quantos
300 há por aí! Percebi também a nossa competência
para discutir assuntos irrelevantes para o nosso
contexto.
Vamos pensar juntos, com Belchior, Vattimo ou
P. Tillich.
Obrigado.
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