15.6.24

TENSÕES ENTRE OS PRINCÍPIOS BATISTAS E A CONFISSÃO DOUTRINÁRIA

O ramo conhecido como “protestantismo histórico” se alimenta do discurso doutrinário para legitimar o seu espaço, bem como para polemizar com outros grupos. Diferente dos católicos em que o magistério define a doutrina e a liturgia da Igreja; no protestantismo/s o discurso teológico e a prática da doutrina definem quem é “herege” e quem é “ortodoxo”.

Como esse ramo do cristianismo não poderia ter um magistério, procurou resolver o problema de autoridade e legitimidade de outra maneira, qual seja, um texto que desse conta dessa autoridade e servisse como norte de conduta doutrinária para o grupo que não fosse apenas a Bíblia, surgindo as “confissões” ou “declarações de fé”.

A Reforma aparece com um fato inédito: o indivíduo tem competência para ler a Bíblia. O livre exame das Escrituras foi uma prerrogativa da Reforma. Dizia Lutero: “Tudo o que nós sabemos de Deus e da relação homem-Deus nos é dito pelo próprio Deus na Escritura. Esta, portanto, deve ser entendida com rigor absoluto, sem interferência de raciocínios e glosas metafísico-teológicas”.

Mas o que foi feito? A Bíblia precisava passar pelo crivo da instituição religiosa. O indivíduo pode ler as Escrituras, mas a sua interpretação não pode contrariar a posição confessional do grupo denominacional. Tem livre exame (pode ler), mas interpretar o que leu não pode.

É preciso ressaltar que há algumas razões das “confissões” ou “declarações” serem redigidas. Destaco algumas: (i) Permite o confronto político-doutrinário com outros grupos; (ii) Coloca o grupo dentro do legado histórico-teológico de um segmento maior, no caso, protestantismo histórico; (iii) Fornece meios para estabelecer julgamentos doutrinários e assim estabelecer quem pode e quem não pode pertencer ao grupo.

Ao longo da história, os Batistas produziram “confissões” ou “declarações doutrinárias”, mas sempre evitaram os “credos” por entender que os mesmos são equivalentes à Bíblia. Walter Shurden demonstra porque os Batistas não adotam “credos”: “Historicamente os Batistas sempre resistiram a todo e qualquer credo. E fizeram isso por duas razões muito claras: primeiro, porque nenhuma declaração doutrinária pode sumarizar adequadamente o mandato bíblico para a prática e a fé. É melhor, portanto, ficar somente com a Bíblia. Segundo, porque os Batistas temem o uso de credos por causa da aparente tendência de transformar o credo em norma e então forçar a submissão a ele”. Não fizeram isso com o “credo”, mas as instituições denominacionais seguem fazendo exatamente isso com a “confissão”.

O ponto aqui é como os Batistas, ao longo dos anos, foram substituindo alguns distintivos que são fruto da sua história honrada e dolorida em nome de uma “ortodoxia”, reafirmando as “confissões” ou “declarações” como equivalentes e, em alguns casos, até mesmo acima das Escrituras? Ainda que afirmem que as Escrituras são “única regra de fé e prática”. Por isso entendo tratar de uma tensão entre Princípios Batistas e Confissão Doutrinária. Elenco duas delas.

Quando os Batistas aderem às “confissões” ou “declarações” e as tratam como “normativas”, estão também ignorando, traindo, ferindo, suprimindo, os Princípios Batistas mais caros aos Batistas, quais sejam: Bíblia como regra de fé e prática e o livre exame da mesma; a autonomia da igreja local; a liberdade de consciência do indivíduo. Em outros grupos isso não seria um problema, mas entre os Batistas é um problema porque os Princípios estão na gênese dos Batistas.

TENSÃO I – DECLARAÇÃO DOUTRINÁRIA versus BÍBLIA E LIVRE EXAME

A Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira se tornou um documento autoritativo, definidor de condutas e cerceador de liberdades, além de ignorar um dos primeiros Princípios Batistas oriundos da Reforma protestante, “a Bíblia como regra de fé e prática”.

No preâmbulo da Declaração Doutrinária da CBB é lido que: “Para os batistas, as Escrituras Sagradas, em particular o Novo Testamento, constituem a única regra de fé e conduta, mas, de quando em quando, as circunstâncias exigem que sejam feitas declarações doutrinárias que esclareçam os espíritos, dissipem dúvidas e reafirmem posições”. Ainda que haja um contexto histórico, uma vez que toda e qualquer “confissão” ou “declaração” está dentro de um problema, a Declaração Doutrinária da CBB tem a intenção de “reafirmar posições”. Isso significa que ela tem a prerrogativa de afirmar o que pode e o que não pode em termos de doutrina e conduta para as igrejas Batistas.

No Estatuto da CBB, há uma ratificação quanto à Declaração Doutrinária da CBB que jamais poderia ser redigida, levando em conta os Princípios Batistas. O que está lá no “Art. 2º - § 1º Para serem filiadas na Convenção, as igrejas deverão satisfazer os seguintes pré-requisitos: I – declarar, formalmente, que aceitam as Sagradas Escrituras como única regra de fé e prática e reconhecem como fiel a Declaração Doutrinária da Convenção”. O Estatuto da CBB está colocando na mesma prateleira a Bíblia e a Declaração Doutrinária da CBB. Em outras palavras, a Declaração Doutrinária da CBB se coloca como a única capaz de interpretar fielmente as Escrituras Sagradas e as igrejas filiadas perdem, por tabela, a sua autonomia e os indivíduos a sua liberdade.

Quando a OPBB-SP redige o seu Estatuto, diferente da OPBB, reafirma o que está no Estatuto da CBB: “Art. 3º - A Seção é constituída de pastores batistas, nela filiados, membros de igrejas filiadas à Convenção Batista do Estado de São Paulo, aqui chamada CBESP, que aceitam os princípios, doutrinas e práticas adotadas pela Convenção Batista Brasileira, aqui chamada de CBB, e aceitam como fiel interpretação das Escrituras Sagradas a Declaração Doutrinária da CBB”.

Há quem entenda que a CBB e sua Declaração Doutrinária tem a prerrogativa de definir o que é certo ou errado e as igrejas que são filiadas devem seguir a sua orientação. Nesse sentido, Jerry Stanley Key ao comentar “Escrituras Sagradas” na Declaração Doutrinária da CBB, sentencia: “A Convenção não apenas tem o direito, mas a responsabilidade de dar a orientação a respeito desta e de outras doutrinas básicas e fundamentais às entidades que cooperam com ela e, por extensão, às igrejas a ela afiliadas”. Na mesma esteira, John Landers afirma o contrário: “Em caso de diferença de interpretação bíblica, cada igreja batista tem que ler e interpretar a Bíblia para si mesma. De acordo com este princípio, cada igreja define sua própria maneira de proceder em questões duvidosas”. O que temos aqui? O primeiro tem como pressuposto de que a “declaração” é, por si, normativa quando instrumentalizada pela CBB. O segundo tem no seu horizonte os Princípios Batistas e não há como negá-los, mesmo quando igrejas locais estão diante de problemas doutrinários.

TENSÃO II – CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA versus IGREJA LOCAL

Nos últimos anos, devido os desafios eclesiológicos e teológicos, a CBB tem recorrido à Declaração Doutrinária como mecanismo de interferência na igreja local. De maneira sistemática, a CBB tem se envolvido em disputas doutrinárias e teológicas que não tem competência para fazer. Munida com a Declaração Doutrinária, sentencia igrejas a partir de um purismo doutrinário que julga ter. É preciso ressaltar que nem sempre foi assim. Nos últimos 15 anos, as sucessivas lideranças da CBB vêm agindo dessa forma, desfigurando o “modo de ser” Batista. A CBB tem na sua história e trajetória figuras que sempre procuraram evidenciar os Princípios Batistas. É recente essa “interferência” política na igreja local e a constante tentativa de arrogar para si a prerrogativa de “instância superior” dos Batistas. Isso ficou evidente quando a atual diretoria da CBB, juntamente com o Conselho Geral, elegeu um “chanceler” para atuar nas convenções estaduais. Um cargo/função inexistente na administração, mesmo o Estatuto da CBB (Art. 17) deixar explícito que a Diretoria Administrativa e o Conselho Geral só poderem eleger um “Diretor Executivo” e não criar um outro cargo/função sem a anuência do plenário da CBB em Assembleia Anual.

É legítimo essa postura? Não!

Em recente disputa entre a CBB e uma igreja Batista, foi redigido isso em um documento oficial encaminhado ao Poder Judiciário: “A Convenção Batista Brasileira (CBB) é o órgão máximo da denominação batista no Brasil. [...] É ela quem define o padrão doutrinário e unifica o esforço cooperativo dos Batistas do Brasil”. Percebam a gravidade da afirmação: “A CBB define o padrão doutrinário”. Quem deu essa prerrogativa para a CBB? A entidade paraeclesiástica entende que a tem porque detém uma Declaração Doutrinária. Nesse sentido aqui pouco importa o que a Bíblia diz ou qualquer recurso que poderia advir dela, antes a Declaração Doutrinária já definiu o sim e o não.

Isaltino Gomes Coelho Filho dizia que “a Declaração Doutrinária da CBB não era normativa, mas indicativa do que a maioria dos Batistas creem”. Parece que muitos esqueceram disso.

Por conta dessa tensão, que um juiz de primeira instância decidiu por afastar o pastor da igreja por entender que a CBB funcionava como uma espécie de instância máxima dos Batistas em termos de padronização, ou seja, a CBB estava acima da igreja local. Uma vez a CBB decidindo pelo grupo litigioso, o juiz entendeu que a CBB tinha a palavra “final” sobre a igreja local.

A igreja local perde a sua autonomia garantida por um dos Princípios Batistas e quem assume é uma instituição paraeclesiástica, que não tem legitimidade neotestamentária para ser/agir como igreja.

Interessante que a mesma Declaração Doutrinária que é acionada para suprimir liberdades e afrontar consciências, assegura que a igreja local é quem tem essa incumbência bíblica, qual seja, a legitimidade bíblica de decidir suas questões. No artigo VIII – Igreja da Declaração Doutrinária da CBB está assim: “As igrejas neotestamentárias são autônomas, têm governo democrático, praticam a disciplina e se regem em todas as questões espirituais e doutrinárias exclusivamente pela Palavra de Deus, sob a orientação do Espírito Santo”. John Landers comentando sobre a atuação do Espírito Santo na igreja, irá afirmar que “o Espírito Santo habita em todos os crentes e, por esta razão, pode manifestar-se através do plenário da igreja”. Seria ele ingênuo ou um idealista da doutrina do Espírito Santo e sua atuação bíblica na igreja sendo um fiel defensor dos Princípios Batistas?

ALGUNS DESAFIOS

Estamos diante de alguns desafios. Por um lado, estamos observando uma instituição criada pelos Batistas em 1907 para ser uma catalizadora de esforços, arrogando para si prerrogativas que não têm. Por outro lado, estamos cada vez mais cientes de que as igrejas Batistas sofrem com a ausência de uma boa teologia bíblica e pastores/mestres qualificados para ensinar teologicamente o rebanho.

Agrega-se a isso, um movimento de cunho fundamentalista organizado que tem procurado colocar as “confissões” como credos para os Batistas para fazer, mais ainda, a separação, a distinção dos “fiéis” e dos “infiéis”, forçando a uma uniformidade doutrinária e fazendo um lobby junto à CBB. Ficou claro isso quando a CBB tentou “revisar” a Declaração Doutrinária de 1986.

Para ficar ainda mais tenso tudo isso, há uma tentativa de “calvinizar” os Batistas a partir da sua origem inglesa, reivindicando a Confissão de Fé Batista de 1689 como sendo a mais legítima de todas, portanto, a que deveria ser seguida como um retorno às “origens”.

Numa era conhecida como “pós-denominacional”, os Batistas conseguirão se manter dentro dos seus Princípios ou serão tragados por um institucionalismo encampado pela CBB, tornando-se em algo que A. B. Langston tanto temia que a CBB se transformasse um dia em uma “super-Igreja ou espécie de Igreja-mãe”?

10.5.24

E OS NOSSOS CULTOS, COMO ESTÃO?

Eu cresci em uma igreja Batista em que o culto era tido como “tradicional”. O que isso significa? Que era uma igreja em que a celebração seguia um certo rito considerado “formal”, ou seja, havia o coral (inclusive eu participava), o piano/órgão como instrumento padrão para os hinos congregacionais (Cantor Cristão ou HCC), com a regência do ministro de música da igreja. A liturgia era pensada a partir de uma lógica, com início, meio e fim e não havia nada desconectado no culto. Os hinos, os cânticos, a leitura bíblica e o sermão, estavam todos alinhados com o tema do culto. Não se cantava sobre a graça de Deus e o pastor pregava sobre Davi e Golias. Isso não acontecia de maneira nenhuma. É claro que havia momentos de entusiasmo e isso ficava no período dos cânticos espirituais (os louvores), mas dentro de uma mesma dinâmica litúrgica. Tenho saudade e boas lembranças desse tempo. Fui feliz e servi ao Senhor na comunidade de fé, a qual reconheceu em mim o chamado para o ministério pastoral, encaminhou para a faculdade teológica, custeou o curso e, depois de concluído o curso, também ordenou ao pastorado.

O tempo passou e algumas coisas mudaram e as igrejas, de um modo geral, acompanharam esse movimento. Até porque, ela vive dentro de uma cultura e segue as tendências que a cultura, de certa maneira, impõe através de uma série de fatores: mídias, redes sociais, moda, personalidades.

Minha provocação com esse texto é o quanto as igrejas Batistas mudaram suas liturgias e alguns itens que outrora faziam parte, passaram a não fazer mais por conta das tendências.

Dentro dessa dinâmica que conhecemos bem, parece que, no percurso, fomos perdendo algumas características que nos definiam enquanto igreja evangélica no Brasil de tradição protestante com um recorte bem específico dentro do protestantismo histórico, portanto, Batista. Os batistas são um recorte dentro do protestantismo de origem inglesa; um recorte dentro do conjunto denominacional protestante norte-americano; um recorte dentro da chamada igreja evangélica brasileira; um recorte dentro das igrejas históricas protestantes no Brasil. Com isso, temos uma “certa” identidade que segue um “certo” segmento no protestantismo que leva o nome de Batista.

Com as mudanças no campo evangélico brasileiro, as diferentes identidades das igrejas foram embaralhadas. Não dá tempo expor isso aqui, mas a cultura gospel de consumo ajudou muito nesse processo. As igrejas se apropriaram do conceito de business e isso não tem data para acabar.

O que estamos vendo é um amalgama de igrejas fazendo a mesma coisa em termos de estrutura física; cantando as mesmas músicas; os pregadores pregando os mesmos temas. E ainda assim, seguem dizendo aos quatro cantos que são diferentes dos seus vizinhos.

O que diferencia uma Igreja Batista de uma Church? Entendendo que o nome “church” não é apenas uma “americanização” do termo “igreja”, antes é um estilo de culto, de pregação, de espaço físico, de ênfase teológica (quando tem uma). Há igrejas Batistas que adotaram em seus templos e slogans o termo “church” como uma maneira de sinalizar que estão antenadas ao “novo momento”.

Com isso, igrejas Batistas não estão se diferenciado de igrejas tidas como independentes que atuam no campo neopentecostal, por exemplo.

São igrejas que não há mais uma liturgia definida (que não precisa ser, necessariamente aquela que coloquei no início desse texto sobre a igreja que cresci). O que não tem em termos litúrgicos? Não tem, principalmente, um propósito teológico com a celebração. Assim, o culto é tido como um show; o pastor como um coach; a igreja como uma church; as pessoas se veem em um meeting. O pastor não usa Bíblia, antes ele faz questão de pregar com o seu macbook; não há oração formal com a igreja; não há leitura bíblica em comunidade; os cânticos são voltados para as demandas pessoais dos presentes; e os momentos intimistas são carregados de mensagens melódicas e adocicadas. E quando são questionados sobre essa modalidade litúrgica, respondem prontamente de que a igreja mudou para acompanhar as novas tendências do momento. E isso é tido como sinal de “espiritualidade”.

É uma discussão que gera controvérsias, eu sei. Mas o que vejo é uma falta de equilíbrio, de sensibilidade, de conhecimento da tradição (não tradicionalismo), do conteúdo bíblico-teológico e, até mesmo, de inteligência, em alguns casos.

Celebração em que a comunidade não tem teologia saudável, qualquer coisa é assimilada.

Na tradição protestante, a liturgia é tida como um dos pilares da presença da igreja no mundo. Aliás, a palavra liturgia é de origem grega e significa serviço para o povo. O momento de celebração é a oportunidade que a igreja tem para sinalizar a obra e mensagem de Jesus, além de deixar bem claro que as estruturas desse mundo são pecaminosas e que somente pela mensagem da cruz de Cristo e na esperança da ressurreição, as coisas terão o seu desfecho dentro da perspectiva divina. Não dá para flertar com isso. A igreja não pode abdicar de ser uma comunidade que entende o seu papel no mundo e celebra, por antecipação, o futuro de Deus.

Na minha experiência como pastor de uma comunidade que, ao longo dos anos, alterou a sua liturgia, alguns itens do culto são indispensáveis, quais sejam: a Bíblia lida de maneira comunitária e pregada expositivamente; os cânticos apurados teologicamente; a primeira oração pública é de adoração, aquela que coloca Deus no seu devido lugar. A tradição batista é lembrada a partir de cânticos que fizeram parte da história da denominação. A celebração é alegre, festiva, mas também trinitária. Há espaço para mudanças, mas não sem levar em consideração a teologia do culto, em primeiro lugar, a tradição batista e a leitura crítica da cultura brasileira.

10.10.23

LIMINAR AFASTA PASTOR BATISTA DA LIDERANÇA DA IGREJA

“A Convenção Batista Brasileira (CBB) é o órgão máximo da denominação batista no Brasil. É ela quem define o padrão doutrinário e unifica o esforço cooperativo dos Batistas do Brasil”.

Esse enunciado está no documento da CBB que tratou de um Concílio Decisório envolvendo a Igreja Batista da Praia do Canto (Vitória/ES) e um pequeno grupo de pessoas (25) que foram até a justiça para retirar da liderança da igreja o pastor Usiel Carneiro, que tem o apoio da maioria dos membros da igreja [para saber mais].

A partir de uma concepção equivocada quanto aos limites da liderança da CBB e dos conciliáveis que emitiram o documento “Decisão do Concílio Decisório”, o juiz da área cível expediu uma liminar determinando o afastamento do pastor da liderança da igreja tendo como base este documento. Isto porque ele entendeu que a CBB tem a legitimidade da última palavra para determinar se uma igreja é ou não é Batista. O juiz, desconhecendo o funcionamento de uma Igreja Batista (o magistrado deveria consultar alguém que entendesse sobre a denominação Batista antes de proferir a liminar), julgou que a CBB é uma espécie de instituição-sede das “igrejas Batistas” que funciona a partir de um sistema episcopal ou hierárquico. Isso se deu porque no preâmbulo do documento diz textualmente que a CBB “é quem define o padrão doutrinário”. Uma vez que é ela, a CBB, quem define a doutrina, e ela acolheu as alegações do grupo litigioso, o juiz entendeu que a CBB está certa em relação aos requerentes.

Quem foi que deu essa prerrogativa para a CBB? Quando foi que a CBB passou a ser aquela entidade que “define o padrão doutrinário” dos batistas no Brasil?

Não é de hoje que boa parte da liderança da CBB quer seguir os mesmos passos da Convenção Batista do Sul dos EUA: ser um órgão escrutinador para dizer quem é e quem não é “batista”. Uma instituição paraeclesiástica quer arrogar para si a palavra final quanto a temas doutrinários de uma igreja local. Alguns alegam que isso é possível porque a CBB tem uma “Declaração Doutrinária”. Será que é isso mesmo?

É importante lembrar a CBB dos seus limites:

1. Como já dizia o saudoso pastor Isaltino Gomes Coelho Filho, “a Declaração Doutrinária da CBB não é normativa, mas indicativa do que a maioria dos batistas creem”. Caso fosse normativa, nenhuma igreja poderia ter pastores “calvinistas”, uma vez que a Declaração Doutrinária não é “reformada”.

2. A Declaração Doutrinária da CBB não funciona, precisamente, como um mecanismo de uniformidade doutrinária. São os Princípios Batistas cotados como fundamentais para o modo de ser batista e não o sistema doutrinário, uma vez que os batistas não têm, na sua história, nenhum credo ou confissão que possa ser considerado como definitivo para a maioria dos batistas. Não será a CBB quem irá mudar isso.

3. O Estatuto da CBB, em cláusula pétrea, registra: “A Convenção reconhece como princípio doutrinário a autonomia das igrejas filiadas, sendo as recomendações que lhes são feitas decorrentes do compromisso de mútua cooperação por elas assumido”. Onde está escrito que é a CBB “quem define o padrão doutrinário”? Consta aí que é a igreja local e jamais a CBB. E não poderia ser diferente, uma vez que a tradição Batista tem na igreja local o seu início e o seu fim e não um órgão cooperativo como é a CBB.

4. A Convenção Batista Brasileira não tem como função ser a “guardiã da doutrina” entre os batistas. A CBB não tem competência burocrática e muito menos legitimidade bíblica por uma razão muito simples: a CBB não é uma igreja. Por esse fato, não pode usurpar a autoridade da igreja local e decidir por ela. Já dizia 𝐀. 𝐁. 𝐋𝐚𝐧𝐠𝐬𝐭𝐨𝐧, um dos autores que mais compreendia a denominação em 1933: “A Convenção Batista Brasileira não é uma super-Igreja ou espécie de Igreja-mãe, mas simplesmente uma organização auxiliadora das Igrejas locaes”.

5. O critério de verificação quanto a temas bíblicos e sua aplicação hermenêutica se dá, exclusivamente, pela igreja! 𝐉𝐨𝐡𝐧 𝐋𝐚𝐧𝐝𝐞𝐫𝐬, influente professor no Seminário Batista do Sul do Brasil (Rio de Janeiro) quando pesquisou os Princípios Batistas e escreveu um livro com o título “Teologia dos Princípios Batistas”, assegurou: “Em caso de diferença de interpretação bíblica, cada igreja batista tem que ler e interpretar a Bíblia para si mesma. De acordo com este princípio, cada igreja define sua própria maneira de proceder em questões duvidosas”.

Com isso, fica difícil entender como que uma liderança assume o “órgão máximo da denominação batista no Brasil” e não compreende os seus limites, atribuições, espírito cooperativo e não belicoso e desconhece o básico da tradição Batista quanto ao alcance da Declaração Doutrinária da CBB.

Estamos diante de um fato curioso e, no mínimo, desonroso para os batistas brasileiros: um juiz entendeu que a CBB é um órgão julgador por excelência em disputas entre membros de uma Igreja Batista e, uma vez tomada uma decisão em um Concílio Decisório que não seguiu todos os ritos previstos, o juiz entendeu que a CBB tem autoridade para desconsiderar a vontade de quase 400 membros que caminha apoiando o seu pastor e não desistirão de recorrer de uma decisão que foi induzida ao erro [resposta do pastor da IBPC].

8.6.23

UMA CARTA ABERTA A TODOS OS BATISTAS DO SUL DOS EUA

Por Rick Warren | pastor da Igreja Saddleback (Califórnia, EUA) | 02/06/2023

Como pastor batista do Sul com várias gerações de pastores em minha família, minha vida foi moldada e nutrida pela SBC [sigla em inglês da Convenção Batista do Sul dos EUA].

Estou escrevendo esta carta aberta por dois motivos:

Primeiro, estou profundamente preocupado com os 17 anos de declínio de nossa denominação e a perda de meio milhão de membros no ano passado. Nenhuma denominação pode suportar esse tipo de perda.

Em segundo lugar, muitos me pediram para explicar por que a Igreja Saddleback está apelando de uma decisão do Comitê Executivo em nossa reunião anual em Nova Orleans em duas semanas.

A Convenção Batista do Sul é um mosaico de muitos tipos de “tribos” batistas que se uniram para cooperar na Grande Comissão. Somos batistas gerais (os batistas fundadores originais de 1609), batistas de avivamento, batistas fundamentalistas, batistas calvinistas e muitas outras variedades de batistas.

Desde o início, nossa unidade sempre se baseou em uma missão comum, não em uma confissão comum. Nos primeiros 80 anos da SBC, nem sequer tínhamos uma confissão porque os fundadores se opunham veementemente a ter uma. Eles sabiam que nunca conseguiríamos que 100% dos batistas concordassem 100% em 100% de todas as interpretações das Escrituras.

É por isso que cada versão da Fé e Mensagem Batista se autodenomina um “consenso de opinião” e repetidamente nos adverte que não é um credo a ser usado para reforçar a uniformidade doutrinária ou excluir membros de nossa família denominacional. Os membros de sua própria família costumam ter opiniões opostas, mas você não os repudia por isso. Você ainda os ama, apesar das divergências.

“Consenso” significa “geralmente acordado”.  Não significa "universalmente ou unanimemente acordado".

Por exemplo, nenhum dos mensageiros de nossas igrejas que votaram contra as mudanças feitas na revista Baptist Faith and Message em 2000 foi expulso, embora discordassem de algumas das declarações. Essa é a maneira batista. Nunca exigimos que todos os batistas concordem com todas as interpretações.

Na verdade, por 178 anos, os batistas do Sul concordaram em discordar em dezenas e dezenas de diferenças doutrinárias para que pudéssemos cooperar para o Evangelho.

A decisão atual do Comitê Executivo abrirá uma caixa de Pandora de consequências não intencionais, a menos que a rejeitemos. Isso destruirá fundamentalmente quatro distintivos históricos dos batistas do Sul sobre os quais a Convenção foi organizada por nossos fundadores.

Ela vai:

1. Mudar a base da nossa cooperação;

2. Mudar a base da nossa identidade;

3. Centralizar o poder no Comitê Executivo e tirar autonomia das igrejas;

4. Transformar nossa confissão em um credo, ao qual os batistas sempre se opuseram. Todos nós crescemos com o slogan “Não temos livro senão a Bíblia, e não temos credo senão Cristo!”.

Nosso apelo para reverter a decisão do Comitê Executivo não é pedir a nenhum batista que mude sua teologia.  De jeito nenhum. A esmagadora maioria dos batistas do Sul é complementarista. Mas rejeitamos a ideia de que os batistas do Sul que discordam são uma ameaça existencial à nossa Convenção e não verdadeiros Batistas.

Queremos cooperar na Grande Comissão. Tudo o que pedimos é que os batistas do Sul ajam como Batistas do Sul, como temos feito por 178 anos, e continuem a ser uma comunhão de igrejas independentes que concordam em discordar em muitas coisas para concordar em cumprir nossa missão juntos.

Este pode ser o melhor momento dos Batistas do Sul. Deve ser o momento em que dizemos “não” para nos tornarmos uma denominação de credo (como alguns presbiterianos que têm 11 credos e confissões) e, em vez disso, reafirmamos que é a Grande Comissão que nos une, não a uniformidade doutrinária em cada jota e til.

Este deveria ser o momento em que mais de 47.000 igrejas autônomas, independentes e amantes da liberdade dizem não para transformar o Comitê Executivo em um magistério teológico que controla uma inquisição perpétua das igrejas e faz do Comitê Executivo uma hierarquia centralizada que diz às nossas congregações quem contratar e como chamá-los.

Este é um voto para afirmar a liberdade dada por Deus a todo batista de interpretar as Escrituras como batista – dizendo não àqueles que negam essa liberdade. Este é um voto para afirmar o evangelismo dizendo não ao partidarismo.  Este é um voto para reorientar a Grande Comissão e dizer não a uma Grande Inquisição, que desperdiçará muito tempo, dinheiro e energia que deveríamos estar investindo na revitalização de nossas igrejas.

Este é um voto para continuar sendo a denominação de Lottie Moon e Annie Armstrong – duas mulheres fortes e piedosas que destemidamente falaram aos homens e os desafiaram em todos os lugares sobre a prioridade das missões, e para dizer não àqueles que teriam silenciado essas mulheres batistas do Sul.

Este é um voto para afirmar nossos documentos fundadores que insistem que nossa unidade deve ser baseada em dar total submissão a Cristo em nossas ações e não em submissão mental a credos feitos pelo homem.

Dê-me uma Bíblia e eu a assinarei como minha autoridade. A Bíblia é a única autoridade Batista.

Este é um voto para priorizar os batistas que trabalham juntos para curar as feridas do mundo em nome de Jesus, em vez de criticar uns aos outros por causa de nossas muitas diferenças.

Para os batistas do Sul, a independência e liberdade de nossas igrejas tem sido uma grande força. Nossa rejeição de uma hierarquia centralizada tem sido uma força. E nossa rejeição de um credo executável tem sido uma força. Foi apenas nos últimos 17 anos, quando nos afastamos dessas forças históricas, que nossa denominação começou a declinar rapidamente.

A SBC cresceu por 80 anos – 80 anos! — sem qualquer declaração de fé porque a nossa unidade nunca foi baseada numa confissão.  Então crescemos por mais 90 anos – com uma confissão consensual que nunca foi usada para excluir pessoas com base na interpretação.

Em nossa história de 178 anos, foi apenas nos últimos oito anos que a Fé e a Mensagem Batista foram armadas e transformadas em um credo de exclusão. Isso aconteceu por meio de uma emenda equivocada à Constituição da SBC aprovada em 2015. Hoje, nossos fundadores estão rolando em seus túmulos.

Na história dos Estados Unidos, quando as pessoas perceberam que uma emenda constitucional estava errada, os cidadãos tiveram o direito e a responsabilidade de revogá-la. Da mesma forma, os batistas do Sul precisam retomar sua denominação revogando a emenda não batista de 2015, para que possamos ser verdadeiros Batistas novamente.

Os batistas do Sul sabem como corrigir humildemente os erros. Recentemente, começamos a fazer isso com vítimas de abuso sexual em nossas igrejas. Em 1995, na 150ª reunião anual em Atlanta, houve outro momento histórico de honra a Cristo, quando os batistas do Sul corrigiram um grave mal histórico ao adotar a “Resolução sobre a Reconciliação Racial”.

Nessa humilde resolução, os batistas do Sul lamentaram e se arrependeram do pecado da escravidão, repudiaram o racismo, pediram desculpas aos nossos irmãos e irmãs afro-americanos e humildemente pediram o início do processo de reconciliação. Lembro-me de Kay e eu sentados ao lado de um pastor negro e sua esposa que choraram quando a resolução foi aprovada. Desde então, milhares de igrejas não-brancas encontraram um lar em nossa Convenção.

Esse crescimento resultou de uma correção!  Podemos fazer isso de novo.

Se não corrigirmos a direção que estamos seguindo há oito anos, dizendo não à decisão equivocada do Comitê Executivo e, em seguida, revogando a emenda não batista de 2015, nossa Convenção continuará a ficar mais fraca e menor.

Continuaremos tendo brigas e atritos entre tribos e facções; xingamentos nada cristãos; desperdiçando tempo, dinheiro e energia da Convenção; perda de confiança e credibilidade; declínio contínuo de membros; e a morte da base de cooperação sobre a qual este corpo foi fundado. Essa base – uma missão comum, não uma confissão – foi o gênio fundador que tornou a SBC grande.

É por isso que nossa igreja está contestando a decisão: não por nós mesmos, mas pelo futuro e pela natureza da SBC, que está em jogo.

As implicações desse precedente não podem ser exageradas. Então, eu peço a vocês, amigos, que votem não na reunião anual em Nova Orleans.

***

A carta escrita pelo pastor Rick Warren da Igreja Saddleback, na Califórnia, uma das maiores igrejas da Convenção Batista do Sul dos EUA, com 26 mil membros, é uma reação ao pedido de "desligamento” feito pelo Comitê  Executivo da Convenção porque em 2021 a igreja decidiu ordenar três mulheres para o ministério pastoral.

A Convenção irá se reunir em sua Assembleia Anual nos dias 11 a 14 de junho na cidade de New Orleans, onde será votado em plenário pelos mensageiros a permanência ou não da Igreja Saddleback na Convenção Batista do Sul dos EUA. 

Fonte: https://baptistnews.com/article/an-open-letter-to-all-southern-baptists

10.1.23

AS “IGREJAS” DOS TERRORISTAS

Colhemos o que plantamos. 

Há tempos que pastores, teólogos e sociólogos da religião vinham afirmando que o movimento autointitulado de “gospel” era danoso para as igrejas.

Denunciávamos a igreja eletrônica, midiática, suntuosa, pomposa, onde o número dos espectadores do “show da fé” era o que validava as práticas, algumas delas feitas na Lagoinha.

A máxima do “se enche de gente é válido”, tese iniciada com o Church Growth Movement, a partir do Fuller Theological Seminary, plantou na seara das igrejas as muitas sementes do joio.

A comunhão, essencial para o culto cristão, cedeu espaço para a empolgação. Os compromissos cristãos com a santificação, amor ao próximo, edificação alicerçada no ensino sério e profundo, cederam espaços para os holofotes, palcos, luzes estroboscópicas, equipe musical, cantores performáticos, pregações motivacionais, conhecimento de obviedades bíblicas como se fosse o suprassumo da teologia.

“Pastores” brotaram como se fossem tiriricas no meio do gramado. A educação teológica em seminários foi substituída por decoreba de versículos. Buscou-se animadores de auditório e não pastores. Tocadores de violão, guitarra ou bateria viraram “pastores”. Animadores de auditório substituíram educadores teológicos.

Locais de reunião pintados de preto por dentro e por fora, nomes sempre incluindo a palavra “church”. Aglomerações sem estrutura jurídica, sem estatuto e membresia, se presta(va)m aos interesses pessoais dos líderes destes ajuntamentos.

A tese fundamentalista de que a Palavra é a verdade, produziu um contingente que acredita que sua interpretação particular das Escrituras é verdade infalível. A Bíblia, em uma atitude mágica, foi levantada, carregada e usada como escudo nesta batalha, como se a Bíblia, por si só, garantisse a imunidade e impunidade. Diante dos crimes, as interpretações bíblicas não serão aceitas diante do Código Penal.

Hinos com poesia rica e teologia sólida foram trocados por refrões infantis e de conteúdo próximo ao zero, com repetição ad nauseam de frases motivacionais. Doidos e histriônicos, falaram e usaram da proximidade com o poder de plantão para fazer suas (Silas) Maracutaias.

“Tias profetisas” inundaram as redes com suas profetadas preditivas, garantindo o que as urnas não confirmaram. A “empreja”, que é partido político, usou e abusou das benesses do ser acólita do governo defenestrado.

Sempre acreditei no "remanescente fiel”, presente na história da religião de Israel e na história da Igreja. Entre eles os reformadores radicais, que deram suas vidas para estabelecer a separação entre a Igreja e o Estado.

(Marcos Inhauser)

25.11.22

A NATUREZA E O PRINCÍPIO PLURALISTA

Alonso Gonçalves

Há um consenso, nas ciências sociais, de que a pluralidade é um fator incontestável da realidade. Dito de outro modo, a pluralidade não é apenas um discurso narrativo, antes é uma maneira de ver e praticar a vida em sua diversidade e concepções. Daí uma das funções da pluralidade é favorecer a aceitação da existência do outro e de sua absoluta alteridade. Essa constatação se dá a partir do entendimento de que as relações de poder precisam ser diminuídas para que o plural seja valorizado enquanto constituinte de leitura da realidade. Desafio sempre atual na conjuntura do mundo.

Assim, estamos de acordo com Claudio de Oliveira Ribeiro (2020, p. 25) quando define o “princípio pluralista”, objeto de alguns anos de trabalho com o tema, como “um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos gerados nos ‘entrelugares’”. O “entrelugares” se constitui como um dos pilares do “princípio pluralista”, uma vez que permite ultrapassar fronteiras e estabelecer pontes entre os temas da vida. Por essa razão, que o “princípio pluralista” é uma ferramenta hermenêutica porque “possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade” (RIBEIRO, 2020, p. 25-26).

Nesse sentido, o princípio pluralista contribui para ampliar o debate que segue na agenda da ONU e dos países ricos: desenvolvimento e meio ambiente. A partir do princípio pluralista, entendemos que não seja possível olhar esse tema a partir das questões colocadas pelos países ricos e seus representantes e muito menos pelo “mercado” que visa sempre o lucro e o acúmulo, em detrimento dos recursos naturais. É urgente o olhar místico-teológico sobre o tema para assim ajudar a ver a realidade na sua pluralidade.

Os estudos feitos por J. E. Lovelock demonstrou a complexidade e a interligação de tudo que acontece no planeta. Essa complexidade de Gaia precisa ser respeitada na sua inteligência. Não é nada por acaso. Nada está fora de lugar por acaso. Nesse sentido, é preciso reconhecer que estamos imersos dentro de uma “Inteligência que excede em muito a nossa” e agindo assim “significa render-se humildemente a uma Inteligência mais sábia e soberana do que a nossa” (BOFF, 2009, p. 56). A relação que precisa ter com Gaia, uma vez admitindo a sua complexidade e inteligência, precisa ser espiritual, místico-teológico. Tendo como princípio a pluralidade na leitura da realidade.

Não é mais concebível que a discussão em torno do clima, das matas, rios e florestas deixe de fora o olhar místico-teológico. Por isso, dentre todos os olhares para este dado da realidade, o místico-teológico se encaixa dentro do princípio pluralista porque procura possibilitar “divergências e convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão”. A visão místico-teológica é uma dessas perspectiva crítica que favorece o diálogo, além de empoderar grupos como os povos originários com sua cosmo-convivência que foi subalternizada por longos anos, tratando-os como povos inferiores e desprovidos de conhecimento sobre a vida. Está se provando que isso é uma falácia e não poucos estudiosos e pesquisadores estão se dando conta disso e buscando na sabedoria dos povos originários alternativas para lidar com o enorme problema que a ciência/modernidade colocou o planeta.

Ailton Krenak (2020, p. 28), com um olhar plural, lembra que “a vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa norte e sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta”. Como raízes de uma árvore que, aparentemente não se vê, mas está ali com suas inúmeras ramificações com beleza e resistência, o princípio pluralista ajuda a fazer uma leitura que seja mais próxima das reais demandas da vida.


Referências
BOFF, Leonardo. A opção-Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de Janeiro: Record, 2009.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O princípio pluralista. São Paulo: Loyola, 2020.

*Texto produzido para o Minicurso "O que é o Princípio Pluralista" oferecido pelo Claudio de Oliveira Ribeiro*

31.10.22

O dEUS DERROTADO NAS URNAS

Texto postado no Facebook no dia 29.10.2022

Ele não queria se meter nisso, até porque nem mesmo “título de eleitor celestial” ele tem. Mas mesmo assim quiseram colocá-lo no rolo. Usaram e abusaram do seu “Nome” de uma maneira vergonhosa, logo, produziram um ídolo, por isso trata-se de “deus”.
Teve quem disse que depois de dois períodos de jejum de 40 dias, “ouviu a voz” de deus dizendo claramente que o 22 levaria essa. Outro disse que “orou muito” e deus disse que a “vitória” viria em outubro, para envergonhar o "diabo". Houve quem disse que orou para deus travar as urnas, no caso de fraude, e assim ter outra “eleição”. Isso sem falar em pastores e líderes que pregaram, fizeram vigília, convocaram membros para a campanha de jejum e oração pelo 22; expulsou irmãos que votaram no 13 e monitorou grupos de 𝑊ℎ𝑎𝑡𝑠𝐴𝑝𝑝 e redes sociais dos irmãos que externaram seu voto no 13, contrariando a "orientação divina” que só o pastor tem. E claro, o que não faltou foram pastores pedindo para que esse deus desse a vitória sobre o “inimigo”, no caso, o 13.
Edir Macedo, chegou a dizer que nessas eleições o povo viria qual deus era o mais forte, da direita ou da esquerda. E não faltou dinheiro para produzir milhares de jornais da IURD a fim de afirmar que os fiéis não deveriam votar no 13, assim como foi em 1989.
Com o 22 perdendo nas urnas, os profetas desse deus precisarão “revisar” a sua atuação e elaborar uma outra “teologia do voto”.
Esse deus não ouviu as orações dos vários pastores que falaram em nome dele; esse deus não travou as urnas; esse deus não mudou os dedos dos eleitores na hora do voto, forçando-os a apertarem o número 2 duas vezes; esse deus não honrou o jejum de quase 80 dias do pastor que disse ter ouvido a “voz” de “deus”; esse deus é fraco porque não consegue nem mesmo mudar a história de um País; esse deus é ruim porque não evitou a derrota do seu suposto escolhido, o ungido, o “messias”. Um deus sem poder. Um deus sem força. Um deus sem profetas.
Pastores do 22 terão que explicar para os seus irmãos convertidos ao Bolsonarismo, porque não só um candidato perdeu as eleições, mas também um certo deus perdeu o seu domínio. Terão que explicar o que aconteceu com o deus derrotado nas urnas.
Ficará um pouco mais fácil no caso deles admitirem que no fundo mesmo sempre se tratou de um ídolo. Assim, a explicação poderá ficar, ao menos, pior. Mas acho difícil.