
Lula é o maior corrupto da história do
Brasil ou a principal liderança popular que esse país já teve?
A disputa está aí. No atual estado da
situação não sobrou muito espaço para meio termo. Ou é uma coisa ou é a outra.
Cada um que escolha seu lado.
Na condição de instituição, todo gesto
de Lula tem dimensão simbólica, é lido e interpretado por todos, por detratores
e admiradores. Lula pega o microfone e o país paralisa em frente à TV. Os
admiradores choram. Os jornalistas a serviço da mídia hegemônica silenciam.
Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho. Lula sabe
perfeitamente que está sendo observado, conhece muito bem o tamanho que tem e
explora com extrema habilidade sua capacidade de fabricar símbolos.
Aqui neste ensaio, trato de uma parte
muito pequena da biografia de Lula, mas que talvez seja, na perspectiva
simbólica, a mais importante. Talvez seja até mais importante que os oito anos
de seu governo.
Falo das 34 horas em que Lula esteve no
sindicato dos metalúrgicos, sob os olhares do mundo, construindo a narrativa de
seu próprio martírio. Não falo em “resistência”, pois desde a condenação no TRF-4,
em 24 de Janeiro, que o destino de Lula já estava selado. Os advogados cumpriram
sua função, recorrendo a todas as instâncias e tentando um habeas corpus, mas todos já sabiam que Lula seria preso. Por isso,
seria ingênuo dizer que o que aconteceu em São Bernardo do Campo foi um ato de
resistência. Lula é um político experiente demais para resistir em causa
perdida.
Alguns companheiros e companheiras, no
auge da emoção, tentaram usar a força. Lula fugiu da custódia dos trabalhadores
e se entregou à Polícia Federal, pois sabe que contra o braço armado do Estado
ninguém pode. Lula sabe que aqueles que ali estavam eram trabalhadores e
trabalhadoras, pais e mães de família. Não eram soldados. Não eram
guerrilheiros. A resistência não era possível.
Lula sabe que seria impossível sustentar
aquela mobilização durante muito tempo e por isso não resistiu. Mas daí a se
entregar resignado como boi manso para o abate a distância é grande, muito
grande.
Penso mesmo que Lula fez mais que
resistir, já que a resistência seria quixotesca, irresponsável. Lula pautou a
própria prisão, saiu da posição de simples condenado pela Justiça para se tornar
o dono da narrativa. Lula foi sujeito do próprio encarceramento, deu um nó nas
forças do golpe neoliberal.
Muitos achavam que Lula deveria ter
fugido para uma embaixada amiga e de lá partido para o exílio no exterior.
Confesso que também pensei assim. Mas Lula é muito mais inteligente que todos
nós juntos.
Lula sabe que já viveu muito, sabe que
não lhe sobra muito tempo de vida. O que resta agora é a consolidação da
biografia, o retorno às origens, seu renascimento como ícone da esquerda
brasileira, imagem que ficou um tanto maculada pelos oito anos em que governou
o Brasil.
É que no capitalismo não existem
governos de esquerda. Governo de esquerda só com revolução e Lula nunca foi
revolucionário, nunca prometeu uma revolução. Todo governo legitimado pelas
instituições burguesas será sempre burguês. No máximo, no melhor dos cenários,
será um governo de centro sensível às demandas populares. O lulismo foi
exatamente isso: uma prática de governo de centro sensível às necessidades dos
mais pobres. O lulismo transformou o Brasil para melhor, com todos os seus
limites, com todas as suas contradições.
Mas para encerrar a vida em grande
estilo carece de algo mais. Era necessária a canonização política. E só a
esquerda canoniza líderes políticos. A direita é dura, cinza, sem poesia.
O golpe neoliberal conseguiu reconciliar
Lula com as esquerdas, o que há poucos anos parecia algo impossível de
acontecer.
É que para ser canonizado pelas
esquerdas nada melhor que ser perseguido pelo Poder Judiciário, habitat histórico das elites da terra.
Basta lançar no Google os sobrenomes
da maioria dos nossos juízes, procuradores e desembargadores e veremos os
berços de jacarandá que embalaram os primeiros sonhos dos nossos magistrados.
É claro que Lula não planejou a
perseguição. É óbvio que ele não queria ser perseguido. Se pudesse escolher,
estaria tendo um final de vida mais tranquilo, talvez afastado da política
doméstica e atuando nas Nações Unidas. Mas já que a vida deu o limão, por que
não espremer, misturar com açúcar, cachaça, mexer bem e mandar para dentro? Lula
fez exatamente isso: uma caipirinha com os limões azedos que seus adversários
togados lhe deram.
Primeiro, ele fez questão de esgotar
todos os mecanismos legais. A sentença de Moro, os votos dos desembargadores,
os votos dos ministros da Suprema Corte não são palavras ao vento. São “peças”,
para falar em bom juridiquês, que ficarão arquivadas e disponíveis para a
consulta, para análise. Imaginem só, leitor e leitora, os historiadores que no
futuro, afastados da histeria e das disputas que hoje turvam nossos sentidos,
examinarão a sentença de Sérgio Moro, verão que o juiz não foi capaz de
determinar em quais “atos de ofício” Lula teria beneficiado a OAS para fazer
por merecer o tal Tríplex do Guarujá. É como se Moro estivesse falando: “Não
sei como fez, mas que fez, ah, fez”. E o voto dos desembargadores do TRF-4,
atravessados de juízos de valor, quase sem relar no mérito da sentença? E o
voto de Rosa Weber? Por Deus, o que foi aquele voto de Rosa Weber? “Sei que
estou votando errado, mas vou continuar votando errado só porque a maioria
votou errado. Uma maioria que só vai votar porque eu vou votar errado também”. Lula,
ao se negar a fugir, obrigou cada um desses togados a deixar impressos na
história os rastros da própria infâmia.
Uma vez decretada a prisão, o que fez
Lula? Deu um tiro no peito? Se entregou em São Paulo? Foi para Curitiba? Fugiu?
Não! Lula se aquartelou no sindicado mais simbólico da redemocratização
brasileira, o sindicado que representa as expectativas que nos anos 1980
apontavam para um Brasil mais justo, mais solidário. No apogeu da crise que significa
o colapso do regime político fundado na redemocratização, Lula decidiu encenar
o seu martírio onde tudo começou. Naquele que talvez seja o último grande ato
de sua vida pública, Lula voltou às origens. Protegido pela massa de
trabalhadores, Lula não cumpriu o cronograma estipulado por Sérgio Moro.
Cercado por uma multidão, o Presidente operário transformou o sindicato dos
metalúrgicos numa embaixada trabalhista.
A Polícia Federal, o braço armado do
governo golpista, disse que não usaria a força. A Polícia Federal sabia que o
povo resistiria, que sem negociação não tiraria Lula do sindicado sem deixar
uma trilha de sangue. Lula negociou e, nos limites dados por sua posição de
condenado pela Justiça, venceu e humilhou as instituições ocupadas pelo golpe
neoliberal.
Lula não estava foragido. O mundo
inteiro sabia onde ele estava e mesmo assim o Estado brasileiro não foi capaz
de prendê-lo no prazo determinado pela Justiça golpista. Durante um pouco mais
de 30 horas, Lula foi um exilado dentro do Brasil, como se São Bernardo do
Campo fosse um República independente, a “República Popular dos Trabalhadores”.
Lula fez de uma missa em homenagem a
Dona Marisa Letícia um ato político e aqui temos mais um lance simbólico do
Presidente operário: restabeleceu as pontes entre a esquerda brasileira e a
Igreja Católica, aliança que tão importante nos anos 1970, quando sob as
bênçãos da Teologia da Libertação foi fundado o Partido dos Trabalhadores.
No palanque, junto com o padre, estavam
Lula e as futuras lideranças da esquerda brasileira. Lula dividiu seu espólio
em vida, tomou para si esse ato mórbido ao abençoar Boulos, Manuela e Fernando
Haddad. Lula unificou em vida a esquerda brasileira. Não só unificou, mas
pautou, apresentou o programa, cantou o caminho das pedras. Lula deixou claro
que o povo mais pobre precisa comer melhor, precisa consumir, viajar de avião,
estudar na universidade. Lula, o operário que durante a vida inteira foi
humilhado por não ter diploma de ensino superior, foi o professor de milhões de
brasileiros que sonham com um país melhor. É como se Lula estivesse dizendo:
“Num país como o Brasil, a obrigação mais urgente da esquerda é transformar o
Estado burguês em agente provedor de direitos sociais”.
Lula discursou durante uma hora em rede
nacional, se defendeu das acusações. Não foi uma defesa para a Justiça, mas sim
para o tribunal moral da nação. Não foi um discurso para o presente. Foi um
discurso para a história.
Não, meus amigos, acuado pelas forças do
atraso, Lula não deu um tiro no próprio peito.
Lula mandou trazer cerveja e carne e fez
um churrasco com seus companheiros e companheiras. Foi carregado pelos seus
iguais, foi tocado, beijado. Saliva, suor, pele. Lula não deu um tiro no
próprio peito.
Getúlio é gigante, sem dúvida, mas
também era herdeiro das oligarquias. Lula é o único trabalhador que, vindo da
base da sociedade, conseguiu governar e transformar o Brasil. Lula já é maior
que Getúlio. Diferente de Getúlio, Lula entrou para a história sem precisar
sair da vida.
(Rodrigo Perez Oliveira - professor de
Teoria da História na UFBA)