30.12.15

FAÇA NOVO O TEU ANO

Neste Ano Novo, se faça novo, reduza a ansiedade, regue de ternura os sentimentos mais profundos; imprima a seus passos o ritmo das tartarugas e a leveza das garças.

Não se mire nos outros; a inveja mina a autoestima, fomenta o ressentimento e abre, no centro do coração, o buraco no qual se precipita o próprio invejoso.

Espelhe-se em si mesmo, assuma seus talentos, acredite em sua criatividade, abrace com amor sua singularidade. Evite, porém, o olhar narcísico. Seja solidário: estenda aos outros as mãos e oxigene a própria vida. Não seja refém de seu egoísmo.

Cuide do que fala. Não professe difamações e injúrias. O ódio destrói a quem odeia, não o odiado. Troque a maledicência pela benevolência. Comprometa-se a expressar alguns elogios por dia. Sua saúde espiritual agradecerá.

Não desperdice a existência hipnotizado pela TV ou navegando aleatoriamente pela internet, naufragado no turbilhão de imagens e informações que não consegue sintetizar. Não deixe que a sedução da mídia anule sua capacidade de discernir e o transforme em consumista compulsivo. A publicidade sugere felicidade e, no entanto, nada oferece senão prazeres momentâneos.

Centre sua vida em bens infinitos, nunca nos finitos. Leia muito, reflita, ouse buscar o silêncio neste mundo ruidoso. Lá encontrará a si mesmo e, com certeza, um Outro que vive em você e que quase nunca é escutado.

Cuide da saúde, mas sem a obsessão dos anoréticos e a compulsão dos que devoram alimentos com os olhos. Caminhe, pratique exercícios, sem descuidar de aceitar as suas rugas e não temer as marcas do tempo em seu corpo. Frequente também uma academia de malhar o espírito. E passe nele os cremes revitalizadores da generosidade e da compaixão.

Não dê importância ao que é fugaz, nem confunda o urgente com o prioritário. Não se deixe guiar pelos modismos. Faça como Sócrates, observe quantas coisas são oferecidas nas lojas que você não precisa para ser feliz. Jamais deixe passar um dia sem um momento de oração.

Arranque de sua mente todos os preconceitos e, de suas atitudes, todas as discriminações. Seja tolerante, coloque-se no lugar do outro. Todo ser humano é o centro do Universo e morada viva de Deus. Antes, indague a si mesmo por que, às vezes, provocamos, nos outros, antipatia, rejeição, desgosto. Revista-se de alegria e descontração. A vida é breve e, de definitivo, só conhece a morte.

Guarde um espaço em seu dia a dia para conectar-se com o Transcendente. Deixe que Deus acampe em sua subjetividade. Aprenda a fechar os olhos para ver melhor.

(Frei Betto)

19.12.15

VIDA – O QUE DEVERIA SER E O QUE É

Assumir a vida com suas ambiguidades não é tarefa muito fácil. Fazer o processo da reflexão a partir da existência sem subterfúgios alienantes como, a meu ver, o dinheiro e, em alguns casos ou na maioria deles, a religião como fuga da realidade circundante é um desafio.
Quem se propõe a pensar a vida como ela é – como Nelson Rodrigues costumava dizer –, é o Qohélet (Eclesiastes), literatura sapiencial da Bíblia Hebraica que entrou no cânon judaico com muita desconfiança e descrédito. Um texto repleto de sentenças onde a acidez da vida se sobressai e o futuro é incerto e a atividade humana com todas as suas ocupações, principalmente o acumulo de riqueza é hebel, ou seja, puro vapor, passageiro e efêmero. O Qohélet busca por algo que possa ser tangível, só não trata da existência de Deus, no mais ele discuti com perspicácia as vicissitudes da vida. Ele não é profeta, muito menos moralista, é alguém que procura enxergar a discrepância entre o que foi ensinado e o que acontece de fato. Daí o seu pessimismo em relação aos discursos prontos de contentamento.
No caso de Nietzsche, a vida para ele é como Lulu Santos já profetizou: nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará. A vida vem em ondas como o mar, num indo e vindo infinito.
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche expõe três transformações que representa a passagem para encarar a vida de outra maneira: o camelo – corre carregado do peso existencial insuportável, trata-se da solidão, da angústia no deserto; o leão – a força, o desejo da liberdade do sentido, o tomar a vida pelas mãos; e o menino – metáfora da liberdade e da reconstrução, inocência, um começo, um brinquedo. Na metáfora do menino nasce um novo ser, em que a justiça, o amor, a vida, o lúdico estão presentes. Com a figura do menino, Nietzsche quer a realização de uma vida sem rancor pela vida, sem ciúme, é o dizer sim à vida e suas contingências, é amar a sua realidade em todas as suas manifestações para que possa se transformar em leão com a leveza do menino.
A contribuição de Qohélet e Nietzsche se dá a partir de um olhar para a vida com coragem e, ao mesmo tempo, com amor.
O Qohélet não está preocupado com a retribuição do bem ou do mal, ele está observando a vida e dela tira conclusões muito óbvias: porque o destino do homem é o destino dos animais, e a mesma desgraça os espera: como morre um, assim morre o outro. A morte é aniquilação, não retribuição. O Qohélet não espera recompensa para os supostos méritos em vida; todos tem o mesmo destino, ou seja, assim é a consequência da vida.
Em outro momento Qohélet faz uma leitura do mundo que para alguns soaria fatalista demais: vi debaixo do sol que não é dos ligeiros a carreira, nem dos fortes a batalha, nem tampouco dos sábios o pão, nem tampouco dos prudentes as riquezas, nem tampouco dos entendidos o favor, mas que o tempo e a oportunidade ocorrem a todos. Que também o homem não sabe o seu tempo; assim como os peixes que se pescam com a rede maligna, e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enlaçam também os filhos dos homens no mau tempo, quando cai de repente sobre eles. Aqui há, para usar uma linguagem nietzschiana, uma transvaloração da moral, ou seja, de que os justos sofrem e os maus são recompensados. A vida é para ser vivida com sua acidez que provoca angústias e desconforto, mas é neste sentido que se dá a vida como ela é, ou seja, não há nada de novo debaixo do sol, as coisas vem e vão, surge e desaparece, nasce e morre. Assumindo a vida com suas ambiguidades, o ser humano pode entender que todo o trabalho é para a sua boca e, no entanto, seu apetite nunca estará satisfeito.
O pessimismo é um recurso filosófico de Qohélet, uma vez que ele acentua o aspecto negativo da vida e não vê nenhum sentido positivo para o curso da história. Ele vê a vida e o elemento mais significativo dela, pelo menos no seu tempo, o trabalho e conclui: quando avaliei tudo o que minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento; não há nenhum proveito no que se faz debaixo do sol. Para Qohélet a vida é cheia de futilidades e aspirações inúteis, ou seja, hebel – vento. Chegar a essa conclusão é, por si só, uma afirmação da vida.