30.6.08

JESUS: O PREGADOR DO REINO DE DEUS

Nem sempre se soube lidar com a figura de Jesus. Para alguns no cristianismo primitivo ele tinha aparência de humano, mas não era – concepção conhecida como docetismo; outros postularam sua humanidade, mas que em algum momento ele foi adotado por Deus e elevado a condição divina – concepção conhecida como adocionismo. Sempre houve polêmica em relação a Jesus. Os debates nos Concílios sobre as duas naturezas e a luta contra o gnosticismo sempre levaram a igreja a formular doutrinas a respeito dele. Quando tornaram Jesus parte da Trindade, a teologia católica viu a necessidade em se buscar outro símbolo para ocupar o lugar daquele que deixa de ser humano para se tornar divino. O subterfúgio vem com a teologia mariana na Idade Média e o dogma da Assunção de Maria sancionado pelo Papa Pio XII em 1950. No século XIX e XX os fundamentalistas do norte acentuaram mais ainda a natureza divina de Jesus como reação e resposta a chamada teologia liberal nascida no velho continente. Esse Jesus desenhado pelos fundamentalistas estava envolto em três temas: o berço, a cruz e o túmulo. A grande preocupação era com a sua divindade e sua obra salvífica. Enquanto a teologia, ora denominada de liberal, apregoava de que era preciso resgatar os ensinos de Jesus, uma vez que a teologia ortodoxa sempre se preocupou em formular doutrinas teológicas sobre ele.

O fato é que o Jesus de Nazaré que chorou, riu, sofreu, alegrou-se e morreu, foi substituído por um Jesus transcendente e inacessível. A sua humanidade deu lugar a sua divindade utilitária apenas para fim soterilógico. Não esta se negando a divindade de Jesus, o que poderia ser abordada em outra ocasião, esta se expondo a necessidade de atentar para aquele homem que viveu e morreu em função de sua mensagem: o Reino de Deus. Hoje, a maioria de nossos irmãos desconhece o centro da mensagem de Jesus. Para muitos ele é o salvador “das nossas almas” e sua vida e ensino se resume nisso; outros ainda o confundem com um santo milagreiro; sem mencionar nos novos modismos teológicos, se é que podemos assim chamar, em que Jesus não passa de um meio para se receber bênçãos, na sua maioria de consumo. A mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus não é muito lembrada por aqueles que fazem profissão de fé em nossas igrejas; o “venha nós o teu Reino” quase ninguém entende. Não há comprometimento com o Reino de Deus pelo fato de desconhecerem as exigências da mensagem pregada por Jesus.

A grande obsessão de Jesus foi com o Reino de Deus. Sei que nem todos ficam contentes com isso, mas a verdade é que Jesus em nenhum momento quis fundar o cristianismo. Este só surgiu depois da vida, morte e ressurreição. O cristianismo é mais um resultado do que um propósito. Ele pregou o Reino de Deus e em lugar dele veio a Igreja. Jesus não fundou a Igreja, mas acabou sendo fundamento dela, como dizia Karl Rahner.

Ao iniciar sua caminhada naquelas terras áridas de um povo que não agüentava mais esperar pela intervenção de Deus; gente sofrida e calejada pela vida, mas que nutria a esperança em ver novamente seu povo livre da dominação estrangeira e a instauração do tão esperado Reino de Deus, o filho do carpinteiro, que vem de uma cidadezinha que quase ninguém conhecia direito, começa pregando o Reino de Deus.

Era esperado que aquele povo se empolgasse novamente. Seria este que assentaria no trono de Davi? Aquele que iria expulsar os impuros da terra santa? Eram tempos de expectativas (Lc. 3,15). Os discípulos de João Batista manda logo perguntar: “é você mesmo ou havemos de esperar outro?” (Lc. 7,18-22). A questão toda era a natureza deste Reino que Jesus estaria para propor. Não era um reino político, territorial ou guerreiro, mas era um Reino que exigia mudanças na maneira de agir e pensar. Este Reino não poderia ser reduzido a meras expectativas políticas e nacionalistas dos judeus, ele tem outra natureza.

Com esta mensagem Jesus decepciona a todos: discípulos, povo e autoridades judaicas. Perguntam a ele: “quando vem o reino de Deus?” Ele responde: “não poderão vê-lo ali ou acolá, pois ele esta entre vós” (Lc. 17,20-21). O Reino de Deus está aí, é preciso decidir por ele. Há uma nova ordem a ser instaurada por Deus e ela está à disposição de todos. A maior característica do Reino de Deus é a libertação do próprio eu. Era deixar-se ser guiado e tomado por Deus, ser conduzido pelos seus cuidados e estender as mãos para o outro. Este Reino só poderia ter sentido para aqueles que entrassem nele como crianças (Lc. 18,15-17). Agora para aqueles que tinham outro reino dentro de si, como o homem rico, o Reino de Deus não acharia lugar (Lc. 18,18-24).

Jesus de Nazaré. Nasceu entre animais; andou preferindo a companhia dos maus cheirosos, publicanos, zelotes e leprosos. Acabou sendo executado como herege religioso, blasfemo e político subversivo, porque, supostamente, estava tentando ser rei de um povo que o pendura na cruz. Morreu porque se comprometeu com sua mensagem até o último momento de sua vida: o Reino de Deus.

A sua mensagem em nenhum momento foi imposta, é por isso que ele ensina a orar: “venha nós o teu Reino”. Ele não queria criar um novo mundo, mas transformar este velho e conhecido mundo com os valores do Reino. Procurou ser a resposta divina para as mazelas desta vida; ensinou-nos que quando nos abrimos para receber o Reino de Deus mudanças ocorrem, como no caso do pequeno Zaqueu (Lc. 19,1-9).

POR UMA NOVA IMAGEM DE DEUS

Refletindo sobre oração

Alguns anos atrás um amigo faleceu com câncer. Era um garoto, tinha apenas dezenove anos; bonito; bom emprego; estava sempre na Igreja; gostava de uma garota; tinha uma vida pela frente. No sofá de casa assistindo TV sentiu uma forte dor na altura da barriga e foi para o hospital. Em questão de dias o diagnóstico acusou câncer. Seu nome era Alberto.

A Igreja ora, os jovens choram, a mãe se desespera. Estava avançando rápido demais.

Naquele dia das mães, num hospital frio um jovem de olhos azuis encerra sua trajetória nesta realidade.

Foi por falta de oração? Será que a oração da Igreja não foi suficiente? Os irmãos não tinham fé? Os pentecostais teria tido êxito? Ou Deus quis levá-lo porque era da “sua vontade”? Será este Deus tão cruel ao ponto de dar cabo de uma vida na flor da idade? Se esta era, de fato, a “sua vontade”, como entender esta “vontade” que machuca e abre um vazio no peito de quem fica? Perguntas e mais perguntas. Foi aí que tive uma nova experiência com Deus. Ele não apareceu no meu quarto em “visão” para dizer o que tinha feito. Minha experiência foi de dentro. Aprendi alguma coisa sobre oração e uma nova imagem de Deus emergiu.

Aquela imagem de um Deus que esta fazendo a sua vontade de maneira implacável – e de que tudo o que ocorria nada mais era do que o seu controle sendo exercido – não era mais concebível. Conceber um Deus que agia por meio do determinismo, e que, portanto, permitia mortes horrendas, catástrofes, doenças, guerras pelo mundo enquanto o homem, passivamente, assistia a sua atuação era insustentável. Ainda tinha que ouvir crentes influenciados por uma teologia calvinista e exclusivista de que aos crentes em Jesus Cristo a misericórdia de Deus era constante. Sem contar a novidade estabelecida pelos neopentecostais de que a oração que não produzia resultados práticos – na sua maioria de consumo – não era oração de verdade. Oração mesmo é aquela em que se manipula a “mão de Deus” para receber recompensas. E os subterfúgios são diversos para constatar a resposta de Deus ao “clamor” dos 318.

Encontrei o sentido de oração no interior de minha existência. Foi na experiência com o Deus de Jesus que encontrei aquele fundamento de base. Naquele em que a oração se fez tão presente: preparou-se para a morte orando e morreu orando.

Concebi uma nova imagem de Deus. Não daquele que controla a história de maneira determinista e inexorável. Nesta nova imagem, ele não esta fora esperando ser acionado para agir de maneira intervencionista. Ele esta dentro e agindo no mundo, mas no e com os seres humanos. A estes foi lhes dada à capacidade de perceber essa Realidade que a tradição judaica chamou de Iahweh e Jesus com profunda intimidade chamou de Abbá.

Oração foi o meio que encontrei para se captar esta nova realidade de Deus; foi perceber de que estava sendo sustentado pela sua presença viva e que por isso não havia necessidade de se achegar a ele, uma vez que ele sempre esteve aí, mas carecia apenas aperceber-se de sua presença atuando, falando, perdoando, animando e interpelando.

Talvez orar seja isso – procurar ser a presença de Deus em cada relacionamento, em cada gesto e atitude concreta. É respirar a Vida e vivê-la de maneira intensa.

Não espero mais que Deus aja numa doença terminal ou mude o curso natural das coisas. A vida é assim: vírus atacam, guerras matam, tumores se formam, veias sangüíneas se desgastam e se rompem, pessoas são mortas por embriagados... Dor e sofrimento são coisas da vida. E vida vivida com suas debilidades e incertezas e é isso que a torna vida. Hoje posso dizer que Deus não está em um câncer, mas no tratamento; ele não está no desemprego, mas na cesta básica; ele não está no seqüestro, mas no telefonema anônimo denunciando o cativeiro. Quando perguntaram a Billy Graham onde estava Deus no fatídico 11 de setembro, ele respondeu: “nos bombeiros”.

Confundimos a nossa vida com Deus. Ele é bom, poderoso e justo, e por isso achamos que nossa vida deveria ser assim também. Nossa compreensão de fazer a vontade de Deus esta muito associada com a ausência de problemas na vida. Deus se torna uma muleta para explicar as mazelas da vida e as coisas inexplicáveis. E a oração como meio para conseguir algo da parte de Deus. Não é orar por simplesmente orar, é orar para se obter alguma coisa. O que não dá para explicar, é que oração é oração, ou seja, é aquela oportunidade de sentir Deus no dia-a-dia, e para isso não é necessariamente falando, pode ser meramente aquele silêncio que torna a nossa realidade cheia de significados.

Oro? Sim oro, mas não como antes. Eu convido todos os dias o doador da Vida para estar comigo, mas não apenas dizendo frases que começam e terminam com o “em nome de Jesus amém”. É uma oração que me remete aquela dimensão mais profunda de se ter “consciência de eu estar em Deus, e ele em mim” (R. S. Thomas, poeta galês do século XX). Talvez seja isso que Paulo quis dizer com o “orai sem cessar”.

Pr. Alonso Gonçalves
Iporanga/SP

17.6.08

A BUSCA PELO HUMANO NA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Quando se coloca a revelação para além do Cristianismo, é no sentido de distinguir aquele movimento iniciado por um homem de Nazaré, que a história conheceu como Jesus, onde sua mensagem, morte e ressurreição serão os elementos fundamentais da fé dos primeiros cristãos, daquele corrompido pelo século IV em que força os centros cristãos a se posicionar frente às “heresias” como o gnosticismo. Uma primeira formulação dogmática e centralizadora se dá com o Credo Apostólico, o início da chamada ortodoxia. É a partir daí que o Cristianismo terá que responder a algumas perguntas que eram levantadas, dentro do universo filosófico grego, sobre alguém que viveu longe dali e provavelmente nunca tenha ouvido falar de Sócrates ou Aristóteles. O Concílio de Nicéia (325) formula o conceito de Trindade com uma inútil discussão sobre substância e essência de Jesus Cristo com o Deus Pai. Agostinho e Pelágio irão litigar e o primeiro desenvolve a doutrina do Pecado Original, colocando o sexo como algo pecaminoso e quase uma aberração da natureza humana. O teísmo foi sendo construído em cima de postulados autoritários.

A Idade Média passa quando a Renascença e o Iluminismo chega com um discurso de maturidade humana. A era negra exercida pela Igreja chega ao seu fim com a busca incansável do homem por conhecer a sua realidade. Galileu e Copérnico desbancam a pretensão da Igreja em ser portadora do conhecimento científico e o sistema geocêntrico dá lugar ao heliocêntrico, o teocêntrico perde terreno para o antropocêntrico. O homem é dotado de capacidade racional e sistemas filosóficos como racionalismo surge no lugar da escolástica tomista e agostiniana. O Estado torna-se laico. O Homem se sente no controle de sua história. Com este cenário, a revelação se vê a procura de novos postulados, porque aqueles sustentados pelo sistema eclesiástico já não satisfazia o homem em constante descobrimento. O discurso teria que ser outro. Era preciso ter uma temática que buscasse o ser humano em seu sentido mais intimo, uma vez que a maturidade humana conseguiu produzir duas guerras de dimensões catastróficas. É aqui que gostaria de pontuar algumas soluções apresentadas pelo vocabulário teológico ao homem moderno.

Ainda neste período de descobertas e autonomia humana, surge o deísmo com a tentativa de acentuar a liberdade humana frente ao intervencionismo divino no mundo. Deus concebido como um relojoeiro que depois de dar cordas deixa o mundo aos cuidados do Homem no uso de suas atribuições morais.

A busca pelo humano dentro da revelação leva a consideração por outras tradições religiosas, que não seja, exclusivamente, o Cristianismo. Começa uma constatação pelo fenômeno religioso, o que faz alguém como Durkheim investigar formas religiosas na Oceania.

A teologia contemporânea busca essa dimensão do humano com um Barth e sua insistência de que é sempre Deus que procura pelo Homem; um Schleiermacher e seu processo indutivo em que o Homem olhando para si encontra Deus; Ritschl e sua preocupação ética como maneira de encontrar Deus; Bonhoeffer e seu cristianismo não religioso, criticando essa dicotomia sagrado/profano.

Como nada poderia escapar dessa incansável procura, depois da Reforma Protestante e sua centralização no texto bíblico, os olhos se voltam para a Bíblia – o que é isto? Rudolf Bultmann deixa sua contribuição: demitologização. É uma maneira de ver Deus no texto bíblico, mas não ficar espantado com o vocabulário mitológico e pré-científico. A Crítica da Forma coloca dúvidas que até então eram sacralizadas, como a autoria do Pentateuco, Evangelhos Sinóticos e suas fontes, as Cartas de Paulo, e o texto é desqualificado como produto final de Deus para o Homem. A contribuição foi inestimável. Tirou-se aquela ingenuidade de pensar que os homens e mulheres da Bíblia viviam sua ética, culto e religiosidade como algo expressamente revelado. O povo de Israel viveu sua fé que incluiu, naturalmente, vicissitudes como tramas, conquistas, derrotas, alegrias, tristezas. Sua história foi ganhando corpo escrito depois do exílio babilônico. E se há revelação no texto, como há de fato, ela surgiu como conseqüência de um processo de fé que modelou seu pensamento e experiência. O texto não surgiu como palavra feita e dada no nada e no vazio, pelo contrário, o texto recolhe sagas, mitos, festas, lendas, folclore para dar claridade ao passado de Israel e sua experiência originária com o conhecido Iahweh.O mesmo com os escritos neotestamentários: a experiência com o Deus de Israel e sua manifestação no Jesus de Nazaré e a ressurreição como confirmação de que ele era o Filho de Deus; dentro do imaginário religioso e cultural, a comunidade vivencia a sua fé sem pretensão alguma de construir dogmas e fazer doutrinas. O texto ganha status revelacional depois; as disputas com Marcião e seu cânon teve a reação da Igreja e como conseqüência a definição do cânon neotestamentário como escritos autorizados para reforçar a unidade centralizadora dos bispos e a fé expressa no Credo Apostólico, formulando a partir daí a doutrina da inspiração.

Mas a reação a tudo isso veio. O movimento fundamentalista, que prefere ser chamado de conservadorismo, surge nos Estados Unidos com uma postura contrária à teologia liberal (se é que podemos usar este termo), e a crítica bíblica. Como paladinos da ortodoxia e apologista da fé, o fundamentalismo assevera a inspiração das Escrituras como revelação literal da Palavra de Deus, retomando posturas da Patrística como as de Jerônimo e sua posição de que as Escrituras, em cada palavra, sílaba, acento e ponto há significado.

A teologia contemporânea ainda produz teólogos preocupados com o humano e sua relação com o Absoluto. Da Alemanha nazista aparece Karl Rahner com sua antropologia transcendental. A procura é pela dimensão originária. A religião, instituída com seus credos e dogmas, é relegada como tentativa de aproximação do humano com Deus, um meio que procura criar uma linguagem e um vocabulário que expresse a dimensão mais profunda do ser humano. Neste caso, formula Karl Rahner, o Homem é um Ouvinte da Palavra e que, portanto, todo ele está impregnado pela presença da revelação. Em sua estrutura é constituída a vocação para ser este ouvinte. De um lugar que viu duas guerras e um lunático, Paul Tillich busca o fundamento do ser. O profundo, o abismo, o fundo do ser são símbolos do divino. Quando está busca pelo ser emerge, surge a revelação.

Deixando a teologia existencialista da Europa e o fundamentalismo pragmático norte-americano, pensemos em nosso continente: a America Latina.

Um continente subjugado pelo capitalismo selvagem e o colonialismo, condenado a ser sempre especulativo. Mas de um povo festeiro que consegue passar do soluço à gargalhada em minutos; um povo arraigado em suas tradições religiosas. Anos de dominação colonial não tiraram a diversidade cultural e religiosa de nosso continente – como bem diz um poema de nossa terra: “arrancaram nossos frutos, cortaram nossos galhos, queimaram nosso tronco, mas não puderam matar nossas raízes”. Povo hospitaleiro e possuidor de uma espiritualidade herdada pelos índios e seu apego à mãe Terra, a nossa Pacha Mama. Aqui, de fato, não há lugar para o secularismo religioso produzido na Europa, pelo contrário, é a fé em Deus que dá força para lutar contra a opressão social, a desigualdade e a miséria. Em um contexto como esse não poderia surgir outra coisa senão uma teologia da libertação.

Aqui, a revelação só pode ter seu rosto na comunidade que se chama Igreja. Não que ela seja a portadora da revelação e seu limite. Deus está aí – sempre dentro do mundo, em casa, transcendente, imanente e transparente, não necessita vir de fora, a sua presença já permeia toda a criação. Em nosso continente, a Igreja é a sinalização da graça de Deus já presente no mundo. Ela torna patente o plano de amor de Deus; torna realidade, nela mesma, a presença amorosa de Deus. A Igreja é a consciência mais profunda do manifestar de Deus. O nosso Jesus tem um rosto humano demais; a nossa oração é carregada de sentimentalismo; a nossa ética procura o desvalido e o necessitado; a nossa Bíblia é testemunho-exemplo do amor de Deus por um continente marcado pela esperança e o otimismo, a nossa leitura é libertadora – quem disse que o profeta Amós não era latino-americano?

Pr. Alonso Gonçalves
Iporanga/SP

12.6.08

CTRL C + CTRL V: QUANDO CRER É COPIAR

Hoje meu dia foi cansativo. Daqueles que a gente fica torcendo para que chegue logo o final do expediente, por não agüentar mais fazer a mesma coisa. Entre as muitas tarefas que tinha para fazer, uma me ocupou quase o dia todo... copiar dados de uma planilha para outra, uma por uma, no velho esquema de ctrl c + crtl v (copiar e colar). Como não consigo fazer diferente, enquanto trabalhava, pensava; e enquanto pensava , via claramente na minha rotina o quadro de grande parte da igreja cristã no Brasil: copiar e colar... sem refletir.

Comecei pensar nas coisas que tenho ouvido e visto: unções novas, adoração extravagante, profetadas, messianismo político e não tive como não comparar com nossa realidade: cópias e mais cópias sendo preparadas e jogadas no nosso imenso circo eclesiástico, sem espaço para o mínimo de reflexão.

Nosso povo é treinado para não pensar. Pensar tornou-se uma espécie de "pecado mortal'. Se usar a mente é pecado sem perdão, questionar, então, é a própria encarnação do mal. Vejo uma mensagem silente (às vezes nem tanto) camuflada em alguns superpastores, apóstolos, bispos, semideuses: "sou inquestionável. A única coisa que resta a você, pobre mortal pecador, é ser uma cópia de mim. Este super-homem divino". E o amém não é dado com palavras, mas com vidas: vidas secas, vidas cópias.

Crer hoje é sinônimo de repetir chavões que se aprendem e proliferam em nosso meio. Crer é o mesmo que repetir frases de efeito que "manipulam" céus e terra. Crer é usar palavras de ordem que movem o braço de "deus" ao sabor de quem manda, na terrível inversão de valores a que somos submetidos. A liberdade que Cristo nos dá é roubada descaradamente pelos líderes que procuram copiar suas pobres imagens em seus ensandecidos discípulos. O que mais me dói é que muita gente sincera se deixa enganar por esses manipuladores, gente sem alma, que se alimenta das almas de suas "ovelhas", que para nada mais servem senão alimentarem suas estatísticas "comprovadoras" do "mover de Deus".

Como vejo crescer o número daqueles que lotam igrejas aos domingos, choram apaixonadamente ao ouvirem seus mantras, mas estão vazios de conteúdo. A pior característica do evangelho ctrl c + ctrl v é que o que é copiado não tem conteúdo. É forma, jeito, chavão e aí daquele que tiver o "documento protegido" contra gravação.

Chega de ver gente sendo enganada! Basta de ver gente boa e honesta de Deus sendo levada por fraudadores do evangelho puro e simples! Não dá mais para agüentar calado tanta covardia feita em nome de Deus, roubando as mentes das pessoas e submetendo-as aos desmandos dos paipóstolos, superbispos, pastores pops e quaisquer outras nomenclaturas que possam aparecer.

Evangelho é vida, conteúdo. É vida em abundância e é arquivo protegido contra essas cópias piratas da igreja de Cristo. Crer é também pensar! É questionar! É rever vida, conceitos! Crer não é ficar entregue ao copiar enfadonho de arquivos sem valor. Em último caso dê um crtl + alt + del e reinicie a sua máquina. Ainda há esperança.

Pr. Edwin Ferraz
Pastor dos jovens na Igreja Batista da Liberdade (SP)
O Jornal Batista - 27/01/08.

8.6.08

"EU ESTOU CONVOSCO"

A presença de Jesus na comunidade de Mateus

O evangelho de Mateus aborda diversos temas. Talvez o principal ou o centro de sua mensagem seja a consciência do Cristo ressuscitado no meio da comunidade. Em tempos de perseguição, a certeza de que o Ressuscitado se fazia presente era fundamental para a identidade da comunidade e sua sobrevivência entre os judaísmos nascentes depois de 70 d.C. O fator unificador para a comunidade era a presença sentida e celebrada de Jesus.

A comunidade primitiva adotou o princípio de continuidade entre o Jesus terreno e o Cristo glorificado. Para o evangelista Mateus, as palavras de Jesus não são lembranças de um passado, mas são atuais e vindas diretamente do Ressuscitado, agora presente no meio da comunidade.

Mateus não quer que seu texto seja lido como recordações de um personagem distante e indiferente. O Jesus de Nazaré está vivo, e mais, está entre a comunidade e se dirige a ela!

Nossa chave de leitura esta em três versículos: 1,23; 18,20; 28,20. No primeiro texto o Mateus chama atenção para o nome – Emanuel, ou seja, Deus conosco. Ou, uma melhor tradução, Deus está conosco. Chegando ao capítulo 18 verso 20, outra importante acentuação da sua presença no meio da comunidade. Por coincidência ou não, o fato é que há na Mixná um texto rabínico em que dizia: “se duas pessoas estiverem reunidas e falarem da Lei, a presença (shekiná) de Deus mora no meio deles”. Para a comunidade mateana em lugar da Lei, acha-se o nome de Jesus – ele é a shekiná de Deus. O último texto, 28,20, é ainda mais enfático – “estou convosco”. Não tenho dúvidas de que Mateus quer ser lido desta forma: vendo a atuação do Ressuscitado no meio da comunidade.

A partir daqui podemos entender que a relação de Jesus com os seus discípulos reflete a relação atual dos irmãos com o Ressuscitado.

Imagine este texto, 8,23-26, sendo lido para uma comunidade que estava sendo ameaçada pelas calunias – entre elas a inobservância da Lei, e é por isso que o Jesus de Mateus cumpre a Lei (Mt. 5,17); pelas perseguições; pelo medo; e ainda com dúvidas se Jesus estava com eles ou não. Mateus diz: “ele está no barco, ele está presente”. E não é por acaso que a palavra tempestade para Mateus é seismos, perturbação. E não poderia ser “mestre, mestre estamos perecendo” como em Lucas 8,24, mas teria que ser mesmo uma oração, um grito em uníssono:“Senhor, salva-nos perecemos”. A sua palavra só poderia vir mesmo antes do milagre, diferente de Lucas 8,24-25, exortando para que eles confiassem na eficácia de sua presença e pudesse superar a “pouca fé”.

A sua presença é concretizada quando a comunidade esta reunida. Os versos 19 e 20 do capítulo 18 são fecundos nesta certeza. A sua presença viabiliza o conforto tão necessário para uma comunidade que sofria com adversidades tanto dentro quanto fora. Os irmãos reunidos encontram forças para resistir às ameaças e conduzir a vida eclesial. A pergunta de Pedro no verso 21 sobre perdão só se acha aqui no evangelho de Mateus. Perdão era uma questão de preservação. Sendo este tão essencial para a vida da comunidade não poderia ser contabilizado, mas somente doado; sem necessidade de explicações, porque aí seriam desculpas. Perdão é perdão. Tem sua natureza no próprio Deus (vs. 35).

Sua presença é indispensável para uma Igreja que sobre de falta de mística, porque no nosso imaginário religioso a concretização da presença de Deus é medida pelo número de pessoas que estão no templo num domingo à noite. A ausência de amor e perdão já não é mais sentida, sentimentos que foram vivenciados dinamicamente por Jesus de Nazaré. O “eu estou convosco” continua sendo ignorado quando uma comunidade não cultiva competição em lugar de cooperação, ódio pelo irmão em lugar de amor desinteressado, inospitalidade em lugar de hospitalidade, egoísmo em lugar do altruísmo.

A sua presença é vivenciada e celebrada, e ainda bem, na ceia do Senhor. Única maneira de perpetuar a sua presença na comunidade de fé.

1.6.08

EM TORNO DA MESA

No Novo Testamento há diversos relatos sobre a ressurreição de Jesus. Os Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) interpretam a ressurreição de uma maneira diferente que o apóstolo Paulo, o primeiro a escrever depois da morte-ressurreição de Jesus muito antes que qualquer evangelista. O autor do Evangelho de Lucas relata a ressurreição de uma forma física, colocando Jesus e seus discípulos comendo. É preciso levar em conta o contexto de Lucas de que para os seus leitores era importante acentuar um corpo e não um "fantasma" pois naquela época já circulava uma interpretação que dizia que Jesus tinha apenas a aparência de humano (docetismo), mas não era humano. Paulo desconhece túmulo vazio e aparições relatadas pelos evangelhos. Para ele a manifestação do Ressuscitado foi espiritual e revelacional para algumas testemunhas (1Co. 15).

Bem. O que quero colocar é o seguinte: como a Igreja poderia vivenciar a presença do Ressuscitado uma vez que ele não estava mais no meio dos discípulos com seu corpo físico? Não era mais uma manifestação espiritualizada e revelacional (Paulo) e nem mesmo seu pretenso corpo físico (principalmente Lucas). Nenhuma dessas possibilidades aconteceria novamente. Como a comunidade experimentaria a presença daquele que abalou suas vidas e fez com que eles vissem as coisas com outros olhos, os do Reino?

Este foi um problema levantado pela comunidade do Evangelho de Lucas. A comunidade quer presenciar a atuação do Ressuscitado. Surge então o capítulo 24,13-32. Dois discípulos no caminho de Emaús "conversam com Jesus" mas não o reconhecem. O convidam para entrar e uma vez na mesa ele parte o pão. Os olhos se abrem, e aí o reconhecem - "é ele!!!". Com este texto narrativo o autor do Evangelho de Lucas quer ensinar a comunidade de que é em torno da mesa que o Ressuscitado se faz presente.

A pergunta da comunidade era: "onde está Jesus Cristo hoje?" A resposta foi: "no partir do pão (ceia) ele está no meio de vós". Eles não estavam sozinhos. Nos momentos de partilha, de solidariedade, de espiritualidade, de comunhão, a presença de Jesus era concretizada. Diante disso não era possível falar de morte, porque ele estava vivo e no meio deles.

Hoje a sua presença é vivenciada por meio do seu Espírito quando um grupo de pessoas se reúne em seu nome (Mt. 18,20) formando assim a Igreja. E esta comunidade concretiza a comunhão com ele quando repete o seu gesto de "partir o pão", e em torno da mesa todos podem compartilhar da sua presença, não física, é verdade, mas espiritual, e da melhor maneira - comendo.

Para refletir sobre a presença do Ressuscitado a comunidade primitiva formulou, creu, modificou ao seu contexto ensinando de modo diferente, mas sem perder em nenhum momento a essência da nova maneira de viver com Deus - a ressurreição.

A Igreja hoje vive a realidade da presença do Ressuscitado na comunhão, na partilha, no amor. E essa realidade para mim basta, e basta mesmo. Não preciso de mais nada para ofuscar o milagre da ressurreição.

ESPIRITUALIDADE NO COTIDIANO

Espiritualidade nunca foi especificidade de determinadas tradições religiosas. Delimitar a espiritualidade às tradições religiosas é ignorar a dimensão transcendental do ser humano e suas diversas manifestações. Antes das religiões, inclusive a cristã, está a espiritualidade, patrimônio da humanidade como porta aberta para o Absoluto. Antes são as religiões que fazem uso da espiritualidade e formulam prédicas, constroem edifícios teóricos. Mas é na dimensão existencial do ser humano – o Dasein (Ser-aí) de Heidegger – que se dá aquela abertura hospitaleira a uma voz que quer ser ouvida e atendida. É o que chamou Teilhard de Chardin de “diafania” – a presença do divino na realidade que a tudo perpassa e engloba. É uma transparência a ser desvelada. A espiritualidade esta no humano assim como o ar esta para os pulmões.

A esta dimensão de Espiritualidade que somos inquiridos a viver no dia-a-dia. Uma espiritualidade comprometida com a carne quente e mortal. Pois é no dia-a-dia que somos desafiados a vivenciar a barreira entre o bem e o mal. Na Idade Média os monges procuraram enclausurar esta dinâmica se refugiando nas montanhas onde não podiam experimentar o dia-a-dia desta dimensão. A espiritualidade no cotidiano é urgente; uma espiritualidade comprometida com o dia-a-dia. Foi no cotidiano que Luther King abraçou uma causa em nome da igualdade social; no dia-a-dia que Mahatma Gandhi conquistou a independência de seu país daqueles que deveriam demonstrar o amor de Deus.

Foi no cotidiano que Jesus demonstrou sua capacidade de amar, chorar, sorrir, gritar, se irritar. Sua espiritualidade era movida pela compaixão. Ele não ficava impressionado com grandes coisas, mas com as pequenas, pois sua atenção estava centrada nas pessoas com suas mazelas diárias. Enquanto os discípulos olhavam as gigantescas pedras do templo iniciado pelo tirano Herodes, ele observava atentamente a oferta de uma viúva pobre (Mc. 12,41-42; 13,1); enquanto todos estavam agitados e admirados com a cura da filhinha de Jairo, a sua preocupação era que dessem comida para ela (Mc. 5,42-43). Sua espiritualidade cotidiana era carregada de ternura e leveza, porque ele sabia que é sempre mais difícil superar as incoerências da vida como gestos nobres e maléficos, sorriso e temor, amor e ódio, esperança e desespero... É nessa espiritualidade de base que vemos na figura de Jesus o ideal diário – aquele que se for negado abraça o negador, se for traído ama o traidor, se for torturado intercede pelo torturador, se for crucificado perdoa os assassinos.

Uma espiritualidade vivenciada no cotidiano sempre irá nos mostrar condutas incompatíveis com a espiritualidade de Jesus – a nossa tendência em utilizar as pessoas, a capacidade de nos enchermos de orgulho e desconsiderar o outro. É no dia-a-dia o teste mais confiável para mostrar a qualidade de nossa vida e o espírito que nos inspira, onde podemos “ser o que se é, falar o que se crê, crer no que se prega, viver o que se proclama” (Pedro Casaldáliga).

Como disse Simón Bolívar, um dos messias deste continente, “é mais fácil conquistar a liberdade do que administrá-la a cada dia”. Com a espiritualidade não é tão diferente.

TERNURA E COMPAIXÃO

O que movia Jesus para o outro não era sua pretensão em ser o Messias político que destronasse os romanos e estabelecesse um novo reino davídico. Ele não esperava recompensas por suas ações; não queria uma cadeira no Sinédrio controlado por religiosos corruptos. O que movia Jesus para estender a mão em direção ao outro era a sua ternura e compaixão.

A sua conduta, ações e espiritualidade eram baseadas na ternura e compaixão. É por isso que ele quando via aquele povo se compadecia por vê-los como ovelhas sem pastor (Mt. 9,36; 14,14). Essa compaixão impulsionava Jesus para o outro de maneira incontrolável, quase uma obsessão. Ele aproveitava as oportunidades para demonstrar misericórdia e ternura.

A capacidade que Jesus tinha para evidenciar afeto era incrível. Ele conseguia enxergar aquilo que seus discípulos não viam. Enquanto estes estavam impressionados com as construções iniciadas pelo tirano Herodes do templo e suas pedras gigantescas (Mc. 13,1), ele observava atentamente uma viúva pobre depositar a sua oferta (Mc. 12,42-43).

Sua compaixão e ternura lhe davam capacidade de enxergar o que os outros não viam. Todos admirados e alegres com a cura da filhinha de Jairo, ele continua olhando para ela e pede que a dê o que comer (Mc. 5,42-43). São seus olhos que transbordava espiritualidade. Aqueles olhos que viu Pedro quando este o negou, e saindo do Sinédrio seus olhos se encontram com o negador e o ama intensamente que a única reação do estourado Pedro seja chorar. Não foi um olhar do tipo “eu disse que você iria fazer isso”, mas foi um olhar de amor, ternura e compaixão.

A sua espiritualidade lhe permitia chorar. Chorar por um amigo que morre; chorar por ver sua querida Jerusalém longe do Reino de Deus.

Nossa espiritualidade tem sido marcada por novos paradigmas totalmente aquém da ternura e compaixão de Jesus. O outro virou meio para se conseguir algo; o chorar deu lugar ao cinismo; a compaixão não é cultivada, porque o mar não está pra peixe; ternura já não faz parte do vocabulário porque esta deu lugar à competição, o egoísmo, a intolerância.

O Jesus ternura é aquele que se for negado olha com um olhar de amor para o negador, se for traído abraça o traidor, se for torturado ama o torturador, se for crucificado perdoa os assassinos.

A espiritualidade contemporânea, marcada pelo espetáculo e os resultados, não consegue enxergar mais aquele que adora a Deus na sua simplicidade, seus olhos estão voltados para a opulência da vida. Essa espiritualidade quer ver os milagres, mas a pessoa passa despercebida em suas necessidades básicas como comer e beber.